No último texto deste blog, discutimos aspectos relacionados ao fato de que o Espaço é uma construção do historiador, quando ele desenvolve sua pesquisa, e quando apresenta seus resultados. O aspecto de construção da categoria "espaço" em um trabalho historiográfico aparece de diversas maneiras. Vimos por exemplo que certas categorias relacionáveis à idéia de espaço, como a "região", são construções que o historiador estabelece diante do seu objeto de pesquisa e da sua problemática. Não existe uma "região" dada desde sempre. Dependendo do objeto de estudo construído pelo historiador, poderá ser definida de uma maneira ou de outra a "região" que definirá a sua unidade de trabalho ou o seu âmbito de estudos.
Outro aspecto interessante desta construção historiográfica do espaço, conforme vimos, relaciona-se ao momento em que o historiador estabelece o seu recorte de pesquisa: um recorte definido por um período de tempo, um problema, e um espaço (um lugar). Esse lugar, também vimos, não precisa ser necessariamente um lugar geográfico, como uma determinada espacialidade definida no interior do espaço físico, nem tampouco um lugar político-administrativo (um país, um estado, uma cidade). O lugar - "espaço" tomado em uma acepção mais ampla - pode ser também um lugar social ou institucional: o ambiente da Corte, as forças armadas de um país. Podemos mesmo pensar em espaços virtuais (o ciberespaço, o recorte social gerado por redes sociais ou chats). Mas é claro que, com alguma frequencia, os historiadores trabalham também com o espaço físico, embora esse espaço, conforme comentado antes, não coincida necessariamente com o recorte político-administrativo ou com regiões definidas pela Geografia Física.
Gostaríamos, neste momento, de lembrar um outro aspecto. Quando o historiador vai às suas fontes, e se põe a examinar sociedades várias ou processos históricos específicos, ou quando ele analisa classes ou grupos sociais, ou mesmo o pensamento de indivíduos, ele também se depára com construções do espaço. O Espaço é uma construção social, conforme discorreremos.
Daremos o exemplo dos espaços civilizacionais, apenas para ilustrar o problema. Para uma civilização, ou para aqueles que se sentem incluídos dentro de uma civilização, o espaço pode receber um recorte imaginário ou político, sujeito a mudanças de acordo com a sua história. Para os dias de hoje, por exemplo, embora seja sempre um conceito difícil de trabalhar, fala-se em algumas civilizações presentes no planeta, caracterizadas por distinções relevantes relacionadas aos seus aspectos culturais, religiosos, imaginários, identitários, e também envolvendo determinadas correlações políticas. Por exemplo, podemos pensar na chamada Civilização Ocidental como distinta de uma Civilização Islâmica; podemos pensar na China (na civilização chinesa) como um mundo a parte. Ou alguém pode propor um recorte civilizacional envolvendo a China, o Japão, e outros países orientais.
Claro que há sempre oscilações envolvidas quando consideramos essas unidades civilizacionais. Pensa-se geralmente em uma Civilização Ocidental para uma certa unidade identitária que pode ser estabelecida entre diversos países europeus e os países das Américas, que foram colonizados e ocupados populacionalmente, no início da modernidade, pelos europeus (portugueses, espanhóis, franceses, ingleses). Mas mesmo assim podemos lembrar que Samuel Huntington, em seu livro "O Choque das Civilizações" (1996), prefere pensar uma civilização à parte para a América Latina, e deixar o recorte de "civilização ocidental" apenas para a Europa e América do Norte (excetuado o México). Custava-lhe admitir que os mexicanos, brasileiros ou paraguaios fizessem parte da mesma civilização que a da Europa (excetuando a turquia européia) e a América do Norte. Aliás, ele incluiu também na "civilização ocidental" a Austrália, por sua ligação com o Reino Unido.
De todo modo, a noção difícil de Civilização Ocidental é muito trabalhada pelos historiadores, mas normalmente unindo Europa e Américas sem as distinções feitas por Huntington. Vamos pensar, apenas para trazer o exemplo dos espaços civilizacionais, na idéia de uma "Civilização Ocidental". De fato, há algo em comum entre um inglês, um francês, um brasileiro (é claro que os indígenas constituem uma situação à parte, mas deixemos por ora esta questão de lado). Eles falam línguas distintas, mas há uma certa origem cultural em comum, que remonta às instituições de outra civilização, histórica, a Civilização Greco-Romana, e há também um predomínio religioso, que é o das religiões que, de modo mais amplo, procuraremos enquadrar na instância do Cristianismo. Foi também essa civilização que desenvolveu historicamente o Capitalismo, e isto trouxe um certo padrão cultural, imaginário, algumas referências políticas. O inglês, o francês e o brasileiro, por mais distintos que sejam - e são realmente muitodistintos - adquirem proximidades quando os comparamos com a Civilização Islâmica, por exemplo.
Este assunto é complexo, cheio de ambiguidades mal resolvidas, mas estamos o tomando apenas para pensar mais propriamente na questão do Espaço. Uma Civilização estabelece-se também sobre um espaço, que obviamente vai mudando historicamente. Hoje, é interessante verificar que o pequeno Mar Mediterrâneo (quando o comparamos com o Oceano Atlântico ou com o Oceano Pacífico), coloca-se como uma fronteira entre parte da Civilização ocidental (os países do sul da Europa) e as sociedades africanas, que para um europeu já configuram um outro mundo.
Queremos lembrar agora o mundo do Império Romano, a partir de Augusto e até os tempos de sua dissolução. O norte da África, para um romano, não era um outro mundo. Os países do Norte da África eram províncias do Império Romano. Os romanos chamavam ao Mar Mediterrâneo de "Mare Nostrum" (Nosso Mar). Para eles, as fronteiras espaciais de sua civilização ficavam um pouco mais abaixo, com o limite natural do deserto do Saara, por exemplo. A Oeste, havia o limite cósmico do Oceano Atlântico. Ninguém pensava que houvesse algo mais para além, e talvez o Atlântico parecesse aos romanos como o espaço que se estende para além da orbis terrestre, no mundo de hoje. A Leste, os romanos viam a fronteira do rio Tigre como o fim do seu espaço civilizacional, e os Rios Danúbio e Reno delimitavam muito claramente o seu mundo de um outro mundo, em relação a cujos habitantes eles julgavam correto se referirem como "bárbaros".
É muito interessante refletir sobre isso para compreender a idéia de que o Espaço é uma construção social, política, cultural - histórica. Hoje, a Mesopotâmia é um outro mundo em relação ao espaço civilizacional do ocidente. Os rios Reno e Danúbio estãoperfeitamente inseridos dentro do espaço da civilização ocidental, conjuntamente com todos os países do Norte da Europa. A África do Norte, como já dissemos, é outro mundo para o imaginário de um homem ocidental. Aliás, a idéia de "África" surgiu como uma construção nova, quando se pensou a possibilidade de uma unidade da Europa. Os eruditos que acompanhavam Carlos Magno, na Alta Idade Média, já mencionavam a idéia de uma "Europa". Essa idéia depois se fortaleceu: a de uma Europa que se opõe a África, ao Sul, e a Ásia, a Oeste.
Esses continentes, que hoje nos parecem realidades espaciais tão naturais, são na verdade construções. Em um livro intitulado "A Construção Social da Cor" (Petróplos: Vozes, 2009), eu discuto como a "África" foi uma construção da "Europa". Os comerciantes e colonizadores europeus começaram a pensar na África como uma unidade, mas é óbvio que a África apresenta espaços internos e culturais muito diferenciados. Um sudanês da floresta dificilmente olharia para um berbere do Saara como um semelhante (ele não se via, e ao berbere, como um africano), e, ao mesmo tempo, dificilmente ele poderia fechar esses espaços, o da Floresta e o do Saara, como uma unidade. Mas interessava à empresa do tráfico atlântico de escravos construir essa espacialidade, que era a África, e associá-la a uma outra idéia, que era a de que desse continente viriam os escravos negros. A idéia de "negro", inclusive, foi também uma construção, pois certamente que, à época da montagem do tráfico, e mesmo hoje, dificilmente se veriam como semelhantes um nuer, um peul, um zulu, e qualquer outro indivíduo pertencente às inúmeras outras identidades tribais africanas.
Esse complexo problema pode ser examinado nos textos do livro "A Construção Social da Cor" (http://ning.it/dHMnNA). Mas, por ora, quero apenas mostrar que essa percepção das espacialidades, que organiza os continentes de uma determinada maneira, apoia-se em uma construção social. Não se trata de uma realidade física estabelecida, dada de antemão. Há uma história na construção dos espaços. Da mesma forma, há uma construção maneira como os limites e fronteiras são percebidos ou definidos pelas civilizações, ou como aqueles que se identificam com elas. Também há mudanças constantes, seja no quadro civilizacional, seja no mundo político. Entre o período do pós-Guerra e a Queda do Muro de Berlim, em 1989, não apenas esse famoso muro que não mais existe era visto como fronteira de pedra separando duas realidades. A Rússia, que hoje é facilmente incorporada ao mundo ocidental, foi pintada pela construção do já referido Samuel Huntington - intelectual a serviço da CIA - como fazendo parte de uma "civilização cristã oriental". Vemos aí como vão se dando as coisas. Para ele, tratava-se de partir o mundo religioso cristão em dois, para atender às reminiscências de uma espacialidade política gerada pelo mundo bipolarizado da Guerra Fria. Huntington escreve oprimeiro ensaio sobre o choque das civilizações em 1993, quatro anos depois da queda do Muro, e sustentava a idéia de que as grandes identidades culturais e religiosas seriam as principais fontes de conflito no mundo posterior à Guerra Fria. Neste artigo de 1993, intitulado "Foreign Affairs", vemos as seguintes palavras:
“Minha hipótese é que a fonte fundamental de conflitos neste mundo novo não será principalmente ideológica ou econômica. As grandes divisões entre a humanidade e a fonte dominante de conflitos será cultural. Os Estados-nações continuarão a ser os atores mais poderosos no cenário mundial, mas os principais conflitos da política global ocorrerão entre países e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As falhas geológicas entre civilizações serão as frentes de combate do futuro” (HUNTINGTON, 1993).
São muito discutidas e criticadas teses de Huntington sobre o "Choque das Civilizações". Só as trouxemos aqui como um exemplo de construção do espaço. Nesse caso, retornamos à idéia de que o espaço pode ser reconstruído pelo historiador ou pelo cientista social. De outra parte, pensar em civilizações também remete a idéia de construções coletivas do espaço. Os espaços de familiaridade e de alteridade são construídos pelas diversas sociedades, e também estão obviamente sujeitos à mudanças históricas. Os limites da civilização romana foram mudando até chegar ao quadro máximo de expansão, durante a Pax Romana.
Um historiador deve pensar o espaço com a consciência de que esta categoria envolve dois níveis e tipos de construção. A construção que vem do próprio historiador, que examina um determinado problema histórico de certa maneira, e as diversas construções espaciais com as quais ele pode se deparar ao nível das fontes históricas e das sociedades e processos por ele examinados (seu objeto de estudo).
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Referências:
BARROS, José D'Assunção. A Construção Social da Cor. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
HUNTINGTON, Samuel. O Choque das Civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva,1997 [original: 1996]
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