quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Tempo (3). Do tempo linear do Cristianismo ao tempo linear da Historiografia dos séculos XVIII e XIX

Há uma complexa história na passagem do tempo circular da mitologia, ou mesmo da antiga circularidade política dos gregos antigos, para uma concepção linear de tempo. O pensamento religioso das igrejas monoteírstas parece ter desempenhado um papel importante para a emergência desta nova maneira de ver o tempo. Tal como nos atesta Miceias Eliade em O Mito do Eterno Retorno (1969), mas também Germano Pattaro em A Concepção Cristã do Tempo (1975), os hebreus, com seu “monoteísmo profético”, estariam entre os primeiros – seguidos pelos cristãos – a introduzir como concepção de ordenação cósmica um Tempo linear, irreversível, teleológico, através do qual os eventos datados e localizados desempenhariam um papel fundamental para as narrativas bíblicas. Ao substituir pela ‘salvação futura’ prevista nas profecias a ‘redenção na origem’ que era proposta pelos rituais e concepções míticas, e ao introduzir os eventos como peças chaves neste caminho linear em direção ao grande acontecimento do Juízo Final, os hebreus e cristãos preparam, tal como observam autores vários, a idéia de Tempo que logo permitiria o surgimento da História .

Inventava-se com os judeus um novo tipo de História, orientada por uma linha única e voltada para o futuro, na qual a única macro-narrativa que tinha importância era a que se referia à trajetória do povo eleito. Contra o pano de fundo das pequenas histórias dos pagãos, os hebreus traziam a sua própria história a primeiro plano. Todos os eventos, mesmo os mais adversos, eram conclamados a participar de um plano que Deus tinha para um único povo, e até as mais ultrajantes derrotas perante os inimigos, como tão bem assinala Reinhart Koselleck no capítulo VI de Futuro Passado (1979), eram agora incorporadas como peças-chave neste enredo maior: nas narrativas judaicas estas derrotas tornavam-se penitência, “castigos que [os hebreus] foram capazes de suportar” (KOSELLECK, 2006, p.127).

Confirmando a tradição judaica recebida através do Velho Testamento, já é de fato um novo modelo de História – uma história universal com sentido único, e que aponta escatologicamente para um futuro no qual se eternizarão a salvação ou a condenação – aquele que é introduzido por Santo Agostinho em Cidade de Deus, e que, passando na Idade Média por Gioachino da Fiore (1145-1202), chegará até o século XVII e a primeira metade do século XVIII com Bossuet (1681) e Lessing . Trata-se de um passo além do modelo hebreu, precisamente porque o modelo agostiniano refere-se a uma história de todo o gênero humano, e não mais a uma contraposição entre a história de um povo eleito e as histórias menores dos pagãos (BODEI, 2001, p.18). De resto, esta História – que Santo Agostinho concebe em seis etapas por paralelismo com o modelo da Criação do Mundo em seis dias – parece situar o Futuro de fato como um “outro mundo”, radicalmente distinto deste complexo de Presente-Passado que corresponde à aventura humana em direção à salvação ou à condenação. O Futuro corresponderá ao momento em que finalmente o tempo histórico poderá ser interrompido, tal como se interrompera o tempo da Criação naquele “sétimo dia” no qual Deus pudera finalmente descansar após o trabalho da Criação.

Poderemos tentar aqui uma síntese acerca dos principais traços do padrão de temporalidade proposto pelo modelo histórico-teológico do Cristianismo. O Tempo é linear e “teleológico”, isto é, possui um “telos”, um “fim” a ser atingido . Este tempo linear é enquadrado por duas datas: a da Criação e a do Juízo Final, e no seu decorrer é pontilhado por eventos que expressam a Vontade Deus. Já não importa tanto o número de etapas que constituem este percurso – as “seis idades do mundo” de Santo Agostinho ou as três épocas de Gioacchino da Fiore – mas sim o fato de que as diversas doutrinas das idades do mundo eram concebidas de tal modo que, depois do nascimento de Cristo, estava-se vivendo já a última delas, o que implicava que “desde então não poderia acontecer mais nada de novo, pois o mundo se encontrava sob a perspectiva do Juízo Final” (KOSELLECK, 2006, p.128).

A função dos eventos em tal estrutura de tempo é singular. Cada evento só adquire seu real sentido quando inserido e compreendido no interior desta sequência relacionada ao futuro teológico . Trata-se, de fato, de uma história “transcendente” – isto é, conduzida de fora pela vontade divina . No que concerne à Temporalidade – isto é, no que se refere à relação entre Passado, Presente e Futuro que se estabelece a partir da escatologia cristã – o Futuro constitui um outro mundo, distinto do Presente-Passado, embora este se conduza para aquele. Por fim, pode-se dizer que o tempo historiográfico do historiador-teólogo (isto é, o terceiro tempo que é produzido pela história-conhecimento de um ponto de vista teológico-cristão) é reconstituído a partir de diversas histórias, que ilustram os vícios e virtudes e esclarecem a vontade de Deus.

Posteriormente, e acompanhando a mesma linearidade e teleologia, os iluministas do século XVIII proporiam o seu ajuste: substituir pela “utopia sócio-política” a escatologia, substituir pelo “Reino da Razão” o Paraíso Prometido no final da linha, e introduzir no interior da linearidade teleológica, agora “imanente”, um Espírito Absoluto, ao invés do Deus transcendente que intervém na História através de revelações e milagres inscritos nos eventos.

Estes exemplos, por ora, valem-nos para ressaltar que a diversidade das idéias de tempo não se refere apenas aos pensadores das várias escolas filosóficas e historiográficas, mas também se refere ao confronto entre civilizações e culturas humanas diversificadas, ou mesmo entre formas distintas de religiosidade, como acrescenta Ernst Cassirer em seu ensaio A Filosofia das Formas Simbólicas, na parte em que desenvolve uma reflexão sobre “A configuração do tempo na consciência mítica e religiosa” . Eis aqui uma primeira História do conceito de Tempo a ser considerada.
Diga-se de passagem, e acompanhando as reflexões de Juliana Bastos Marques em seu artigo sobre “O Conceito de Temporalidade e sua aplicação na historiografia antiga”, a interação do conceito de Tempo com a História – hoje tão óbvia e irredutível – tem também a sua história própria, e é importante destacar que o conceito original de História, entre os gregos, não se baseava na reflexão sobre a natureza do tempo, uma vez que etimologicamente a palavra significaria “pesquisa, informação, relato” (MARQUES, 2006, p. 65). Ademais, tanto com Heródoto como com Tulcídides, o que se tem, para nos expressarmos com alguma liberdade, é o que equivaleria hoje a uma História do Tempo Presente (ou, ao menos, do tempo recente), de modo que não ocorre aqui, ainda, a preocupação com uma temporalidade mais extensa . O objetivo principal da História, conforme formulado por Heródoto, era evitar que fossem esquecidas “as grandes façanhas dos gregos e dos bárbaros”; tratava-se de preservar aquilo que merecia ser lembrado do destino comum a todas as coisas, que era ser levado pelas correntezas do Lethes, o “rio do esquecimento” . Deste modo, Heródoto, e ainda Tulcídides, estavam muito mais preocupados com o seu passado recente, de modo que a sua história não trabalha com a noção de tempo. Já posteriormente, com o desenvolvimento dos gêneros proto-historiográficos da cronologia e da genealogia, a noção de temporalidade adentra definitivamente, com importância definitiva, o conceito de História .

Já nos referindo à História plenamente envolvida pela interação com a noção de temporalidade, outra aporia fundamental para compreender a relação entre Tempo e História é aquela que confronta o ‘tempo da ação’ e o ‘tempo da narrativa’. Com o ‘tempo da ação’ estamos no universo que se refere aos “Fios” que enredam a própria história efetiva, e com o ‘tempo da narrativa’ estamos já no âmbito deste Tempo que é Trama, para tomar emprestado de Ivan Domingues esta feliz metáfora que ilumina este segundo Tempo que surge na operação historiográfica como construção ou artefato literário. Ou seja, considerando que o historiador extrai os seus materiais da História Efetiva, e os reordena para compor a sua História-Conhecimento, impõe-se aqui um incontornável confronto entre o ‘tempo dos eventos’ ou ‘tempo do vivido’, intrincado emaranhado de fios com o qual o historiador se depara, e o ‘tempo da narrativa’, com o qual o historiador terá de lidar já como autor que precisa configurar um texto historiográfico.


Leia também a continuação deste texto em:
http://ning.it/hoEWu4

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BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.
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Bibliografia citada:

BARROS, José D'Assunção. Os Usos da Temporalidade na Escrita da História. Saeculum, n°13. João Pessoa: UFPB, 2005. http://ning.it/eNOD92

BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208. http://ning.it/hoEWu4

BODEI, Remo. A História tem um sentido? Bauru: EDUSC, 2001 [original: 1997]

ELIADE, Miceas. Le mithe de l’éternel retour. Paris: Gallimard, 1969

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979]

MARQUES, Juliana. Bastos. “O Conceito de Temporalidade e sua aplicação na historiografia antiga”. Revista de História – USP, n°58, 1° semestre de 2008. p.44-66

PATTARO, Germano. “A Concepção Cristã do Tempo” In RICOEUR, Paul (org.). As Culturas e o Tempo: estudos reunidos pela UNESCO. Petrópolis: Vozes, 1975, p.197-228

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