sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O conceito de Modo de Produção

Em texto anterior, sintetizamos os três elementos fundamentais que constituem a base efetiva do Materialismo Histórico como um paradigma historiográfico: Materialismo, Dialética, Historicidade Radical. No último texto, esclarecemos o aspecto da Dialética, retomando também outros autores anteriores a Marx, como Hegel, que se valeram deste conceito. Ressaltamos, contudo, que a dialética proposta por Hegel era uma dialética idealista, enquanto a dialética proposta por Marx seria uma dialética materialista. Dialética e Materialismo se unem, portanto, no pensamento de Marx e na base daquilo que viria a se constituir neste novoparadigma historiográfico que é o Materialismo Histórico. No presente texto, vamos abordar mais especificamente o conceito marxista que permite essa junção entre Materialismo e Dialética: o Modo de Produção.

A idéia de considerar o “Modo de Produção” como ponto de partida para as análises históricas e sociológicas foi a grande novidade trazida por Marx e Engels, no que concerne particularmente à sua contribuição para as futuras ciências sociais e humanas . O conceito, certamente, beneficiou-se de inúmeras redefinições face ao desenvolvimento de trabalhos historiográficos mais específicos. Mas podemos entendê-lo inicialmente como a combinação das “forças de produção” e “relações de produção” correspondentes a certo período ou sociedade historicamente localizada, sendo que estes dois fatores – as “forças de produção” e as “relações de produção” – estão fadados a se tornarem contraditórios no processo dialético, apesar de terem sido tão bem ajustados no momento nascente do modo de produção, já que as ‘relações de produção’ são geradas no interior de uma determinada formação social precisamente pelas ‘forças de produção’.

É o próprio Marx quem nos diz, no Prefácio de Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859), que as ‘relações de produção’, que um dia foram o motor das ‘forças de produção’, tornam-se o seu entrave. Neste momento, ou no momento de maior acirramento da contradição, estas duas realidades mal ajustadas precisam fazer o seu acerto dialético. As ‘forças de produção’ em expansão não comportam mais a reação e resistência que lhes é imposta pelas ‘relações de produção’ imobilizadas, retrógradas, inadequadas diante de uma realidade que já se modificou. Sobrevém, então, um momento de “revolução social”. A Tese confrontou-se com a sua Antítese, e ambas precisarão ser superadas pela Síntese, que será o ponto de partida para um novo ‘modo de produção’. Este salto de qualidade para o novo momento é na história provocado pela “revolução”, um conceito que também é apropriado pela concepção materialista da História .

Em exemplos práticos, vejamos o que seria um ‘modo de produção’, as ‘forças de produção’ e as ‘relações de produção’. Retomemos o exemplo do mundo medieval. O chamado ‘modo de produção feudal’ era constituído por forças de produção e relações de produção bem específicas. No campo das forças de produção teríamos toda a materialidade e força vital, toda a tecnologia e modos de apropriação da natureza e otimização do trabalho de que dispõe o homem medieval para reproduzir a existência de sua sociedade diante das condições que lhe é oferecida. Constituem a totalidade das ‘forças de produção’ os ‘instrumentos de produção’ – como o arado ou a charrua –os ‘meios de produção’, que seriam os ambientes dos quais os homens medievais poderiam extrair materiais para a sua própria vida e também transformar em ambiente para o seu trabalho, e por fim os ‘agentes de produção’, que para simplificar coincidiria com a humanidade que trabalha, no caso da Idade Média os servos (mas depois, também, os mercadores e artesãos, que virão a se constituir em agentes históricos importantes para a superação do modo de produção feudal). Também estariam incluídas no campo das ‘forças de produção’ as técnicas conhecidas pelos homens para produzir o seu trabalho ou se apropriar do meio, como o cultivo unidirecional ou o plantio alternado.

Ocorre que tudo isto – instrumentos, técnicas, meios de produção e agentes de produção – está sempre em expansão, em certos momentos uma expansão em ritmo mais lento, em outros uma expansão em ritmo mais acelerado. O arado e a charrua constituem aperfeiçoamentos nos instrumentos de produção, as técnicas de cultivo se desenvolvem e se tornam mais eficientes, os meios de produção cedem espaço para novas apropriações humanas através de arroteamentos e ocupação de florestas antes intransponíveis, e a força de trabalho se desenvolve, torna-se mais eficaz, mas também mais complexa, mais beneficiada pela interação humana. A certa altura, com a melhoria da agricultura, produz-se um excedente e, mais bem alimentada, ocorre uma melhoria na qualidade de vida, abrem-se mesmo espaços para que nem todos precisem se dedicar a uma agricultura fechada, e muitos dos camponeses que eram encarregados de fazer tarefas relacionadas ao pequeno comércio local tornam-se comerciantes, engajam-se em empresas de longa distância, autonomizam-se em novas funções; alguns se tornam artesãos; outros continuam camponeses, mas já mais inquietos com as suas condições de vida e as amarras sociais que lhes são impostas.

Estas amarras são precisamente as ‘relações de produção’. No mundo medieval elas partilhavam a humanidade em três grupos básicos, apesar de existirem também outras funções e profissões. A nobreza, dominante, ocupa-se da guerra; o clero, desempenha as funções relacionadas à vida religiosa, fundamental para o homem medieval e mesmo para a manutenção do sistema (na verdade, o próprio clero também se dividia em um alto clero, oriundo da nobreza, e categorias vindas de extratos sociais inferiores, mas de modo esquemático – de acordo com o próprio esquema medieval das “três ordens” – pode ser considerado uma segunda ordem, ao lado da nobreza). Enquanto isto, a terceira ordem, a base produtiva do triângulo trifuncional, era precisamente o mundo do trabalho, em especial os servos que produziam o sustento alimentar de toda a sociedade, de modo que no esquema ideológico medieval esta partição aparecia como a célebre divisão em “belatore, oratore e laboratore”. Este esquema mental faz parte da “ideologia” – outro conceito importante para o marxismo – e que juntamente com a arte, com o sistema jurídico, com as relações de parentesco, fará parte da superestrutura que deriva da base, do que alguns materialistas históricos chamam de infra-estrutura.

Ora, precisamente no momento em que as ‘forças de produção’ expandidas permitem que se produza um excedente, na chamada ‘fase de expansão feudal’, é que se irá produzir ou se intensificar a contradição fundamental do mundo feudal: uma produção maior do que o consumo. Esta antiga organização social, tão rigidamente estratificada, passa a não mais condizer com um mundo em expansão. Resistente às forças que se articulam a esta expansão, a organização social cedo terá de dar lugar a uma outra, que predisporá ao surgimento, no período moderno, de um mundo que se organizará em torno do mercado, em uma primeira fase do que seria mais tarde um novo modo de produção: o ‘modo de produção capitalista’.

Estes esquemas, relativamente simples, são sugeridos por Karl Marx em A Ideologia Alemã (1946), ou ao menos podem ser deduzidos de uma primeira leitura dos seus escritos. Ocorre, contudo, que o ‘modo de produção’ produzido teoricamente para uma compreensão da sociedade é apenas um modelo. Na realidade histórica efetiva este modelo não existe, da maneira como a razão o organiza. É por causa disso que nos anos 1970 surgirá o conceito de “formação social”, e o de uma “formação social específica”. Trata-se de uma mediação para a aplicação da idéia de ‘modo de produção’ a sociedades históricas mais específicas, ambientadas em um espaço sob determinadas circunstâncias, e relacionadas a especificidades e complexidades adicionais, afeitas a um dinamismo que lhe é próprio.

A noção de “formação econômico-social” surge portanto para dar conta desta mediação entre o modelo e as realidades históricas específicas, achando-se registrada no livro de Leporini e Serene (1973) que leva este título. Pierre Vilar também lança mão do novo conceito, e o utiliza de maneira peculiar. A “formação econômico-social” poderia ser caracterizada por um “modo de produção dominante”, o que pressupõe a possibilidade da permanência de traços dos modos de produção anteriores ao lado da constituição de fatores novos, que já antecipam um modo de produção futuro e contribuem decisivamente para abalar a dominação presente. Estas idéias aparecem no célebre artigo escrito para a revista dos Annales em 1973, no qual Pierre Vilar polemiza com Althusser utilizando o sugestivo título “História Marxista, história em construção” (1973, p.165-198).

Sobre a idéia de uma formação social que inclui um modo de produção dominante e persistências de períodos anteriores, será oportuno lembrar uma carta de 1868 escrita por Marx a Engels, portanto no ano seguinte à publicação de O Capital. Nesta carta – que atesta simultaneamente a riqueza do pensamento dos fundadores do Materialismo Histórico e a sua capacidade de repensar continuamente os fundamentos do campo teórico-metodológico que estavam fundando – Marx escreve a Engels, com todas as letras, que tinha bem recentemente adquirido a consciência de que as formas sociais pré-capitalistas podiam sobreviver em meio ao Capitalismo. Ou seja, praticamente depois de escrever toda a sua obra conhecida até O Capital (1867), e três anos antes de escrever sua última obra de cunho historiográfico (“A Guerra Civil na França”, 1871), Karl Marx ainda formularia um ajuste que somente seria repensado mais sistematicamente cem anos depois.

É em vista de situações como estas que freqüentemente os filósofos, historiadores e sociólogos marxistas, e também pensadores ligados a outros campos teóricos, têm retornado freqüentemente a textos de Marx que passaram despercebidos diante de obras que foram transformadas em cânones. Isso ocorreu com “O fetichismo da Mercadoria”, inspirador da Escola de Frankfurt, com os Grundrisse, inspiração para a escola Inglesa do Marxismo, e certamente ainda ocorrerá muito com a análise da correspondência de Marx e Engels com interlocutores diversos.

O conceito de "modo de produção" ainda se beneficiaria de inúmeras proposições, ao cuidado de teóricos, filósofos, sociólogos e historiadores que se vincularam à concepção do Materialismo Histórico. O paradigma do Materialismo Histórico, com seus diversos conceitos abriu-se, e abre-se ainda hoje, a uma discussão muito rica de possibilidades. Esse aspecto é importante para compreendermos que um paradigma historiográfico, e o Materialismo Histórico em particular, jamais deve ser tratado como um sistema fechado, definitivo. Um paradigma constitui uma base comum a partir da qual os praticantes de um campo de saber podem desenvolver suas concepções, criando novas alternativas no interior do paradigma.


O presente texto foi extraído do Terceiro Volume do meu livro 'Teoria da História' (BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 3: os paradigmas revolucionários. Petrópolis: Editora Vozes, 2011).

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