quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O Tempo (5) As Concepções Lineares do Tempo no século XIX

Além da versão hegeliana do Tempo Iluminista, discutida no post anterior, o século XIX traria outra versão conservadora do otimismo iluminista e da sua confiança no Progresso. O Projeto Positivista – inaugurado na história das idéias por Augusto Comte – busca combinar Ordem e Progresso, e corresponde contextualmente ao período da Restauração e dos ajustes históricos entre os privilégios aristocráticos que ainda podiam ser preservados e os interesses de uma burguesia industrial que saíra fortalecida da Revolução Francesa.

O modelo que iremos discutir neste momento corresponde ao Positivismo Comtiano. Augusto Comte, fundador da sociologia positivista ainda na primeira metade do século XIX, concebia o destino humano em termos de uma passagem por três estágios sucessivos: o Estado Teológico, o Estado Metafísico, e o Estado Positivo. Todas as sociedades humanas, seguindo o modelo das sociedades européias que eram as mais avançadas segundo a perspectiva positivista, deveriam realizar esta passagem pelos “Três Estados”. Chegando ao Estado Positivo, já não haveria mais mudanças de qualidade, mas apenas progresso quantitativo, isto é, avanços científicos de modo geral. Deste modo, o Tempo Positivista continua sendo linear e teleológico: aponta para um futuro no qual estaria realizado plenamente o estado Positivo. Do ponto de vista de um historiador positivista do século XIX, o Passado (correspondente aos estados teológico e metafísico que haviam sido superados na civilização européia com o advento do Iluminismo) continua destacado do Presente, que praticamente se funde ao Futuro, já que se considera que, na Europa, o Estado Positivo já começou a ser estabelecido.

O Tempo Positivista, tal como o Tempo Iluminista, segue sendo Progressivo, mas não é mais Acelerado como no tempo revolucionário dos iluministas. Isto porque o Positivismo não apresenta um projeto revolucionário, mas sim um projeto evolucionista. Seu objetivo é a ‘conciliação de classes’ sob a égide de uma burguesia industrial já assentada no poder, e não a ‘luta de classes’ (como ocorrera na época da Revolução Francesa sob a liderança de uma burguesia então revolucionária). Os tempos, agora, são outros. Por isso o Tempo Positivista segue sendo Teleológico, mas é já anti-revolucionário (um vetor apontando para um futuro de Racionalidade Plena, que, pretensamente, já começa a se ver realizado à medida que as diversas ciências, uma a uma, vão passando dos estados inferiores (teológico e metafísico) para o Estágio Positivo. No limite final, temos a realização plena do positivismo, quando as Ciências Sociais se tornarem elas mesmas inteiramente positivas como a Física e as Ciências da Natureza. No que se referem à elaboração da história-conhecimento, os Eventos do Passado devem ser imobilizados pelo Historiador, para não se tornarem nocivos e explosivos no Presente-Futuro do Estado Positivo em formação. Desta maneira, a função dos historiadores no Positivismo seria explicar os eventos, estabelecer sobre eles um controle através do seu enquadramento em Leis Gerais das sociedades humanas a serem descobertas pelos historiadores e sociólogos positivistas.

Vamos tentar apreender os elementos essenciais da concepção de tempo trazida ao debate historiográfico do século XIX pelos historicistas. O Tempo Historicista não é difícil de representar visualmente. Abrindo mão de uma concepção universalista da História, os historicistas estarão preocupados com a elaboração de suas histórias nacionais, e procuram não pensar muito em um futuro teleológico. No que concerne à preocupação com as histórias nacionais e com as singularidades locais, por oposição à obsessão pela unidade histórica universal dos iluministas, os historicistas já tinham tido um precursor no século anterior, um filósofo da história que habitualmente é classificado como um romântico do século XVIII chama-se Johann G. Herder (1744-1803). Herder escrevera nesta direção duas obras importantes: em 1774, um livro intitulado 'Ainda uma Filosofia da História para a Educação da Humanidade', e posteriormente outra obra intitulada 'Idéias para uma Filosofia da História da Humanidade' (1794). Os protagonistas do grande movimento histórico seriam para ele os “Espíritos dos Povos”, através dos quais Deus se manifesta – e nem uma Providência transcendental como queriam os historiadores teólogos, ou um Espírito da Razão como queriam os iluminista universalistas. Surge aqui o que mais tarde, no século seguinte, se tornaria um paradigma alternativo através dos historicistas oitocentistas: a consideração e o respeito pelas diferenças nacionais. A História é um entrelaçado de várias histórias que caminham juntas, uma vez que cada povo é livre para exprimir a sua singularidade e a sua própria natureza. Assistimos com Herder à celebração das diferenças, e se a história continua a avançar progressivamente para o futuro, talvez a sua representação visual mais adequada seja a de uma série de paralelas que se dirigem para o futuro.

O respeito às singularidades nacionais será uma das bases do pensamento historicista e de sua concepção de tempo histórico. Para muitos dos historicistas do século XIX, o melhor dos mundos possíveis era a Monarquia ou nação que acolhia o seu trabalho, e estes estado-nacionais em afirmação estavam dispostos a financiar suas carreiras e a situá-los na posição confortável e necessária de restauradores da memória nacional, de organizadores dos acervos documentais do país, de edificadores da disciplina historiográfica que recentemente fora incluída no panteão de conhecimentos universitários. Aos diversos historiadores, estados como o da Monarquia Prussiana só pediam que escrevessem uma historiografia que não motivasse as revoluções, como a que ocorrera em 1830. A Revolução Francesa também já há algum tempo fora uma página virada da História, e já ocorrera a Restauração. Estes governos desejavam apenas se organizar, conservar privilégios aristocráticos mas sem deixar de atender aos interesses de uma burguesia que não era mais revolucionário (como na época do pensamento Ilustrado) e sim conservadora. Para os historicistas da Escola Alemã o tempo é uma linha reta, bastante simples.

Muitos historicistas não tinham qualquer preocupação em especular sobre um futuro a ser atingido, precisamente porque haviam sido contratados por este ou por aquele estado-nação para escrever uma História que, ao sedimentar a memória da nação, desautorizasse revoluções radicais. O projeto de muitos destes historicistas era certamente conservador, particularmente o dos historicistas das sete primeiras décadas do século XIX. A nação-estado que acolhia o historiador devia ser vista como uma espécie de “melhor dos mundos possíveis”. As melhorias deveriam vir através das ações habituais da Política tradicional. Embora o futuro existisse para muitos dos historicistas da Escola Alemã, ele não se apresentava como qualitativamente distinto do Presente ou do Passado, ou ao menos não representava um mundo melhor a ser atingido, pois isto indicaria que o Presente deveria ser superado. Deste modo, no que concerne à Temporalidade Historicista, pode-se dizer que o Presente tende a incorporar o Passado, embora seja dele distinto, formando um contínuo que constitui a contemporaneidade, sendo que o Passado legitima o Presente no caso dos historicistas vinculados, no século XIX, à estrutura estatal e aos projetos dos Estados Nacionais.

Com referência ao tempo historiográfico, o historicista costuma pensar em termos de uma Reconstituição do tempo da História Efetiva, o que se dá assumidamente a partir do ponto de vista do Historiador (sobretudo para o caso dos historicistas relativistas, que já começam a aparecer com maior freqüência a partir de meados do século XIX), e através da idéia de uma oposição da perspectiva da Compreensão à perspectiva da Explicação, que seria a das ciências naturais e exatas.

A tendência mais recorrente a legitimar historiograficamente o Presente, através de uma glorificação do estado-nacional e de sua memória, não impede de todo modo que sejam perceptíveis variações entre os vários historicistas. É interessante o caso de Leopold von Ranke, considerado por muitos como o “pai do historicismo alemão”. Ranke fora contratado pela Monarquia Prussiana para glorificar historiograficamente este estado e sua memória, e para narrar esta história de uma maneira em que não se vissem motivadas as atitudes revolucionárias, mas sim a idéia de que as melhorias na vida humana e nacional deveriam ser atingidas através de reformas. Tornou-se amigo de Frederico Guilherme da Prússia e de Maximiliano da Baviera, e alcançou uma excelente posição social através de seu trabalho como historiador. Por outro lado, é muito interessante a maneira como percebe as épocas do Passado. Apesar de glorificar a nação que acolhia seu trabalho, e de atender às necessidades do governante, ele via cada época como “perfeita em si mesma”, de modo que nenhuma delas, nem mesmo o seu Presente, possuía um grau de importância maior do que as outras épocas. A passagem de uma época para outra não representava uma superação da época anterior, como haviam proposto tantos dos historiadores do século XIX e, na sua própria época, Hegel:


“Eu afirmo que cada época provém imediatamente de Deus, e o seu valor não reside fora dela, mas na sua existência mesma, na sua peculiaridade. [...] Cada época deve ser vista como algo válido e mostra-se altamente digna de consideração” (RANKE, apud BODEI, 2001, p.56).


Fora da Alemanha, onde o predomínio da concepção historicista é evidente, teremos inúmeros outros exemplos de historiadores que, através da perspectiva historicista, buscam “reconstituir” uma história que situa a sua própria época como o melhor dos mundos que poderia ser atingido, resultando que a partir daí as transformações deveriam se dar através de reformas no quadro da política tradicional. Assim, na Inglaterra de meados do século XIX teremos a obra sobre a História da Inglaterra (1849) de Thomas Babbington Macaulay (1800-1859), que pretende reconstituir o passado histórico com vistas a mostrar uma progressiva ascensão “em direção às formas da liberdade constitucional inglesa” (FONTANA, 2004, p.233). Isto implica, para o caso do historiador whig Macaulay, em compreender a História em termos de graduais vitórias dos reformistas whigs contra os tories, que aparecem como defensores do status quo e como freios à progressiva evolução política liderada pelos whigs . Portanto, o tempo histórico apresenta-se aqui linear e progressivo. Mas não há mais muito o que esperar do futuro, senão melhorias que virão das reformas políticas e do desenvolvimento tecnológico. Macaulay, por exemplo, tal como seu antagonista escocês Thomas Carlyle (1795-1881), sustentava enfaticamente que o sufrágio universal seria “incompatível com a existência da civilização” (FONTANA, 2004, p.232).

O Historicismo Relativista, nas suas várias versões, irá aprofundar de uma nova maneira a concepção do tempo histórico. Para o historicismo presentista de fins do século XIX ou do século XX, através de nomes como os de Benedetto Croce (1866-1952) ou Collingwood (1889-1943) – mas também para outras correntes de pensamento como a do “pragmatismo” de John Dewey (1859-1952) – cada Presente possui o seu Passado, reescrevendo a sua história. Já não há aqui nenhuma pretensão de “narrar os fatos tal como eles se deram”, mas sim o objetivo de narrar os fatos de acordo com o ponto de vista e o interesse e motivações de uma época, de uma escola historiográfica nacional, ou mesmo de um historiador. O Passado tornar-se-á construção do Presente. Esta leitura também será mais tarde incorporada pela Escola dos Annales, sendo que se frisará naquele movimento que o Passado é construção problematizada do Presente. Será esta, também, a posição da escola presentista americana, através de historiadores como Charles Beard (1874-1948) e Carl Becker (1873-1945).

Retornemos, por ora, aos debates da historiografia no século XIX. Enquanto os estados-nacionais europeus convocavam historiadores historicistas para a reconstituição da História e da Memória nacionais, a própria Alemanha do século XIX traria, das fileiras oriundas da chamada ‘esquerda hegeliana’ (um setor mais crítico do pensamento derivado de Hegel) um nome que estaria destinado a mudar a historiografia ocidental, senão no seu próprio século, ao menos no século seguinte. Karl Marx, conjuntamente com Friedrich Engels, seria um dos fundadores do Materialismo Histórico – uma concepção da história que retoma a dialética hegeliana e a combina a novas idéias, como a de “luta de classes”. Para os fundadores do Materialismo Histórico existem duas histórias entrelaçadas: a “história da luta de classes’ e a ‘história dos modos de produção’. Uma está dentro da outra. Os modos de produção sucedem-se na história como grandes épocas ou sistemas econômico-sociais, aos quais corresponde um determinado universo cultural e ideológico perfeitamente ajustado à base econômico-social. As classes sociais em luta estão sempre relacionadas a posições específicas dentro do modo de produção que as fez surgir, e do seu confronto de interesses surgem as contradições que movimentam a dialética do materialismo histórico – não mais uma dialética idealista, como a de Hegel, mas uma dialética materialista, na qual as grandes transformações sempre começam na base econômico social, a partir do desenvolvimento das forças produtivas. Seria necessário buscar, para o Materialismo Histórico, uma representação que desse conta deste duplo tempo que entrelaça a “história da luta de classes” com a “história dos modos de produção”.

A linha reta que representa a “luta de classes” é alimentada por contínuos círculos dialéticos internos (ver no artigo em referência os esquemas visuais), mas no âmbito mais amplo não deixa de ser uma linha reta que aponta teleologicamente para o futuro: uma sociedade sem classes que corresponderá ao Modo de Produção Socialista. Os blocos que se sucedem na “história dos modos de produção” correspondem a estruturas ou sistemas bem diferenciados entre si, cada qual com seu próprio padrão de racionalidade e organização social. Os modos de produção separam-se uns dos outros por rupturas, que podem corresponder a revoluções sociais (ou então a outros tipos de “revoluções”, como a revolução agrícola, que permitiu o rompimento em relação à economia de coleta ainda no período pré-histórico, ou então a revolução urbana, que inicia o período histórico propriamente dito com as grandes civilizações urbanas. O ‘Quadro 8’ [ver no artigo completo] sintetiza os aspectos fundamentais do tempo do Materialismo Histórico.

Deve-se notar ainda, na concepção temporal proporcionada pelo Materialismo Histórico, que pode ser entrevista ainda uma ‘dialética de tempos diferenciados’ por dentro deste tempo meta-narrativo que conta a história da ‘luta de classes’ e da sucessão de ‘modos de produção’ . Se o movimento dialético da História dá-se através do confronto entre as ‘forças produtivas’ e as ‘relações de produção’ – duas faces de um determinado ‘modo de produção’ que começam a certa altura se contraditar embora na origem tenham sido feitas umas para as outras – isto ocorre, pode-se aventar, em termos de uma contradição entre duas velocidades diferenciadas de tempo. As forças de produção constituem a parte mais dinâmica de um modo de produção, ao mesmo na corrente mais clássica do Materialismo Histórico. Jamais cessam de se transformar as forças de produção, de se desenvolver, de se impulsionarem para a frente. Desenvolvimentos tecnológicos as impulsionam para o futuro, os modos de trabalho se desenvolvem, os trabalhadores se aprimoram como sujeitos de produção, inclusive adquirindo maior consciência de classe. As ‘relações de produção’, contudo, que tendem a criar hierarquias sociais bem-estabelecidas e redes de deveres, limitações e privilégios para os vários níveis sociais envolvidos no processo produtivo, dando origem a um certo sistema de propriedade e de apropriação de recursos. Haverá uma mudança muito mais lenta nas ‘relações de produção’, uma velocidade menor do seu tempo histórico (alguns irão argumentar mesmo que as ‘relações de produção’ são estáticas, isto é, imóveis, transformando-se por isto em um ponto de inércia que deverá necessariamente vencido pelas forças produtivas para que seja possível a progressão dialética com vistas ao estabelecimento de um novo modo de produção.

Uma leitura ou outra, pode-se dizer que existe também por dentro do próprio modo de produção um confronto entre dois tempos históricos diferenciados, o das ‘forças de produção’, que produz mudanças em uma velocidade maior, e o das ‘relações de produção’, que só lentamente se transforma, ou se mostra mesmo imóvel. De todo modo, ao final do processo que se estabelece a partir desta dialética de durações, o sistema tende a ser impulsionado para a frente. O Materialismo Histórico, ao menos na habitual versão que se associa ao ideal de atingir um dia o ‘modo de produção socialista’, ou uma ‘sociedade sem classes’, continua a constituir como aparência mais externa uma linha reta que aponta para o futuro.

O texto aqui adaptado pode ser encontrado em:
http://ning.it/hoEWu4
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BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.
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Referências Bibliográficas:


BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208. http://ning.it/hoEWu4

BODEI, Remo. A História tem um sentido? Bauru: EDUSC, 2001 [original: 1997]

FONTANA, Josep. A História dos Homens. Bauru: EDUSC, 2004 [original: 2000].

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