quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O Tempo (4). O Tempo Iluminista e a noção de Progresso

Tal como assinala Koselleck em Passado Futuro, o projeto moderno do Iluminismo vê a história como uma marcha do Espírito Universal em direção à Liberdade. A História torna-se aqui, para retomar a expressão utilizada por Koselleck, um “singular coletivo”, uma grande história da humanidade, e é sintomático que a palavra “História”, no singular, substitua a expressão “Histórias”, no plural, ainda muito utilizada no período da História Teológica pré-iluminista para designar a superposição de diversas histórias superpostas que foram se acumulando na experiência humana.

O surgimento e desenvolvimento da noção de Progresso, tão bem estudado por Robert Nisbet em seu ensaio A História da Idéia de Progresso (1985) desempenhou um papel fundamental não apenas para as novas concepções historiográficas que iriam surgir, como também para trazer sustentação à maior parte das visões de mundo que foram se constituindo no ocidente, fornecendo um traço importante para a elaboração das Identidades e para a auto-definição das sociedades, grupos sociais e indivíduos no ocidente (DIEHL, 2002, p.21-44).

Emmanuel Kant, filósofo que, como Hegel, atribuía uma importância particular à História, pode ser destacado como exemplo do modelo iluminista. Para ele, a História caminha na direção do melhor. Em sua interpretação específica, a competição entre os seres humanos constitui o grande motor da história – gerando discórdias e concórdias entre os homens e, por uma razão ou por outra, conduzindo-os coletivamente através do Progresso. E se as ações humanas incluem as pequenas mesquinharias, os interesses privados, os movimentos individualistas e os vícios humanos, a história termina por transmudar em utilidade coletiva todo este entrelaçado de ações humanas. Assim, por exemplo, se é da avareza que surge o comércio, este se torna contudo um ganho para a civilização (BODEI, 2001, p.46), um fator de progresso.

Teleológico e Otimista, Racional e Idealista, o modelo introduzido pelo projeto iluminista irá encontrar mais tarde uma sofisticada formulação com Hegel, que aprimora a concepção dialética a adapta a esta concepção otimista, além de reformular esta concepção teleológica de uma história do Espírito de acordo com os interesses oitocentistas do Estado-Nação, o que o leva a apresentar, de certo modo, uma perspectiva mais conservadora, tal como requeriam os novos tempos da restauração.

Cada uma destas agências – o Espírito, a Liberdade, a Razão, o Estado – mas também o Povo, acham-se cuidadosamente refletidos em sua obra de introdução à filosofia da história que foi intitulada A Razão na História (2008). Mas, vale dizer, embora prossiga a heróica leitura do Iluminismo como manifestação da Razão contra os preconceitos de sua época, o Hegel de Fenomenologia do Espírito já desconfia da capacidade do povo como força autônoma. Enquanto no item 341 de A Fenomenologia do Espírito há uma definição do Iluminismo como “pura inteligência”, no item 342 Hegel já se refere a “má inteligência da multidão” (2007, p.373, 374). Sintomaticamente, reaparece ali a caminhada do Iluminismo, a meta-história da Razão que avança para o seu destino de realização plena, mas o “povo”, em sentido depreciativo de multidão manipulável, já se alinha no campo das forças retrógradas. Esboça-se também uma crítica contra a ‘singularidade’, aquilo que se afasta da razão coletiva, e podemos entrever aqui alguns ecos do embate entre o paradigma generalista do positivismo e o paradigma particularizante que já ia sendo proposto pelo historicismo:


“O Iluminismo não enfrenta indistintamente estes três lados do inimigo [clero, déspota, povo]; com efeito, sendo sua essência inteligência pura – que é universal em si e para si – sua verdadeira relação com o outro extremo é aquela em que o Iluminismo se dirige ao [que há de] comum a ambos. / O lado da Singularidade, que se isola da consciência espontânea universal, é o seu oposto [...]” (HEGEL, 2007, p.375).


De todo modo, o modelo de tempo que aqui se pressupõe é o do vetor que aponta para um futuro antecipável: o da vitória da Razão Humana. A história, em Hegel, é movida por uma combinação entre as paixões humanas e a ‘astúcia da Razão’, e não é por acaso que o filósofo, a certa altura, utiliza a certa altura a metáfora dos “vapores” e do “vento”. As paixões dos indivíduos constituem as energias que surgem na história e que darão movimento a esta mesma história, mas é a ‘astúcia da Razão’ que as jogará umas contra outras, produzindo uma determinada direção que, ao fim das contas, resulta em progresso.

A concepção histórica de Hegel também concede um lugar importante aos grandes indivíduos, cumprindo notar que a grandeza destes está precisamente no fato de que eles se tornam “expressão de forças coletivas”. Através destes grandes homens, mas também através das paixões humanas que são levadas a se entrechocar com vistas a serem conduzidas a uma racionalidade oculta, uma força irresistível vai se impondo à História. Forçando a sua entrada de modo a irromper como novo Presente e a romper com o Passado em um processo dialético, no qual uma nova semente como que busca destruir e renovar a sua casca, “o espírito escondido bate às portas do presente” (HEGEL). Das contradições surge o movimento da História, em uma interpretação dialética do tempo histórico que, ao contrário da que se verá em Marx, é ainda idealista, originada no Espírito em sua caminhada para a liberdade cada vez maior em relação às limitações humanas.

Linear em simples linha reta, como pode ser imaginado a partir da perspectiva de alguns iluministas, ou, ainda linear, mas, com Hegel, articulado a pequenos circuitos dialéticos que impulsionam a história para a frente através do confronto entre Teses e Antíteses com vistas a atingir a Síntese e gerar novos recomeços a partir de um novo ponto, o Tempo se apresenta aqui como o inevitável caminho a ser percorrido pela Humanidade em sua marcha para o Progresso, para a Liberdade, e para a plena realização da Razão Humana. O Real é Racional, e a história efetiva e a consciência histórica coincidem, de modo que “fazer história” e “fazer a história” são experiências que se recobrem.

O projeto iluminista e a história hegeliana, tal como observa Koselleck em seu livro Futuro Passado (1979), concebem a História do ponto de vista de uma Consciência Universal que se afirma e se realiza a cada ciclo como reflexão, exteriorização e retorno a si, de modo que é possível a cada avanço interiorizar uma consciência sempre superior de si (Reis, 2006). Estamos então em pleno otimismo em relação à racionalidade, e o tempo histórico pode ser concebido como lugar da sua realização crescente e cada vez mais aperfeiçoada. Do mesmo modo, os historiadores não deveriam fazer mais do que perceber e dar a perceber a racionalidade inerente aos processos históricos, da mesma forma que os processos históricos coincidem com a triunfante história desta mesma racionalidade .

Sintetizando os seus principais aspectos, o tempo iluminista mostra-se aqui Linear (ou linear-dialético, para o caso do Tempo Hegeliano), e também Progressivo, Acelerado, Teleológico (um vetor apontando para o futuro do Reino da Razão Plena) No caso do Iluminismo é ainda um tempo cravejado de Eventos que traduzem evolução e revoluções, embora já na perspectiva hegeliana, um modelo que surge já no período da Restauração, prevaleça apenas o caráter evolutivo dos eventos.

Este ponto, aliás, constitui uma sutil diferença entre o Tempo Iluminista e o Tempo Hegeliano. Em uma modernidade que acelera o tempo em direção ao futuro realizador da máxima Liberdade, o projeto iluminista facilmente sacrifica o passado-presente no altar da Deusa Razão com vistas à realização deste futuro pleno, de modo que a revolução, a violência contra o Presente em nome do Futuro, encontra-se plenamente justificada. Se retornarmos aos tempos da Revolução Francesa, podemos facilmente compreender sob esta perspectiva de aceleração em direção ao futuro a radical violência contra o Presente-Passado que foi consubstanciada no período do Terror.

Remo Bodei, ao discutir as filosofias da História no século XVIII em seu livro 'A História tem um Sentido?' (1997), chama atenção para os pequenos ajustes que precisaram ser feitos nesta concepção iluminista do tempo sob a pressão das novas descobertas geográficas. Presos à sua concepção universalista da história e incapazes de compreender as diversas sociedades do planeta como dotadas de desenvolvimentos próprios e específicos (como os poucos historiadores românticos de sua época e alguns dos historicistas do século seguinte) alguns dos historiadores iluministas conceberam o Tempo Histórico como dotados de tempos múltiplos correspondentes às diversas sociedades, mas todos seguindo o mesmo padrão de desenvolvimento e referidos a certo grau de desenvolvimento no espectro que ia da selvageria à civilização. Assim, Bodei chama atenção para um historiador jesuíta do século XVIII chamado Lafitteau, que ao estudar os iroqueses do Canadá vira neles o grau de cultura que um dia tiveram os atenienses clássicos, da época de Péricles. Considerava-os quase ultrapassando a barbárie, e já capazes de elaborar discursos retóricos como o dos gregos do período clássico (BODEI, 2001, p.30).

Bodei prossegue mostrando que, na concepção do historiador jesuíta Lafitteau, os iroqueses do Canadá estavam em defasagem temporal e podiam ser considerados como “antigos atenienses que viviam no presente histórico médio da Europa”. Seria mesmo possível acrescentar que “os ameríndios da Amazônia seriam nossos contemporâneos que estacionaram na Idade da Pedra” (BODEI, 2001, p.30). Uma tal concepção situa a Europa das Luzes na vanguarda de uma evolução, apresentando-a como estágio mais desenvolvido de um mundo coabitado por sociedades mais atrasadas neste mesmo caminho evolutivo, ou mesmo estagnadas.

Outra versão “evolutiva” do Tempo Iluminista, ainda no século XVIII, seria elaborada pelo filósofo e matemático francês Condorcet (1743-1797) . Ele dividirá a história do progresso espiritual em dez eras, acreditando que ele e seus contemporâneos estariam vivendo a transição da nona para a décima era – uma era que poderia ser compreendida como uma “sociedade de massa”. Remo Bodei (2001, p.35) sugere que o modelo de inteligibilidade dos acontecimentos proposto por Condorcet menos se assemelharia a uma simples reta temporal do que a uma “escadaria” – isto porque a História de determinado período retoma todos os progressos das fases históricas precedentes. Destarte, o Progresso teria apresentado um movimento extremamente lento nos degraus iniciais (como, por exemplo, a passagem para a era agrícola), e a partir daí um ritmo cada vez mais acelerado.

É aliás particularmente curioso e impressionante que estas idéias de Condorcet sobre a História – assinaladas por um “inacreditável otimismo histórico” (SOUZA, 2001, p.153) e registradas no texto que recebeu o título de Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano (1793) – tenham sido postas por escrito em um momento extremamente difícil na vida de Condorcet, que estava então clandestino e encontrava-se perseguido por ter publicado um panfleto pela Convenção naquele ano que antecederia o ano de sua prisão e morte em uma cela na pequena cidade francesa de Clamart.

Conforme a sua concepção sobre os progressivos estágios do desenvolvimento humano, na verdade já acalentada desde 1772 (antes de entrar para a atividade política), Condorcet acreditava que, àquela altura da História, o estado de evolução e aperfeiçoamento da humanidade não mais poderia ser interrompido, a não ser que ocorresse alguma catástrofe mundial, e que por isto caberia aos homens iluminados pela razão acelerar este progresso humano, que por si mesmo era inevitável (SOUZA, 2001, p.154). O Presente que então viviam ele e seus contemporâneos – passagem triunfal para o último degrau da evolução humana – afirmava definitivamente a sua superioridade sobre todas as épocas do Passado, e, depois de adentrarem este degrau supremo, os seres humanos dos séculos vindouros não fariam mais do assistir ao acrescentar de novas luzes a um progresso inesgotável. A História, portanto, fazendo-se coincidir o curso dos acontecimentos e a sua própria narrativa, não deveria fazer mais do que registrar aquela que seria a lei suprema do desenvolvimento humano, a sua “perfectibilidade indefinida” . O Progresso, dito de outro modo, constituía a grande lei que imprimia regularidade ao curso da História, e conhecer esta última, isto é, refletir sobre o que havia sido o homem até então e sobre o seu estado atual poderia contribuir para oferecer aos homens ilustrados os meios de acelerar o progresso e aproximar mais rapidamente a humanidade do futuro .

É interessante notar que, acompanhando a tendência mais geral do iluminismo, Condorcet tratava a humanidade como um único povo, tal como já haviam feito David Hume, Henri Rousseau e inúmeros outros homens de sua época, por oposição a contravozes mais excepcionais como a de Herder e por contraste com a tendência historicista que, no século XIX, afirmaria a particularidade de cada povo e portanto o seu filão histórico particularizante. Já a história iluminista, inclusive a de Condorcet, tendia a buscar generalizações e leis que se aplicassem a todo o gênero humano, e a história da humanidade não abarcava senão povos em estágios menos ou mais avançados em relação ao desenvolvimento possível do homem. Os métodos previstos por Condorcet para esta escrita historiográfica deveriam trazer à tona este desenvolvimento único – colocar em relevo por sobre a ampla diversidade de povos o que neles havia de uma humanidade comum, que era o que realmente importava:


“[tratava-se de escolher os fatos na história dos diferentes povos e] aproximá-los, combiná-los, para deles extrair a história hipotética de um povo único, e formar o quadro de seus progressos” (CONDORCET, Esquisse, p.86) [SOUZA, 2001, p.157]


Por outro lado, é certo que ao intenso otimismo condorcetiano se contrapunha um setor pessimista ou menos otimista da Ilustração. Rousseau, contra o enaltecimento dos progressos da civilização, já havia enaltecido o “bom selvagem”. Montesquieu, a pretexto de sua célebre obra sobre a Grandeza e Decadência dos Romanos, já discorrera mais sistematicamente sobre a questão da decadência dos impérios, e Diderot e D’Alembert já haviam refletido sobre a ruína das grandes realizações humanas com as inevitáveis revoluções (SOUZA, 2001, p.155). De todo modo, a apaixonada fé no progresso humano do setor otimista da intelectualidade iluminista passaria ao século seguinte, embora já não mais sob o signo inquietante da Revolução.

Este texto, seu princípio e sua continuação, também pode ser encontrado em:
http://ning.it/hoEWu4

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BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.
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Referências Bibliográficas:

BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208. http://ning.it/hoEWu4

BODEI, Remo. A História tem um sentido? Bauru: EDUSC, 2001 [original: 1997].

CONDORCET, Esquisse d’um tableau historique dês progreès de l’esprit huymain. Paris: Garnier-Flammarion, 1988 [Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Campinas; Edunicamp, 1990] [original: 1793]

DIEHL, Astor. « Aspectos da desilusão da idéia de progresso na História e suas implicações” in Cultura Histórica – memória, identidade e representação. Bauru: EDUSC, 2002. p.21-44.

HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2007.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979].

NISBET, Robert. História da idéia de Progresso. Brasília: UNB, 1985.

REIS, José Carlos. Tempo, História e Compreensão Narrativa em Paul Ricoeur. Locus, vol.12, n°1, jan/jul 2006.

SOUZA, Maria das Graças de. “Condorcet: História e Revolução” In Ilustração e História. São Paulo: Discurso Editorial, 2001. p.151-196.

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