segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um pouco mais sobre a Dialética

No post anterior, começamos a desenvolver alguns comentários sobre o terceiro paradigma historiográfico que adquire importância já no século XIX: o Materialismo Histórico. Voltaremos a falar neste paradigma em outras oportunidades. Por ora, vamos discorrer mais detidamente sobre um aspecto que apareceu no último texto: a Dialética. Veremos que esta não aparece exclusivamente noâmbito do Materialismo Histórico; e que, na história da filosofia, o conceito de "dialética" é já antigo, embora nem sempre com o sentido moderno.
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Se quisermos buscar as mais remotas origens da Dialética no sentido de contraposição de elementos contraditórios que geram o incessante movimento do mundo, terminaremos por encontrar na Antiguidade Grega o mais enigmático dos filósofos pré-socráticos: Heráclito de Éfeso (544-484 a.C) . Nenhum dos antigos filósofos gregos percebeu e explicitou com tanta clareza a multiplicidade da realidade, seu caráter contraditório, e o fato de que todas as coisas estão em relações recíprocas. O Ser surge já em Heráclito como algo múltiplo, em incessante movimento e constituído por oposições internas, o que também se aplica ao homem. O “fragmento 88” já expõe este caráter incontornavelmente contraditório da natureza humana – na verdade de tudo e todas as coisas – que traz nas suas próprias oposições internas o segredo do seu movimento:

“Em nós, manifesta-se sempre uma e mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. Pois a mudança de um da o outro e reciprocamente” (Heráclito de Éfeso, Fragmento 88).

A imersão de tudo no Devir e a permanente transformação a que estão sujeitas todas as coisas também aparece em diversos dos fragmentos de Heráclito. Aqui surge o famoso dito atribuído a Heráclito de que “é impossível alguém entrar duas vezes no mesmo rio” (Fragmento 91), já que no segundo momento teríamos tanto um novo rio como um novo homem .
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Esta idéia matriz de uma dialética que imbrica “Movimento”, “Contradição”, “Reciprocidade” e “Totalidade” – e que um dia fora intuída por Heráclito de Éfeso – adquire com o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831) um desenvolvimento sistemático, base de toda uma filosofia que se postula como apta a compreender toda a realidade. Pode-se dizer que Hegel acrescentou algo a Heráclito. À sugestão heraclitiana de que o universo seria formado por forças em eterna mutação e contradição, Hegel agregou a idéia igualmente importante de que essa totalidade que constitui o mundo natural e humano poderia e deveria ser compreendida "racionalmente". Enquanto Heráclito contemplava o incessante movimento dialético gerado pela oposição entre contrários, Hegel tenta compreender esse movimento, entendendo-o como sistema .
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O Real, para Hegel, é Racional. O Racional, em contrapartida, também é Real. A Dialética assume aqui a sua forma moderna. Hegel verá nela certo sentido, e não simplesmente um imprevisível entrechoque de forças diversas. Para Hegel, este sentido é o aprimoramento, o desvelamento, a objetivação da Razão, grande sujeito de sua história universal. Há um ponto a ser atingido pela Dialética Hegeliana – um “telos”, isto é, um fim a atingir. Tal como os iluministas do século XVIII, Hegel acredita no Progresso, no inevitável progresso da humanidade. Mas ele vê essa caminhada rumo a um futuro cada vez mais aperfeiçoado não como uma simples linha reta, e sim como uma sucessão de círculos dialéticos que se resolvem uns nos outros.
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O movimento dialético, na perspectiva hegeliana, prevê uma Tese inicial que logo será confrontada pelo desenvolvimento de uma “contradição” saída de si mesma de modo a formar uma Antítese. O confronto entre Tese e Antítese – isto é, entre duas realidades contraditórias que se confrontam dialeticamente – gera ao final do processo a Síntese: um novo momento do processo que, então, pode reiniciar da mesma maneira o movimento de transformações dialéticas. O círculo dialético, orientando-se sempre para novas direções e produzindo sempre o novo, jamais cessa de girar, seja na natureza ou no mundo humano. Totalidade, Contradição, Movimento, é disto que se trata. Uma Totalidade na qual se interpenetram os contrários, e de cujo confronto gera-se o Movimento de todas as coisas, sejam elas aspectos da natureza ou fenômenos relativos às sociedades humanas.
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Em uma passagem da 'Fenomenologia do Espírito' (1807), a primeira obra em que Hegel tenta esclarecer mais sistematicamente o pensamento dialético, Hegel ilustra o movimento dialético de maneira quase poética, contrapondo as realidades da Semente, da Flor e do Fruto nas diversas fases da realidade de uma Planta:

“O botão desaparece no desabrochar da flor, e pode-se afirmar que é refutado pela flor. Igualmente, a flor se explica por meio do fruto como um falso existir da planta, e o fruto surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas formas não apenas se distinguem, mas se repelem como incompatíveis entre si. Mas a sua natureza fluida as torna, ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra” (HEGEL, Prefácio de Fenomenologia do Espírito)

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Além de propor um novo formato para a concepção iluminista do Progresso, doravante concebida de acordo com uma sucessão de círculos nos quais as realidades se contraditam na gestação do novo, a Dialética Hegeliana não apresenta apenas um fim; ela também considera um início. O seu ponto de partida é o Espírito, o mundo das idéias. É a partir do Espírito que se institui o movimento do mundo . Teria sido um movimento do Espírito o que colocou o universo em movimento, e, agora, é ainda o Espírito que está à partida de cada pequena transformação que se dá neste mesmo universo, ou de cada pequeno círculo dialético que se produz no incessante movimento de todas as coisas. O mundo humano, histórico por excelência segundo Hegel, é o melhor exemplo deste incessante devir dialético que se dá a partir dos movimentos do Espírito.
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A novidade introduzida por Karl Marx, já ovimos em momento anterior, foi precisamente inverter o ponto de partida do processo dialético. Enquanto Hegel o situava no Espírito, Marx o localizava na Matéria. É de uma realidade concreta, ou das condições materiais objetivas que se apresentam aos homens organizados em sociedade, que parte o movimento histórico de transformação da realidade, sendo por isto necessário que também a historiografia procure compreender os desenvolvimentos histórico-sociais do mundo humano a partir da análise das condições materiais, objetivas . No seu aspecto mais irredutível, a História principia com as condições que se apresentam aos homens para que eles produzam e reproduzam a sua sobrevivência. O modo como os homens produzem a sua própria vida social e material seria o verdadeiro ponto de partida de toda a análise histórica. Surge aqui um dos conceitos fundamentais para o Materialismo Histórico: o de “Modo de Produção”, que discutiremos mais adiante.
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Colocado nestes termos, o movimento histórico, para os fundadores do Materialismo Histórico, é simultaneamente dialético e dependente das condições objetivas e materiais da existência humana. Concomitantemente a isto, a História dá-se em duas dimensões distintas, mas interligadas, pois ela é simultaneamente a “História das Lutas de Classe” e a “História da sucessão de Modos de Produção”. Só este duplo enunciado, o primeiro bem apresentado no Manifesto Comunista (1848) , o segundo discutido em A Ideologia Alemã (1846), já seria suficiente para alçar Karl Marx e Friedrich Engels como instituidores de um modo de ver a História radicalmente novo e diferenciado em relação à ampla maioria dos historiadores do seu tempo.
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Eric Hobsbawm, no balanço de 1968 no qual lança a indagação sobre “O que os historiadores devem a Karl Marx”, mostra como os historiadores do século XIX, a exemplo da Ranke, se ocupavam então de examinar basicamente as Guerras, a Diplomacia, a vida dos grandes líderes, aqui ou ali, eventualmente, a História Institucional, mas sobretudo uma História (da) Política. Não uma História Política no moderno sentido de uma “história do poder”, mas uma história da política, ou seja, dos meios políticos e dos homens que a faziam nos Parlamentos e outros órgãos ligados ao estado. Já os fundadores do Materialismo Histórico, ao proporem que “a História é a História da Luta de Classes”, o que estavam fazendo senão propor um deslocamento do olhar do historiador para uma dimensão impensada até então – a História Social? E, ao mesmo tempo, ao sustentarem que a História é a “História dos Modos de Produção”, o que estavam propondo senão deslocar o olhar historiográfico para as bases econômico-sociais e suas consequências sobre a sociedade e a História? Não seria isto, essencialmente, uma inédita abertura para a História Econômica? Guardemos estas duas grandes contribuições: Marx e Engels introduzem um novo e duplo olhar na História: uma atenção para a dimensão Econômico-Social.
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Será importante ressalvarmos que muitos dos conceitos introduzidos por Marx e Engels, ou muitas das expressões que mais tarde se tornaram conceitos e fundamentos do Materialismo Histórico, nem sempre foram enunciados com o objetivo de delinear naquele momento uma maior precisão conceitual. No “Prefácio para a Crítica da Economia Política” (1859) Marx apresenta um texto que é ao mesmo tempo de alta eficiência para sintetizar os aspectos centrais da nova concepção (o Materialismo Histórico) mas que ao mesmo tempo é extremamente conciso. Já aparecem ali expressões que hoje constituem conceitos fundamentais do Materialismo Histórico. Mas muitas daquelas expressões suscitaram debates posteriores: o que seriam as “forças de produção”, as “relações de produção”, que lugar ocupariam precisamente no “modo de produção”; o que é a “base” e a “superestrutura” . Os posteriores encaminhadores do Materialismo Histórico passaram a discutir o sentido de cada uma destas expressões, o seu lugar dentro do sistema proposto, e com isto foram surgindo variações possíveis na teoria do materialismo histórico. De igual modo, a História-Efetiva e a História-Conhecimento contribuíram, cada qual à sua maneira, para favorecer ajustes em uma ou outra direção.
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É preciso ainda considerar que, de modo algum, Marx ou Engels estavam propondo um modelo abstrato que desejariam que funcionasse como receita para compreender o real, e na Ideologia Alemã (1846) eles já expressam claramente sua preocupação com este aspecto ao rejeitarem o uso apriorístico das abstrações teóricas: “estas, em si mesmas e separadas da história real, não têm valor algum e somente podem servir para facilitar a organização do material histórico [...] Não apresentam, diferentemente da filosofia, nenhuma receita ou esquema que permita definir corretamente as épocas históricas” (FONTANA, 2004, p.202). Nada mais avesso a Marx e Engels, portanto, do que a idéia de utilizar os conceitos marxistas como formulário rígido para que neles venham a caber, a posteriori, a realidade histórica. Pior ainda, chegou-se a utilizar análises historiográficas particularizadas de Marx, com relação a situações ou processos específicos, como se estas pudessem se tornar modelos para o desenvolvimento de todas as sociedades humanas, o que em certo momento trouxe fortes preocupações aos próprios fundadores do Materialismo Histórico.
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Assim, em uma das Cartas Russas, datada de 1878, Marx protestava contra o uso indevido do “capítulo 24” de O Capital (1867), no qual ele se havia empenhado em traçar o caminho pelo qual, a partir do Feudalismo, havia surgido a ordem econômica capitalista na Europa Ocidental. No texto, Marx rejeita a tentativa de “metamorfosear o [seu] esboço histórico da gênese do capitalismo no ocidente europeu numa teoria histórico-filosófica de marcha geral que o destino impõe a qualquer povo, sejam quais forem as condições históricas em que se encontre” . Eis um bom exemplo de que os fundadores do Materialismo Histórico não pretendiam criar ou sugerir um modelo único para o desenvolvimento histórico da humanidade, tal como ocorreu em adaptações posteriores de seu pensamento por marxistas que, sobre as bases de seu pensamento, construíram uma doutrina


(o texto exposto neste post foi extraído do terceiro volume de meu livro "Teoria da História" (BARROS, José D'Assunção. Teoria da História. vol 3: os paradimas revolucionários. Petrópolis: Editora Vozes, 2011)

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