quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Espaço (1): construção do historiador

Se Tempo é a categoria irredutível da História, sem a qual não se pode pensar o conhecimento historiográfico conforme uma especificidade que o distingua de outros saberes produzidos pelo homem, não podemos esquecer de outras categorias igualmente importantes para o trabalho historiográfico. Uma destas categorias é o Espaço.

Frequentemente, associamos o conceito de "Espaço" como o elemento irredutível da Geografia, e esquecemos o quanto a História também precisa deste conceito para a sua operacionalização. "Eapaço", ou também "lugar", é uma instância decisiva para a realização de um bom trabalho historiográfico, de modo que precisamos pensar seriamente neste conceito para que a História não resulte em mera abstração.

Rigorosamente falando, a História é o estudo do Homem no Tempo e no Espaço. As ações e transformações que afetam aquela vida humana que pode ser historicamente considerada dão-se em um espaço que muitas vezes é um espaço geográfico ou político, e que, sobretudo, sempre e necessariamente constituir-se-á em espaço social. Mas com as expansões dos domínios históricos que começaram a se verificar no último século, este Espaço também pode ser perfeitamente um “espaço imaginário” (o espaço da imaginação, da iconografia, da literatura), e adivinha-se que em um momento que não deve estar muito distante os historiadores estarão também estudando o “espaço virtual”, produzido através da comunicação virtual ou da tecnologia artificial. Pode se dar que, em um futuro próximo, ouçamos falar em uma modalidade de História Virtual na qual poderão ser examinadas as relações que se estabelecem nos espaços sociais artificialmente criados nos chats da Internet, na espacialidade imaginária das webpages ou das simulações informáticas, ou mesmo no espaço de comunicação quase instantânea dos correios eletrônicos – estas futuras fontes históricas com as quais também terão de lidar os historiadores do futuro. Espaço, nestas acepções e desdobramentos mais amplos, quase se avizinha de outra noção importante, que é a de "lugar". Mas, por hora, para as reflexões mais imediatas que desenvolveremos a seguir, consideraremos apenas o Espaço nos seus sentidos tradicionais: como lugar que se estabelece na materialidade física, como campo que é gerado através das relações sociais, ou como realidade que se vê estabelecida imaginariamente em resposta aos dois fatores anteriores.

Tão logo se deu conta da importância de entender o seu ofício como a Ciência que estuda o homem no tempo e no espaço – e essa percepção também se dá de maneira cada vez mais clara e articulada em meio às revoluções historiográficas do século XX – os historiadores perceberam a necessidade de intensificar sua interdisciplinaridade com outros campos do conhecimento. Emergiu daí uma importantíssima interdisciplinaridade com a Geografia, ciência que já tradicionalmente estuda o espaço físico – e, se considerarmos outras formas de espaço como o ‘espaço imaginário’ e o ‘espaço literário’, poderíamos mencionar ainda a interdisciplinaridade com a Psicanálise, com a Crítica Literária, com a Semiótica e com tantas outras disciplinas que ofereceram novas possibilidades de métodos e técnicas aos historiadores. Na verdade, a noção de espacialidade foi se alargando com o desenvolvimento da historiografia do século XX: do espaço físico ao espaço social, político e imaginário, e daí até a noção do espaço como “campo de forças” que pode inclusive reger a compreensão das práticas discursivas. Neste momento, contudo, iremos nos concentrar nas noções de espaço que surgem a partir da interdisciplinaridade com a Geografia.

A interdisciplinaridade entre a História e a Geografia é estabelecida, entre outros aspectos, através de conceitos como “espaço”, “território”, “região”, e é sobre eles que passaremos a refletir nas próximas linhas. Em uma de suas instâncias mais primárias, o espaço pode ser abordado como uma área indeterminada que existe previamente na materialidade física (e, neste caso, ainda não estaremos considerando as noções de ‘espaço social’, de ‘espaço imaginário’ e de ‘espaço literário’ que já foram mencionadas). Foi a partir desta noção fundadora que, na Geografia tradicional, começaram a emergir outras categorias como a de “paisagem”, de “território” e de “Região” – noções de que logo os historiadores começariam a se apropriar para seus próprios fins.

Grosso modo, uma região é uma unidade definível no espaço, que se caracteriza por uma relativa homogeneidade interna com relação a certos critérios. Os elementos internos que dão uma identidade à região (e que só se tornam perceptíveis quando estabelecemos critérios que favoreçam a sua percepção) não são necessariamente estáticos. Daí que a região também pode ter sua identidade delimitada e definida com base no fato de que nela poder ser percebido um certo padrão de interrelações entre elementos dentro dos seus limites. Vale dizer, a região também pode ser compreendida como um sistema de movimento interno. Por outro lado, além de ser uma porção do espaço organizada de acordo com um determinado sistema ou identificada através de um padrão, a região quase sempre se insere ou pode se ver inserida em um conjunto mais vasto.

Esta noção mais ampla de região – como unidade que apresenta uma lógica interna ou um padrão que a singulariza, e que ao mesmo tempo pode ser vista como unidade a ser inserida ou confrontada em contextos mais amplos – abrange na verdade muitas e muitas possibilidades. Conforme os critérios que estejam sustentando nosso esforço de aproximação da realidade, vão surgindo concomitantemente as várias alternativas de dividir o espaço antes indeterminado em regiões mais definidas. Posso estabelecer critérios econômicos – relativos à produção, circulação ou consumo – para definir uma região ou dividir uma espacialidade mais vasta em diversas regiões. Posso preferir critérios culturais – considerar uma região lingüística, ou um território sobre o qual são perceptíveis certas práticas culturais que o singularizam, certos modos de vida e padrões de comportamento nas pessoas que o habitam. Posso me orientar por critérios geológicos – e estabelecer em um espaço mais vasto as divisões que se referem aos tipos de minerais e solos que predominam em uma área ou outra – ou posso ainda considerar zonas climáticas. A Geografia, como é de se esperar, privilegia certos critérios: muito habitualmente lança luz sobre certos aspectos que se relacionam com a materialidade física, e pode ou não relacionar estes aspectos a outros de ordem cultural (como é o caso, de modo geral, da Geografia Humana).

Uma noção importante a ser considerada aqui, antes de examinarmos como a História pode se beneficiar da abordagem geográfica, é a de “paisagem”. Para a Geografia, uma paisagem é uma associação típica de características geográficas concretas que se dão numa região – ou numa extensão específica do espaço físico – e constitui um determinado um padrão visual que se forma a partir destas características que a singularizam (pensemos na paisagem de um Deserto, de uma Floresta, ou de uma Cidade). Podemos falar de uma “paisagem natural”, mas também de uma “paisagem cultural” – esta última dando a perceber as interferências do homem que acabam por imprimir-se na fisionomia de um determinado espaço conferindo-lhe uma nova singularidade.

Uma paisagem geográfica, desta maneira, surge em decorrência da repetição – em uma determinada superfície ou espaço – de certos elementos produzidos por combinações de formas e que, conforme já foi dito, tanto podem ser físico-naturais como humanos. A paisagem pode coincidir com uma “região natural” – conceito que definiremos a seguir – ou pode ser derivada de um padrão cuja singularidade associa-se a um tipo de ocupação agrícola ou organização humana do espaço. Para estes últimos casos, um campo de trigo ou uma cidade de alta densidade demográfica podem ser apontados como exemplos de paisagens que têm elaboradas culturalmente as suas materialidades físicas; e a multidiversificada vegetação que recobre uma floresta virgem, ou a vasta extensão de areia que constitui um deserto inóspito, podem ser indicados como exemplos de paisagens que coincidem com “regiões naturais”.

A paisagem, este padrão de visualidade que se mostra ao homem no seu estado de percepção mais espontânea, foi por motivos óbvios o primeiro grande aspecto a ser considerado pelo conhecimento geográfico no seu esforço de compreensão do mundo. Aliada ou não à percepção mais imediata de uma determinada paisagem, a noção de “região natural” cedo se constituiu em outra das mais primordiais noções geográficas, e baseia-se francamente no papel desempenhado por certos elementos físicos na organização do espaço. Pode-se considerar, neste caso, uma bacia hidrográfica, um conjunto afetado por um tipo de clima, ou uma montanha – e a partir deste ou daquele fato natural que assume uma centralidade na percepção ou análise é estabelecida em seguida uma rede de relações ou desdobramentos que terminam por definir o espaço. Exemplos clássicos de “regiões naturais” são as vastas e impenetráveis florestas que ainda resistem em muitas partes do globo às ações depredatórias do homem, ou a inóspita caatinga da qual a vida humana ocupa apenas os interstícios.

Estes e alguns outros são os espaços gerados pela materialidade física do mundo e pela Natureza, com nenhuma ou pouca participação do homem. A Montanha ou os rios impõem os seus limites e caminhos, uma zona climática dita suas regras. Por outro lado, ocorre também que a Política – aqui referida à vasta complexidade de estruturas de poder que estabelecem limites e centros de organização que terminam por reordenar o espaço e a materialidade de múltiplas maneiras – também produz a sua própria espacialidade. Na superfície do globo terrestre, formam-se nações, e dentro delas estados, províncias, unidades administrativas, comarcas, cidades. Todas estas divisões foram criadas pelo homem, e acabam por se superpor de um modo ou de outro às divisões impostas naturalmente, ou também por interagir com as paisagens que podem ser percebidas de diversas maneiras. Desta maneira, os aspectos físicos e os aspectos políticos - geralmente combinados de alguma forma – terminam por serem aqueles que vêm à tona mais espontaneamente quando se pensa em considerar a espacialidade. Mas, como sempre frisamos, estes aspectos podem não ser os mais importantes em função de uma determinada análise da realidade a ser empreendida, seja esta uma análise histórica, geográfica, sociológica, ou antropológica. Voltaremos a esta questão oportunamente.

Quando os historiadores – particularmente diante de certos objetos históricos a serem examinados – deram-se conta da necessidade de colocar em um mesmo nível as noções de tempo e espaço, logo começaram a dialogar com conceitos mais tradicionais da Geografia como aqueles que atrás explicitamos. O relacionamento entre História e Geografia, a partir deste momento, começou a gerar uma história escrita em cores mais vivas: nascia, ou se consolidava, uma forte relação interdisciplinar, que hoje podemos examinar com um olhar retrospectivo.

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Leia aconinuação deste artigo em: http://ning.it/gP464e
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BARROS, José D'Assunção. "Espaço, Tempo e História - interações necessárias". Vária História, BH, vol.22, n°36, p.460-476, jul/dez.2006. http://ning.it/gP464e]

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