sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Materialismo Histórico não é o mesmo que Marxismo, e ambos distinguem-se do pensamento de Marx

Com o último texto, completamos os elementos iniciais para a compreensão deste terceiro paradigma que surge a partir do período em que a História passa a se postular como um saber de tipo científico. Outros paradigmas, e outras correntes teóricas, e também inúmeras variações nos paradigmas já mencionados, e combinações entre eles, viriam depois. Por ora, encerraremos este bloco inicial, e brevemente estaremos discutindo um outro conceito importante para a Teoria da História, que é o conceito de "Escola" (escola histórica, ou 'escola historiográfica). Gostaríamos, todavia, de encerrar o bloco com um alerta importante acerca do paradigma do Materialismo Histórico.

Não raramente, “Materialismo Histórico” e “Marxismo” são utilizados por autores vários como expressões sinônimas. Esta relação, contudo, deve ser antes de mais nada problematizada, e nos nossos textos rejeitaremos qualquer confusão ou sobreposição entre os dois termos. A distinção entre “marxismo” e “materialismo histórico” deve ser feita antes mesmo de entrarmos no mérito de que o próprio campo teórico do Materialismo Histórico, inaugurado em meados do século XIX por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), encontrou muitos desdobramentos e variações posteriores, assim como assistiu a transformações bem significativas com relação a alguns dos pressupostos básicos propostos pelos dois fundadores.

Desta forma, antes mesmo de adentrar a riqueza deste campo teórico, é preciso desde já considerar a diferença entre aquele modelo de ação política que mais tarde ficaria conhecido como Marxismo-Leninismo, e que também geraria suas variações, e o Materialismo Histórico enquanto paradigma, método e abordagem teórica para a compreensão dos processos históricos. O “marxismo-leninismo” é um programa de ação política que visa estabelecer uma sociedade comunista a partir de certas ações, que também são muito discutidas em termos de quais seriam as mais adequadas (luta armada, ditadura do proletariado, mobilização de operários ou de camponeses, aliança inicial com a burguesia, participação na política tradicional). Esta diversidade de posições com relação a questões específicas gera muitas correntes no interior do próprio marxismo-leninismo.

Aliás, deve-se repetir o óbvio: a perspectiva de estabelecimento de uma sociedade socialista não é necessariamente ligada a um programa de ação marxista, e muito menos ao marxismo-leninismo. Todo marxismo-leninismo visa a uma sociedade comunista; mas nem todo programa ou pensamento que visa uma sociedade comunista é marxista-leninista (há inúmeras variações, dentro do marxismo, e fora dele também, de correntes que visam o socialismo, tais como o moderno viés da social-democracia, o anarquismo, e outros).

Outro aspecto importante é que, embora o “marxismo-leninismo” tenha assumido como filosofia e perspectiva historiográfica o Materialismo Histórico (adaptando-o a seus objetivos políticos), pode-se perfeitamente pensar correntes do paradigma do Materialismo Histórico (como uma forma de analisar e escrever a história) que não necessariamente se vinculem a qualquer programa de ação política marxista, e que, até mesmo, não visem o socialismo como sociedade ideal a ser atingida. São muito discutidas, no seio de todo um conjunto de autores que se autodefinem historiograficamente como ligados à perspectiva do Materialismo Histórico, temáticas que indagam sobre se o socialismo em alguma de suas formas sócio-políticas, ou o comunismo em algum de seus modelos econômicos possíveis, devem ser mesmo vistos como um telos (um “fim”) a ser alcançado na história, assim como se discute se este modo de organização socialista do mundo humano ocorrerá necessariamente um dia ou não.

O primeiro ponto importante, então, é separar o Materialismo Histórico - enquanto paradigma historiográfico que se oferece como alternativa para a compreensão da história e para a elaboração do conhecimento historiográfico - do “Marxismo” propriamente dito, no sentido de um certo programa de ação política. De igual maneira, dentro do próprio âmbito das idéias de Marx e Engels, devemos distinguir os princípios que se referem ao Materialismo Histórico como método de compreensão histórica – na verdade como uma nova visão teórico-metodológica da História – em relação às opiniões pessoais e particulares de Marx ou Engels com relação a certos aspectos como os destinos históricos das sociedades européias, o advento do Socialismo, a necessidade da implantação de certo modelo de ação política, ou as formas de engajamento do historiador em uma transformação social. Há mesmo muitas opiniões de Marx e Engels nitidamente datadas, que só poderiam ser pensadas para um contexto social específico, e que hoje não mais se aplicariam. E há outras que correspondem a escolhas pessoais destes autores que não necessariamente são inerentes ao paradigma do Materialismo Histórico.

Elaborei um capítulo sobre o pensamento de Marx, no Volume Quatro de "Teoria da História", que procura desenvolver a idéia de que o pensamento de Marx, fundador do paradigma do Materialismo Histórico conjuntamente com Engels, não pode ser confundido com o próprio paradigma do Materialismo Histórico. Este último, embora tenha sido fundado por Marx e Engels nas suas bases iniciais, é obra coletiva, composta não apenas por Marx e Engels, mas também por inúmeros filósofos, sociólogos, antropólogos, economistas, geógrafos e historiadores que os sucedram. O paradigma do Materialismo Histórico constitui-se, por isso, de um um universo com muitas alternativas internas.

Além disso, há posições específicas de Marx que não constituem elementos inerentes (necessários) ao núcleo mínimo do paradigma Materialista Histórico. Como qualquer fundador de um paradigma, Marx se destaca - enquanto autor - do paradigma que ajudou a fundar. A complexa identidade teórica de Marx, segundo postulo, superpõe-se como possibilidade à base irredutível do paradigma do Materialismo Histórico, mas não se confunde com ela.

Sobre isto, ver o último capítulo do Quarto Volume de "Teoria da História" (BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 4: Acordes Historiográficos. Petrópolis: editora Vozes, 2011).

Luta de Classes

“A história de todas as sociedades, até hoje, tem sido a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro especializado das corporações e aprendiz, em suma: opressores e oprimidos estiveram em permanente oposição; travaram uma luta sem trégua, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito” (MARX e ENGELS, Manifesto Comunista, 1848)
).

O Manifesto Comunista (1848), um longo texto do qual transcrevemos apenas um trecho inicial, é um texto bastante peculiar. Ao contrário de grande parte dos textos de Marx ou de Engels, não é um texto exclusivamente filosófico ou científico, destinado a estudar uma questão histórica, a analisar uma realidade social, ou a discutir conceitos com vistas a estruturar um sistema de compreensão da realidade. Este texto, em primeiro lugar, é o que diz o próprio título: um manifesto. Foi escrito para expressar o programa e propósitos da Liga Comunista, bem como para sensibilizar para a causa socialista certos setores organizados do movimento de trabalhadores, em meados do século XIX. Trata-se, em boa parte, de um instrumento de confronto e de propaganda, mas que ao mesmo tempo traz incorporadas algumas das idéias científicas de Marx e Engels acerca da história, da economia e da sociedade.

A razão de transcrevermos aqui este pequeno trecho que dá partida à argumentação desenvolvida no Manifesto Comunista é que, neste escrito orientado pela perspectiva do Materialismo Histórico, ocupam uma posição primordial, e também são beneficiados por uma explicitação direta, três dos conceitos basilares para o novo paradigma: “classe social”, “luta de classes” e “consciência de classe”. Assim, se no Prefácio para a Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), bem como na Ideologia Alemã (1848), afirma-se que a história é a “história do desenvolvimento dos modos de produção”, já no Manifesto Comunista veremos à partida a afirmação de que a história é a “história da luta de classes”.

As duas afirmações não são de modo nenhum incompatíveis; na verdade se complementam, e mesmo se interpenetram. Na longa duração, os “modos de produção” se sucedem, e novas “formações sociais” vão se afirmando em uma história de longo termo que, para o Materialismo Histórico, é regida por um eterno movimento dialético. Contudo, os atores da história são os seres humanos. A história não ocorre sem a ação destes, e ao mesmo tempo ultrapassa o mero limite de ação dos indivíduos. A história, para o Materialismo Histórico, afirma-se aqui como uma história dos grandes grupos sociais, das massas, de forças sociais que agregam os indivíduos. Essa história, todavia, dá-se concomitantemente ao desenvolvimento dos modos de produção, uma vez que os grupos humanos e as forças sociais em contraposição representam posições, interesses e modos de agir articulados ao modo de produção.

Uma “classe social”, ao menos em uma perspectiva possível, ocupa sempre uma posição específica no “modo de produção”, na formação social a ser examinada. A sua história – a das classes sociais em confronto, aliança e luta – é ditada por um ritmo histórico mais agitado: ela se agita através de eventos, assiste à eclosão de revoluções, vê-se atravessada por manifestações ideológicas que podem assumir a forma de produtos culturais específicos. As lutas dão-se nas ruas, nas relações de trabalho, no confronto cotidiano, mas também através de textos, discursos, preconceitos, permanências e inovações. O modo de produção é estrutura e cenário para a atuação das classes sociais, verdadeiros sujeitos da história, de acordo com as proposições que fundamentam o Materialismo Histórico.

O conceito de “classe social”, e as decorrentes noções de “luta de classes” e de “consciência de classe” ocupam, portanto, uma posição central no quadro teórico em que se apóia o Materialismo Histórico. Começaremos por lembrar que o conceito de “classe” aparece desde cedo nos escritos de Marx e Engels (embora não tenha sido criação destes, já que os historiadores franceses do período da Restauração já o haviam utilizado). Em Marx e Engels, conforme já veremos, o conceito não chegou propriamente a adquirir um delineamento fechado e tampouco muito preciso (apesar de sua importância central para cada um destes autores), e chegam a ser registradas formas de utilização relativamente distintas destes conceitos em alguns dos grupos nos quais podemos subdividir as suas obras (as filosóficas, as econômicas e as históricas, por exemplo).

Assim, mostra-se bem diferente o encaminhamento filosófico que Marx imprime ao conceito de “classe social” nas suas obras de juventude, como é o caso dos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), quando o contrastamos com o encaminhamento que ele mesmo dará ao conceito em obras mais marcadamente econômicas, tal como O Capital (1867). Por fim, nas obras históricas – As Lutas de Classe na França (1850), O 18 Brumário (1852) e A Guerra Civil na França (1871) – surge outro tratamento, que busca se adaptar à realidade histórico-social examinada e à análise empírica das fontes .

Na obra O Capital (1867), por exemplo, que tem por objeto de análise o sistema capitalista, existe certa passagem da terceira parte do livro na qual veremos Marx confrontar três classes distintas: a classe dos trabalhadores assalariados (que vivem da venda de sua força de trabalho), a classe dos capitalistas (que extraem seus rendimentos do “lucro”, ou da “mais valia”, que é uma forma tipicamente capitalista de exploração do trabalho assalariado), e, por fim, a classe dos proprietários fundiários, que vive da renda da terra. Se atentarmos para o que estes exemplos nos mostram, a “classe social” parece ser definida aqui em termos da ‘origem dos rendimentos’ que se referem a cada grupo social: salário, lucro, renda da terra .

Em contrapartida, existe outra passagem, escrita em co-autoria pelos dois fundadores do Materialismo Histórico, na qual se faz referência às sociedades antigas, sendo que nesta parece se encaminhar para uma definição de classes por outros critérios. Trata-se agora de uma passagem do acima mencionado Manifesto Comunista (1848), na qual é mencionada a contraposição entre escravos e homens livres. O que se mostra aqui é a dicotomia estabelecida entre duas classes a partir de um estatuto relacionado à liberdade. Não mais há, portanto, uma referência em relação à origem dos recursos que cada classe extrai para o seu viver, pelo menos nesta passagem. No próprio trecho do Manifesto Comunista que colocamos como epígrafe deste item, veremos outras dicotomias classistas apoiadas no status social, além da já citada divisão entre “livres” e “escravos” que se relaciona à Antiguidade Grega. Assim, Marx irá mencionar a dicotomia entre “barões” e “servos” como aquela que dá o tom da alta Idade Média (poderia tê-la apresentado em termos de “senhores” e “servos da gleba”, ou entre “guerreiros” e “camponeses”, esta última já resvalando para o critério funcional). “Mestre” e “Aprendiz”, assim como “Patrício” e “Plebeu” – as outras duas dicotomias mencionadas no mesmo trecho – também insinuam o critério do status social, o que reforça o exemplo antes mencionado.

Por fim, uma terceira situação pode ser ilustrada com uma passagem à qual voltaremos depois, extraída do livro O 18 Brumário (1852). Nesta, e também em outras obras históricas, a classe começa a ser definida pela consciência de pertencimento que passa a ser desenvolvida pelos indivíduos que a compõem, sempre por oposição a outros grupos. Também veremos outra peculiaridade nesta mesma obra, que é uma daquelas em que Marx se coloca efetivamente como historiador (e não como “economista” ou “ativista político”, tal como ocorre nos dois exemplos anteriores). Aqui, obrigado a se instalar em um nível de observação que permita uma avaliação mais complexa da história, tal como ocorre com qualquer historiador, Marx não se compraz mais em discutir a “luta de classes” em termos de uma dicotomia simplificada: ao contrário, irá perceber a múltipla interação entre os diversos grupos sociais, com os seus respectivos representantes no plano político. Guardemos este ponto, pois ele será importante mais adiante.

Estes exemplos, que apenas poderemos mencionar mais superficialmente neste pequeno texto de introdução à questão da “luta de classes”, mostram-nos perfeitamente que Marx e Engels foram construindo o quadro conceitual do Materialismo Histórico gradualmente, e já o adaptando às necessidades concretas a serem enfrentadas pelos seus escritos, sobretudo porque pretendiam antes abrir caminhos do que estabelecer um sistema abstrato e fechado de pensamento. Já com os historiadores e filósofos marxistas subseqüentes, os conceitos associados a “classe social” começam a ser beneficiados por um esforço maior de sistematização, e com isso adquirem múltiplas significações. Gramsci, Lukács e Edward Thompson são apenas três dos nomes importantes nesta discussão que se estende por todo o século XX e atinge o século XXI.

Este texto foi extraído do Terceiro Volume de meu livro "Teoria da História" (BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 3: Os Paradigmas Revolucionários. Petrópolis: Editora Vozes, 2011).

O conceito de Modo de Produção

Em texto anterior, sintetizamos os três elementos fundamentais que constituem a base efetiva do Materialismo Histórico como um paradigma historiográfico: Materialismo, Dialética, Historicidade Radical. No último texto, esclarecemos o aspecto da Dialética, retomando também outros autores anteriores a Marx, como Hegel, que se valeram deste conceito. Ressaltamos, contudo, que a dialética proposta por Hegel era uma dialética idealista, enquanto a dialética proposta por Marx seria uma dialética materialista. Dialética e Materialismo se unem, portanto, no pensamento de Marx e na base daquilo que viria a se constituir neste novoparadigma historiográfico que é o Materialismo Histórico. No presente texto, vamos abordar mais especificamente o conceito marxista que permite essa junção entre Materialismo e Dialética: o Modo de Produção.

A idéia de considerar o “Modo de Produção” como ponto de partida para as análises históricas e sociológicas foi a grande novidade trazida por Marx e Engels, no que concerne particularmente à sua contribuição para as futuras ciências sociais e humanas . O conceito, certamente, beneficiou-se de inúmeras redefinições face ao desenvolvimento de trabalhos historiográficos mais específicos. Mas podemos entendê-lo inicialmente como a combinação das “forças de produção” e “relações de produção” correspondentes a certo período ou sociedade historicamente localizada, sendo que estes dois fatores – as “forças de produção” e as “relações de produção” – estão fadados a se tornarem contraditórios no processo dialético, apesar de terem sido tão bem ajustados no momento nascente do modo de produção, já que as ‘relações de produção’ são geradas no interior de uma determinada formação social precisamente pelas ‘forças de produção’.

É o próprio Marx quem nos diz, no Prefácio de Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859), que as ‘relações de produção’, que um dia foram o motor das ‘forças de produção’, tornam-se o seu entrave. Neste momento, ou no momento de maior acirramento da contradição, estas duas realidades mal ajustadas precisam fazer o seu acerto dialético. As ‘forças de produção’ em expansão não comportam mais a reação e resistência que lhes é imposta pelas ‘relações de produção’ imobilizadas, retrógradas, inadequadas diante de uma realidade que já se modificou. Sobrevém, então, um momento de “revolução social”. A Tese confrontou-se com a sua Antítese, e ambas precisarão ser superadas pela Síntese, que será o ponto de partida para um novo ‘modo de produção’. Este salto de qualidade para o novo momento é na história provocado pela “revolução”, um conceito que também é apropriado pela concepção materialista da História .

Em exemplos práticos, vejamos o que seria um ‘modo de produção’, as ‘forças de produção’ e as ‘relações de produção’. Retomemos o exemplo do mundo medieval. O chamado ‘modo de produção feudal’ era constituído por forças de produção e relações de produção bem específicas. No campo das forças de produção teríamos toda a materialidade e força vital, toda a tecnologia e modos de apropriação da natureza e otimização do trabalho de que dispõe o homem medieval para reproduzir a existência de sua sociedade diante das condições que lhe é oferecida. Constituem a totalidade das ‘forças de produção’ os ‘instrumentos de produção’ – como o arado ou a charrua –os ‘meios de produção’, que seriam os ambientes dos quais os homens medievais poderiam extrair materiais para a sua própria vida e também transformar em ambiente para o seu trabalho, e por fim os ‘agentes de produção’, que para simplificar coincidiria com a humanidade que trabalha, no caso da Idade Média os servos (mas depois, também, os mercadores e artesãos, que virão a se constituir em agentes históricos importantes para a superação do modo de produção feudal). Também estariam incluídas no campo das ‘forças de produção’ as técnicas conhecidas pelos homens para produzir o seu trabalho ou se apropriar do meio, como o cultivo unidirecional ou o plantio alternado.

Ocorre que tudo isto – instrumentos, técnicas, meios de produção e agentes de produção – está sempre em expansão, em certos momentos uma expansão em ritmo mais lento, em outros uma expansão em ritmo mais acelerado. O arado e a charrua constituem aperfeiçoamentos nos instrumentos de produção, as técnicas de cultivo se desenvolvem e se tornam mais eficientes, os meios de produção cedem espaço para novas apropriações humanas através de arroteamentos e ocupação de florestas antes intransponíveis, e a força de trabalho se desenvolve, torna-se mais eficaz, mas também mais complexa, mais beneficiada pela interação humana. A certa altura, com a melhoria da agricultura, produz-se um excedente e, mais bem alimentada, ocorre uma melhoria na qualidade de vida, abrem-se mesmo espaços para que nem todos precisem se dedicar a uma agricultura fechada, e muitos dos camponeses que eram encarregados de fazer tarefas relacionadas ao pequeno comércio local tornam-se comerciantes, engajam-se em empresas de longa distância, autonomizam-se em novas funções; alguns se tornam artesãos; outros continuam camponeses, mas já mais inquietos com as suas condições de vida e as amarras sociais que lhes são impostas.

Estas amarras são precisamente as ‘relações de produção’. No mundo medieval elas partilhavam a humanidade em três grupos básicos, apesar de existirem também outras funções e profissões. A nobreza, dominante, ocupa-se da guerra; o clero, desempenha as funções relacionadas à vida religiosa, fundamental para o homem medieval e mesmo para a manutenção do sistema (na verdade, o próprio clero também se dividia em um alto clero, oriundo da nobreza, e categorias vindas de extratos sociais inferiores, mas de modo esquemático – de acordo com o próprio esquema medieval das “três ordens” – pode ser considerado uma segunda ordem, ao lado da nobreza). Enquanto isto, a terceira ordem, a base produtiva do triângulo trifuncional, era precisamente o mundo do trabalho, em especial os servos que produziam o sustento alimentar de toda a sociedade, de modo que no esquema ideológico medieval esta partição aparecia como a célebre divisão em “belatore, oratore e laboratore”. Este esquema mental faz parte da “ideologia” – outro conceito importante para o marxismo – e que juntamente com a arte, com o sistema jurídico, com as relações de parentesco, fará parte da superestrutura que deriva da base, do que alguns materialistas históricos chamam de infra-estrutura.

Ora, precisamente no momento em que as ‘forças de produção’ expandidas permitem que se produza um excedente, na chamada ‘fase de expansão feudal’, é que se irá produzir ou se intensificar a contradição fundamental do mundo feudal: uma produção maior do que o consumo. Esta antiga organização social, tão rigidamente estratificada, passa a não mais condizer com um mundo em expansão. Resistente às forças que se articulam a esta expansão, a organização social cedo terá de dar lugar a uma outra, que predisporá ao surgimento, no período moderno, de um mundo que se organizará em torno do mercado, em uma primeira fase do que seria mais tarde um novo modo de produção: o ‘modo de produção capitalista’.

Estes esquemas, relativamente simples, são sugeridos por Karl Marx em A Ideologia Alemã (1946), ou ao menos podem ser deduzidos de uma primeira leitura dos seus escritos. Ocorre, contudo, que o ‘modo de produção’ produzido teoricamente para uma compreensão da sociedade é apenas um modelo. Na realidade histórica efetiva este modelo não existe, da maneira como a razão o organiza. É por causa disso que nos anos 1970 surgirá o conceito de “formação social”, e o de uma “formação social específica”. Trata-se de uma mediação para a aplicação da idéia de ‘modo de produção’ a sociedades históricas mais específicas, ambientadas em um espaço sob determinadas circunstâncias, e relacionadas a especificidades e complexidades adicionais, afeitas a um dinamismo que lhe é próprio.

A noção de “formação econômico-social” surge portanto para dar conta desta mediação entre o modelo e as realidades históricas específicas, achando-se registrada no livro de Leporini e Serene (1973) que leva este título. Pierre Vilar também lança mão do novo conceito, e o utiliza de maneira peculiar. A “formação econômico-social” poderia ser caracterizada por um “modo de produção dominante”, o que pressupõe a possibilidade da permanência de traços dos modos de produção anteriores ao lado da constituição de fatores novos, que já antecipam um modo de produção futuro e contribuem decisivamente para abalar a dominação presente. Estas idéias aparecem no célebre artigo escrito para a revista dos Annales em 1973, no qual Pierre Vilar polemiza com Althusser utilizando o sugestivo título “História Marxista, história em construção” (1973, p.165-198).

Sobre a idéia de uma formação social que inclui um modo de produção dominante e persistências de períodos anteriores, será oportuno lembrar uma carta de 1868 escrita por Marx a Engels, portanto no ano seguinte à publicação de O Capital. Nesta carta – que atesta simultaneamente a riqueza do pensamento dos fundadores do Materialismo Histórico e a sua capacidade de repensar continuamente os fundamentos do campo teórico-metodológico que estavam fundando – Marx escreve a Engels, com todas as letras, que tinha bem recentemente adquirido a consciência de que as formas sociais pré-capitalistas podiam sobreviver em meio ao Capitalismo. Ou seja, praticamente depois de escrever toda a sua obra conhecida até O Capital (1867), e três anos antes de escrever sua última obra de cunho historiográfico (“A Guerra Civil na França”, 1871), Karl Marx ainda formularia um ajuste que somente seria repensado mais sistematicamente cem anos depois.

É em vista de situações como estas que freqüentemente os filósofos, historiadores e sociólogos marxistas, e também pensadores ligados a outros campos teóricos, têm retornado freqüentemente a textos de Marx que passaram despercebidos diante de obras que foram transformadas em cânones. Isso ocorreu com “O fetichismo da Mercadoria”, inspirador da Escola de Frankfurt, com os Grundrisse, inspiração para a escola Inglesa do Marxismo, e certamente ainda ocorrerá muito com a análise da correspondência de Marx e Engels com interlocutores diversos.

O conceito de "modo de produção" ainda se beneficiaria de inúmeras proposições, ao cuidado de teóricos, filósofos, sociólogos e historiadores que se vincularam à concepção do Materialismo Histórico. O paradigma do Materialismo Histórico, com seus diversos conceitos abriu-se, e abre-se ainda hoje, a uma discussão muito rica de possibilidades. Esse aspecto é importante para compreendermos que um paradigma historiográfico, e o Materialismo Histórico em particular, jamais deve ser tratado como um sistema fechado, definitivo. Um paradigma constitui uma base comum a partir da qual os praticantes de um campo de saber podem desenvolver suas concepções, criando novas alternativas no interior do paradigma.


O presente texto foi extraído do Terceiro Volume do meu livro 'Teoria da História' (BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 3: os paradigmas revolucionários. Petrópolis: Editora Vozes, 2011).

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um pouco mais sobre a Dialética

No post anterior, começamos a desenvolver alguns comentários sobre o terceiro paradigma historiográfico que adquire importância já no século XIX: o Materialismo Histórico. Voltaremos a falar neste paradigma em outras oportunidades. Por ora, vamos discorrer mais detidamente sobre um aspecto que apareceu no último texto: a Dialética. Veremos que esta não aparece exclusivamente noâmbito do Materialismo Histórico; e que, na história da filosofia, o conceito de "dialética" é já antigo, embora nem sempre com o sentido moderno.
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Se quisermos buscar as mais remotas origens da Dialética no sentido de contraposição de elementos contraditórios que geram o incessante movimento do mundo, terminaremos por encontrar na Antiguidade Grega o mais enigmático dos filósofos pré-socráticos: Heráclito de Éfeso (544-484 a.C) . Nenhum dos antigos filósofos gregos percebeu e explicitou com tanta clareza a multiplicidade da realidade, seu caráter contraditório, e o fato de que todas as coisas estão em relações recíprocas. O Ser surge já em Heráclito como algo múltiplo, em incessante movimento e constituído por oposições internas, o que também se aplica ao homem. O “fragmento 88” já expõe este caráter incontornavelmente contraditório da natureza humana – na verdade de tudo e todas as coisas – que traz nas suas próprias oposições internas o segredo do seu movimento:

“Em nós, manifesta-se sempre uma e mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. Pois a mudança de um da o outro e reciprocamente” (Heráclito de Éfeso, Fragmento 88).

A imersão de tudo no Devir e a permanente transformação a que estão sujeitas todas as coisas também aparece em diversos dos fragmentos de Heráclito. Aqui surge o famoso dito atribuído a Heráclito de que “é impossível alguém entrar duas vezes no mesmo rio” (Fragmento 91), já que no segundo momento teríamos tanto um novo rio como um novo homem .
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Esta idéia matriz de uma dialética que imbrica “Movimento”, “Contradição”, “Reciprocidade” e “Totalidade” – e que um dia fora intuída por Heráclito de Éfeso – adquire com o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831) um desenvolvimento sistemático, base de toda uma filosofia que se postula como apta a compreender toda a realidade. Pode-se dizer que Hegel acrescentou algo a Heráclito. À sugestão heraclitiana de que o universo seria formado por forças em eterna mutação e contradição, Hegel agregou a idéia igualmente importante de que essa totalidade que constitui o mundo natural e humano poderia e deveria ser compreendida "racionalmente". Enquanto Heráclito contemplava o incessante movimento dialético gerado pela oposição entre contrários, Hegel tenta compreender esse movimento, entendendo-o como sistema .
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O Real, para Hegel, é Racional. O Racional, em contrapartida, também é Real. A Dialética assume aqui a sua forma moderna. Hegel verá nela certo sentido, e não simplesmente um imprevisível entrechoque de forças diversas. Para Hegel, este sentido é o aprimoramento, o desvelamento, a objetivação da Razão, grande sujeito de sua história universal. Há um ponto a ser atingido pela Dialética Hegeliana – um “telos”, isto é, um fim a atingir. Tal como os iluministas do século XVIII, Hegel acredita no Progresso, no inevitável progresso da humanidade. Mas ele vê essa caminhada rumo a um futuro cada vez mais aperfeiçoado não como uma simples linha reta, e sim como uma sucessão de círculos dialéticos que se resolvem uns nos outros.
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O movimento dialético, na perspectiva hegeliana, prevê uma Tese inicial que logo será confrontada pelo desenvolvimento de uma “contradição” saída de si mesma de modo a formar uma Antítese. O confronto entre Tese e Antítese – isto é, entre duas realidades contraditórias que se confrontam dialeticamente – gera ao final do processo a Síntese: um novo momento do processo que, então, pode reiniciar da mesma maneira o movimento de transformações dialéticas. O círculo dialético, orientando-se sempre para novas direções e produzindo sempre o novo, jamais cessa de girar, seja na natureza ou no mundo humano. Totalidade, Contradição, Movimento, é disto que se trata. Uma Totalidade na qual se interpenetram os contrários, e de cujo confronto gera-se o Movimento de todas as coisas, sejam elas aspectos da natureza ou fenômenos relativos às sociedades humanas.
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Em uma passagem da 'Fenomenologia do Espírito' (1807), a primeira obra em que Hegel tenta esclarecer mais sistematicamente o pensamento dialético, Hegel ilustra o movimento dialético de maneira quase poética, contrapondo as realidades da Semente, da Flor e do Fruto nas diversas fases da realidade de uma Planta:

“O botão desaparece no desabrochar da flor, e pode-se afirmar que é refutado pela flor. Igualmente, a flor se explica por meio do fruto como um falso existir da planta, e o fruto surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas formas não apenas se distinguem, mas se repelem como incompatíveis entre si. Mas a sua natureza fluida as torna, ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra” (HEGEL, Prefácio de Fenomenologia do Espírito)

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Além de propor um novo formato para a concepção iluminista do Progresso, doravante concebida de acordo com uma sucessão de círculos nos quais as realidades se contraditam na gestação do novo, a Dialética Hegeliana não apresenta apenas um fim; ela também considera um início. O seu ponto de partida é o Espírito, o mundo das idéias. É a partir do Espírito que se institui o movimento do mundo . Teria sido um movimento do Espírito o que colocou o universo em movimento, e, agora, é ainda o Espírito que está à partida de cada pequena transformação que se dá neste mesmo universo, ou de cada pequeno círculo dialético que se produz no incessante movimento de todas as coisas. O mundo humano, histórico por excelência segundo Hegel, é o melhor exemplo deste incessante devir dialético que se dá a partir dos movimentos do Espírito.
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A novidade introduzida por Karl Marx, já ovimos em momento anterior, foi precisamente inverter o ponto de partida do processo dialético. Enquanto Hegel o situava no Espírito, Marx o localizava na Matéria. É de uma realidade concreta, ou das condições materiais objetivas que se apresentam aos homens organizados em sociedade, que parte o movimento histórico de transformação da realidade, sendo por isto necessário que também a historiografia procure compreender os desenvolvimentos histórico-sociais do mundo humano a partir da análise das condições materiais, objetivas . No seu aspecto mais irredutível, a História principia com as condições que se apresentam aos homens para que eles produzam e reproduzam a sua sobrevivência. O modo como os homens produzem a sua própria vida social e material seria o verdadeiro ponto de partida de toda a análise histórica. Surge aqui um dos conceitos fundamentais para o Materialismo Histórico: o de “Modo de Produção”, que discutiremos mais adiante.
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Colocado nestes termos, o movimento histórico, para os fundadores do Materialismo Histórico, é simultaneamente dialético e dependente das condições objetivas e materiais da existência humana. Concomitantemente a isto, a História dá-se em duas dimensões distintas, mas interligadas, pois ela é simultaneamente a “História das Lutas de Classe” e a “História da sucessão de Modos de Produção”. Só este duplo enunciado, o primeiro bem apresentado no Manifesto Comunista (1848) , o segundo discutido em A Ideologia Alemã (1846), já seria suficiente para alçar Karl Marx e Friedrich Engels como instituidores de um modo de ver a História radicalmente novo e diferenciado em relação à ampla maioria dos historiadores do seu tempo.
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Eric Hobsbawm, no balanço de 1968 no qual lança a indagação sobre “O que os historiadores devem a Karl Marx”, mostra como os historiadores do século XIX, a exemplo da Ranke, se ocupavam então de examinar basicamente as Guerras, a Diplomacia, a vida dos grandes líderes, aqui ou ali, eventualmente, a História Institucional, mas sobretudo uma História (da) Política. Não uma História Política no moderno sentido de uma “história do poder”, mas uma história da política, ou seja, dos meios políticos e dos homens que a faziam nos Parlamentos e outros órgãos ligados ao estado. Já os fundadores do Materialismo Histórico, ao proporem que “a História é a História da Luta de Classes”, o que estavam fazendo senão propor um deslocamento do olhar do historiador para uma dimensão impensada até então – a História Social? E, ao mesmo tempo, ao sustentarem que a História é a “História dos Modos de Produção”, o que estavam propondo senão deslocar o olhar historiográfico para as bases econômico-sociais e suas consequências sobre a sociedade e a História? Não seria isto, essencialmente, uma inédita abertura para a História Econômica? Guardemos estas duas grandes contribuições: Marx e Engels introduzem um novo e duplo olhar na História: uma atenção para a dimensão Econômico-Social.
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Será importante ressalvarmos que muitos dos conceitos introduzidos por Marx e Engels, ou muitas das expressões que mais tarde se tornaram conceitos e fundamentos do Materialismo Histórico, nem sempre foram enunciados com o objetivo de delinear naquele momento uma maior precisão conceitual. No “Prefácio para a Crítica da Economia Política” (1859) Marx apresenta um texto que é ao mesmo tempo de alta eficiência para sintetizar os aspectos centrais da nova concepção (o Materialismo Histórico) mas que ao mesmo tempo é extremamente conciso. Já aparecem ali expressões que hoje constituem conceitos fundamentais do Materialismo Histórico. Mas muitas daquelas expressões suscitaram debates posteriores: o que seriam as “forças de produção”, as “relações de produção”, que lugar ocupariam precisamente no “modo de produção”; o que é a “base” e a “superestrutura” . Os posteriores encaminhadores do Materialismo Histórico passaram a discutir o sentido de cada uma destas expressões, o seu lugar dentro do sistema proposto, e com isto foram surgindo variações possíveis na teoria do materialismo histórico. De igual modo, a História-Efetiva e a História-Conhecimento contribuíram, cada qual à sua maneira, para favorecer ajustes em uma ou outra direção.
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É preciso ainda considerar que, de modo algum, Marx ou Engels estavam propondo um modelo abstrato que desejariam que funcionasse como receita para compreender o real, e na Ideologia Alemã (1846) eles já expressam claramente sua preocupação com este aspecto ao rejeitarem o uso apriorístico das abstrações teóricas: “estas, em si mesmas e separadas da história real, não têm valor algum e somente podem servir para facilitar a organização do material histórico [...] Não apresentam, diferentemente da filosofia, nenhuma receita ou esquema que permita definir corretamente as épocas históricas” (FONTANA, 2004, p.202). Nada mais avesso a Marx e Engels, portanto, do que a idéia de utilizar os conceitos marxistas como formulário rígido para que neles venham a caber, a posteriori, a realidade histórica. Pior ainda, chegou-se a utilizar análises historiográficas particularizadas de Marx, com relação a situações ou processos específicos, como se estas pudessem se tornar modelos para o desenvolvimento de todas as sociedades humanas, o que em certo momento trouxe fortes preocupações aos próprios fundadores do Materialismo Histórico.
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Assim, em uma das Cartas Russas, datada de 1878, Marx protestava contra o uso indevido do “capítulo 24” de O Capital (1867), no qual ele se havia empenhado em traçar o caminho pelo qual, a partir do Feudalismo, havia surgido a ordem econômica capitalista na Europa Ocidental. No texto, Marx rejeita a tentativa de “metamorfosear o [seu] esboço histórico da gênese do capitalismo no ocidente europeu numa teoria histórico-filosófica de marcha geral que o destino impõe a qualquer povo, sejam quais forem as condições históricas em que se encontre” . Eis um bom exemplo de que os fundadores do Materialismo Histórico não pretendiam criar ou sugerir um modelo único para o desenvolvimento histórico da humanidade, tal como ocorreu em adaptações posteriores de seu pensamento por marxistas que, sobre as bases de seu pensamento, construíram uma doutrina


(o texto exposto neste post foi extraído do terceiro volume de meu livro "Teoria da História" (BARROS, José D'Assunção. Teoria da História. vol 3: os paradimas revolucionários. Petrópolis: Editora Vozes, 2011)

Materialismo Histórico - esclarecimentos para os iniciantes nos estudos históricos

Na última postagem deste blog, examinamos dois paradigmas importantes que começaram a surgir na mesma época em que a História passou a postular um estatuto de cientificidade: o Positivismo e o Historicismo. Neste momento, pretendo a discorrer sobre o terceiro paradigma historiográfico importante que surgiu ainda no século XIX: o Materialismo Histórico. Com este terceiro paradigma, temos os três paradigmas que se afirmam no século XIX como alternativas para os historiadores: o Positivismo, o Historicismo e o Materialismo Histórico. Havia ainda outras variações e possibilidades, como a historiografia idealista inspirada na 'Filosofia da História' de Hegel, ou como o paradigma romântico, que em muitos casos apresenta pontos em comum com o Historicismo. Mas deixaremos para falar nestas correntes em outros momentos. Por ora, vamos nos concentrar no Materialismo Histórico e procurar perceber em que este paradigma, fundado por Marx e Engels, contrasta com os dois paradigmas anteriores. Gostaria de alertar para o fato de que me permitirei a algumas simplificações, uma vez que este post, especificamente, é destinado àqueles que ainda não estão familiarizados com os fundamentos do Materialismo Histórico. Em outros posts, avançaremos para níveis maiores de complexidade.
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Um primeiro elemento pode opor o Materialismo Histórico ao outros dois paradigmas (Historicista e Positivista). Pode-se dizer que aqueles paradigmas, nos seus primórdios, adequaram-se satisfatoriamente bem a projetos conservadores (amparar o projeto de "conciliação de classes" que interessava à Burguesia Industrial, no caso do Positivismo Francês, e dar sustento às necessidades dos governos nacionais, no caso do Historicismo Alemão). O Materialismo Histórico, por outro lado, vai se vincular no momento do seu nascedouro a um projeto declaradamente revolucionário. Trata-se de um paradigma historiográfico que tenta dar respostas a uma história que se volta também para as classes sociais menos favorecidas, e não apenas para as elites. Mais ainda,de acordo com o projeto mais específico de Marx, trata-se de contribuir para uma transformação da sociedade.
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Vejam. Isso não quer dizer que cada Positivista e Historicista seja conservador, ou que todo historiador que instrumentaliza o Materialista Histórico seja revolucionário ou que tenha interesses libertadores. O Historicismo, apesar de seus inícios conservadores, foi caminhando para um "relativismo" bastante interessante para a Historiografia, o que favoreceu cada vez mais a tomada de consciência de que "tudo é histórico". O Positivismo também trouxe propostas interessantes para o desenvolvimento das ciências sociais, tal como a corrente teórica de Durkheim (um sociólogo do início do século XX). E o Materialismo Histórico, apesar de inúmeras contribuições que beneficiaram um olhar menos elitista da História, também não deixou de trazer uma corrente que nos dias de hoje é muito questionada, e que é a do stalinismo, na primeira metade do século XX. Mas vamos nos guardar de analisar este ou aquele paradigma como bom, e este ou aquele outro como "mal". O importante, por ora, é conhecermos os paradigmas, e também outras correntes teóricas e alternativas, para fazermos nossas escolhas futuras. Há também autores fundamentais que se localizam "entre" os paradigmas. Outros, fazem combinações entre elementos dos diversos paradigmas. Ou seja, os paradigmas, no seu estado puro, são mais referências do que realidades na prática historiográfica efetiva.
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Vamos agora ao tema deste texto: o Materialismo Histórico.
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Antes de mais nada, dois nomes importantes. Os fundadores deste novo paradigma foram Karl Marx e Friedrich Engels, dois pensadores alemães. Depois vieram outros, muitos outros. Até hoje, o Materialismo Histórico é um paradigma adotado por muitos historiadores, ou por vezes influencia outros historiadores ainda, mesmo que eles não sejam ligados totalmente ao Materialismo Histórico.
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O Materialismo Histórico tem três traços principais que não podem ser esquecidos: "Materialismo", "Historicidade total", e "Dialética". Eu diria que estas três instâncias constituem o "núcleo duro" do Materialismo Histórico: aquilo que, se for retirado, descaracteriza totalmente o que poderia ser chamado de Materialismo Histórico. É na união destas três instâncias - Historicisdade, Materialismo e Dialética - e de mais alguns conceitos (como o de "classe social" e "luta de classes"), que se constrói este paradigma que vamos começar a definir neste momento.
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Em outras oportunidades, discutiremos melhor o que é "Materialismo". Mas só para viabilizar uma imagem inicial, podemos considerar que o "Materialismo" corresponde às maneiras de pensar que se opõem ao "Idealismo". Um sistema de pensamento é "idealista" quando começa a pensar as coisas a partir do "mundo das idéias", do "mundo espiritual", e só depois desce à realidade mais concreta e prática, ao mundo sensível, à materialidade física, e assim por diante. Como exemplo de filósofo "idealista" podemos lembrar Platão, filósofo da Grécia Antiga. Lembremos do célebre "mito das cavernas". Platão sugeria através deste mito, descrito em um de seus diálogos, uma hipótese primordialpara o seu pensamento. Além deste mundo em que vivemos, existiria um mundo anterior e mais perfeito - o "mundo das idéias". O nosso mundo não seria mais do que uma imitação mais perfeita desse "mundo das idéias".
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Isso é um padrão de pensamento "idealista". Muitas religiões, sem querer entrar no mérito de quais, e em quais momentos de sua história, colocam todo o seu investimento em um mundo que existiria depois da morte, e pregam que esse mundo material não tem importância. Isto é uma forma de "idealismo". Também existe um pensamento idealista naqueles filósofos que imaginam que tudo começa, inclusive a história, com uma "idéia", com o "espírito", com o "pensamento", e que o mundo material e concreto, a vida prática, é só um desdobramento de coisas que, antes de se concretizarem, adquirem existência em um plano não material. São alguns exemplos de idealismo.
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Hegel, um filósofo que poderemos discutir em outra oportunidade, era idealista. Ele postulava que a História começa sempre no mundo das idéias. A História seria a realização de uma espécie de "plano da natureza", e o mundo teria começado com um "espírito" que depois se concretizou e deu origem à Matéria. O pensamento de Hegel foi um dos muitos pensamentos idealistas que surgiram na história da filosofia (mas já veremos que uma das noções desenvolvidas por Hegel foi muito aproveitada pelo Materialismo Histórico: o pensamento dialético).
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O Materialismo, ao contrário do "Idealismo", acredita que tudo começa no mundo material, prático, concreto, e que só depois as idéias, as maneiras de pensar, a arte, as ideologias, vão surgindo. Para os materialistas, o historiador tem que começar analisando a base material, a vida concreta, o sistema de trabalho e a economia de uma sociedade. Só depois de examinar estes aspectos, é que ele pode entender por exemplo o plano cultural a arte de um povo, a sua organização política, o seus sistema de hierarquias sociais, preconceitos, e assim por diante. Mas voltaremos a isto depois.
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O segundo elemento do Materialismo Histórico é o conceito de "historicidade absoluta". Tudo é histórico, como já diziam os historicistas (neste ponto, os "materialistas históricos" e os "historicistas" se parecem bastante). Nada escapa à História. Para o materialista histórico, assim como para os historicistas, não existiria uma natureza humana fora da História, independente desta. A natureza humana vai mudando de acordo com a história. Não existiriam valores eternos, fora da história.
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Mas examinemos agora o terceiro elemento do Materialismo Histórico: a Dialética. Para isso, precisarei fazer uma breve digressão. De onde Marx e Engels tiraram a Dialética? Eles se inspiraram precisamente naquele filósofo do qual já falamos: Hegel. Hegel era "idealista"; mas avançou muito no desenvolvimento da dialética, e Marx e Engels aproveitaram isto (só que ao invés de uma "dialética idealista", como a de Hegel, eles irão trabalhar com uma "dialética materialista").
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Os três elementos principais da dialética são: "movimento", "interpenetração dos contrários", "totalidade". Um filósofo pré-socrático, da Grécia Antiga, chamado Heráclito, já falava muito destes aspectos. Para ele, a realidade seria um interminável "movimento", e nela existem sempre "forças opostas" se debatendo umas contra as outras (o calor e o frio, a água e o fogo, etc). Heráclito dizia: "é impossível entrar duas vezes no mesmo rio". Isso porque, quando alguém tenta entrar a segunda vez no mesmo rio, nem o rio é mais o mesmo, e a própria pessoa já mudou um pouco. Mas vamos voltar a Hegel.
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O Movimento Dialético proposto por Hegel começa com uma "Tese" (o ponto inicial de onde tudo começa). Dentro da Tese, mesmo sem que percebamos, já existe um elemento imperceptível de contradição. Quando essa contradição aumenta muito, ou se explicita, surge um segundo elemento, a "Antítese". A "Tese" e a "Antítese" são contraditórias. Elas estão entremeadas em uma realidade, e na verdade a constituem, mas são "contraditórias", e cedo ou tarde se confrontarão. Do confronto entre a Tese e a Antítese, surgirá um produto final: a Síntese. A Síntese tem traços da Tese, e traços da Antítese. Mas já é uma nova coisa. Este é o resultado final de um processo dialético: a Tese entra em confronto com a Antítese, e daí se produz a Síntese.
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Um exemplo já clássico é o da "estatueta de madeira". Digamos que um indiviíduo tenha vontade de construir uma estatueta de madeira. Essa é a "Tese". Para que esse indivíduo possa construir uma estatueta de madeira, contudo, não pode só ficar na idéia de esculpir a estatueta. Tem que passar à ação. A própria idéia de esculpir uma estatueta já traz dentro dela essa necessidade de passar à prática. Com vistas a executar o seu intento, o escultoir sai em busca de material para construir a estatueta, e encontra um pedaço de madeira. A madeira é a "Antítese". Vejam, estas duas coisas não poderão sobreviver uma à outra: elas terão que se enfrentar. A ideía de construir uma estatueta, logo terá de deixar de ser uma idéia. Também a madeira, logo terá de deixar de ser madeira. Uma é a Tese, a outra a Antítese. Então, o escultor começa o seu trabalho de construir a estatueta: a idéia vai se concretizando aos poucos (e deixando de ser idéia), e a madeira vai adquirindo, sob as suas mãos (de acordo com a sua idealização), uma nova forma. Ou seja, a madeira vai deixando de ser "madeira bruta", para se tornar uma "madeira trabalhada", esculpida, e logo logo uma "estatueta". No final de tudo, desapareceu tanto a idéia de construir a estatueta, como desapareceu o pedaço de madeira bruta. Uma nova coisa surgiu: a "estatueta de madeira", que é a Síntese. A "estatueta de madeira" tem tanto um pouco da "ideía de estatueta", como um pouco da m"madeira bruta". Mas ela é uma nova coisa.
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Dei outro exemplo: o da Água (H2O, de acordo com a fórmula química). Geralmente o que chamamos de "água" é o H2O em sua forma líquida. A "água" tem algumas caracetrísticas: é fria, morna, ou mesmo quente (mas não pode ultrapassar determinada temperatura). Suas moléculas não são tão unidas como as do gelo (que dão à água neste estado aquela solidez do gelo). As moléculas da água também não são totalmente desligadas uma das outras, como as moléculas do ar ou de um gás. Por isso, sem serem demasiado unidas ou demasiado soltas, a água tem aquela propriedade de se ajustar a qualquer recipiente (tomar a forma do copo ou da garrafa em que a depositamos). Bom, isso, enfim, é "Água". Esta será a nossa "Tese".
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Conforme disse, só existe "água" (em estado líquido) até uma certa temperatura. Abaixo dessa temperatura, por exemplo, as moléculas começam a se unir, e a água vira gelo. Acima de certa temperatura, as moléculas começam a se soltar demais e a água vira "vapor d´água". Bom, suponhamos que minha água está em um recipiente, e começo a fornecer-lhe mais temperatura. A "Elevação de Temperatura", no caso, será a minha "Antítese". A "Água" (a Tese) aceitará bem esta elevação de temperatura (a Antítese), mas só até certo ponto.
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Digamos que começamos a fornecer muito calor à água. Chega um momento em que as duas coisas - a "água" em estado líquido (a Tese), e a temperatura elevada (a Antítese) - já não podem conviver mais uma com a outra. Este é o momento máximo da "contradição" (a contradição é uma das categorias da dialética. é quando dois contrários, ou duas coisas incompatíveis, já não conseguem conviver mais uma com a outra). No caso em que estamos dando como exemplo, essa contradição vai ocorrer, no seu momento mais insustentável, quando a temperatura sobe a 100%. Nesse momento, a "água" não aguenta mais a temperatura (e podemos dizer que a temperatura também não aguenta mais a água"). O que ocorre então? Á água vai se transformar em "vapor dágua" (H2O em estado gasoso).
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O vapor dágua é a Sintese nesse caso. Ele contem água (a substância H2O), mas também um pouco das exigências da temperatura elevada (as moléculas soltas). Esse é o final desse processo dialético: do confronto entre água líquida (tese) e temperatura elevada (antítese), surgiu o vapor dágua (síntese).
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Prestem atenção naqueles "100 graus". Eles foram o momento no qual, subitamente, a água começou a se transformar em vapor. O processo dialético sempre comporta um momento destes: é o momento em que uma coisa parece "saltar" de um estado a outro (é o momento em que, no exemplo anterior, a "estatueta" já começou a tomar forma, e todo mundo percebe que a "madeira bruta" já está desaparecendo).
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O 100°, para a História, é muito importante. Em um processo histórico, esses "cem gaus" podem corresponder ao momento histórico de uma "revolução", ou de um acontecimento em que uma sociedade muda repentinamente e se transforma em uma outra coisa. O conceito de "revolução" também é muito importante para o paradigma do Materialismo Histórico.
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Vou introduzir, neste momento, já um exemplo histórico, mesmo que simplificado. Começarei com o exemplo da sociedade feudal. O mundo feudal, tal como ocorreu na Europa a certa altura do período medieval (entre os séculos XI e XIV, em alguns países) era constituído, grosso modo, de "feudos". O feudo era uma propriedade grande de terra , que tinha um "senhor", e muitos "servos" que terabalhavam a terra. O "servo" esra uma categoria mais livre do que o escravo da antiguidade romana, mas que (pelo menos aparentemente) não era tão livre como o operário do mundo capitalista. O servo, por exemplo, tinha que ficar preso à terra. Não podia simplesmente pegar suas coisas e ir buscar trabalho em outra freguesia.
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Esse era o mundo feudal. Havia os senhores, que pertenciam à ordem dos "guerreiros" (os bellatore, ou "os que lutam"), e os camponeses (os laboratore, "os que trabalham", que na verdade eram "os que cultivam a terra"). Havia ainda um outro elemento importantíssimo que era a Igreja, e a sociedade feudal também concedia um papel importante aos monges e eclesiásticos ("os que oravam"). Aliás, na época era difundida uma "ideologia" - um conjunto de idéias no qual todos eram levados a acreditar - que pode ser denominado "Ideologia das Três Ordens"). Dizia-se que, de acordo com a vontade de Deus, a sociedade era constituída de três ordens: os laboratore (os que trabalham), os bellatore (os que guerreiam), os oratore ("os que oram". Todo mundo que encontrasse o seu lugar nesse "triângulo trifuncional", como também é chamado, estava de acordo com a vontade de Deus.
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O Feudo perfeito produzia tudo o que precisava, e também consumia tudo, sem deixar sobras. Era portanto "auto-suficiente". Veja, isso é um "tipo ideal" de Feudo (para usar aquele recurso inventado por Max Weber, ao qual me referi acima, e que é pensar um modelo no estado puro). Na prática, não era bem assim. Sempre sobrava uma coisinha, e sempre faltava uma outra. O que ocorria, então, é que o "senhor", o "dono do feudo", designava um dos seus camponeses para ir no outro feudo trocar a sobrinha do feudo com alguma coisa útil.
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Vejam, sem querer, começou a surgir desse camponês que tinha essa função especial uma figura estranha ao "triângulo trifuncional" (os que guerreiam, os que "cultivam a terra", os "que oram").. Para ele viajar até o outro feudo, para trocar mantimentos de um tipo, com mantimentos de outro tipo, ele precisava parar de cultivar o solo (ou seja, precisava "deixar de ser camponês", pelo menos naquele momento). Sem querer, esse mundo feudal (a nosa Tese) já trazia dentro dele uma pequenina contradição, que era esse camponês deslocado para exercer uma função estranha. Mas isso não atrapalhava muito, e era perfeitamente assimilável ao sistema. Era até uma contradição "necessária ao sistema".
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Tudo funcionava bem, porque o que o feudo produzia era mais ou menos o que era consumido (auto-suficiência do feudo). Mas começou a ocorrer de repente um interessante fenômeno histórico. À medida que os camponeses trabalhavam, foram aprendendo a trabalhar cada vez melhor (foram desenvolvendo novas técnicas de cultivo). Como eram também eles que construíam os seus instrumentos (não havia artesãos, especializados em só construir instrumentos e ferramentas). logo eles começaram a construir instrumentos cada vez melhores. Aperfeiçoaram a "charrua", os instrumentos de arado, descobriram um modo de plantio no qual parte da terra descansava enquanto a outra trabalhava - enfim, com o desenvolvimento tecnológico, o trabalho se otimizou, começou-se a produzir mais mantimentos. Mais bem alimentados, a população camponesa foi também aumentando (isso é um dado que pode ser comprovado empiricamente nas fontes históricas, assim como a invenção de novas técnicas e instrumentos). Mas, de todo modo, começou a sobrar mais produtos do que podiam ser consumidos. Começou a ser produzido um "excedente".
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Nesse momento, surgiu uma contradição no sistema feudal: "uma produção maior do que o consumo". Na verdade, não é que surgiu a contradição naquele momento. Já existia aquela sobrinha, que aquele camponês era deslocado para negociar, como vimos antes. Só que a sobrinha foi aumentando. Podemos dizer que a "temperatura da água" começou a aumentar. A água correponde au "feudo" (nossa Tese). A temperatura aumentando corresponde ao "aumento da produção", ou às sobras cada vez maiores (a nossa Antítese). Quando essa produção ficou "muito maior", chegou o momento em que a contradição começou a se explicitar. Essa é a nossa temperatura de "100 graus". Cada vez mais, camponeses foram teransformados em "comerciantes". Alguns adquiriram o direito de se desligar do feudo. Começaram também a se arricar maios, e a desenvolver um "comércio de longa distância" (ir trocar mercadorias em outros países, para trazer, por exemplo, "especiarias" do oriente). Um lugar que começou a se desenvolver muito para acolher essa nova atividade que era o Comércio foram as Cidades. Vejam, as cidades já existiam (ou continuaram a existir na Idade Média, como heranças da Antiguidade). Mas a população era pequena. Algumas eram controladas pela Igreja (por um Bispo). Outras eram controladas por um ou mais senhores feudais. Só que cada vez mais as cidades foram acolhendo os comerciantes. A população foi crescendo. Surgiu um grupo de artesãos (pessoas especializadas, pela primeira vez, em construir ferramentas) A Cidade Medieval começou a se integrar à "contradição", ao Comércio de longa distância.
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Vejam que nesse momento já há uma contradição muito grande. Se o sistema feudal é caracterizado essencialmente por ser um sistema "fechado", "auto-suficiente", "trifuncional" (isso é, constituído de senhores, camponeses e monges), agora ésse mesmo sistema feudal tinha produzido um conjunto de coisas que já não se encaixava mais nessa situação inicial (a Tese, isto é, o mundo feudal). Uma contradição que foi aumentando cada vez mais ("a produção maior do que o consumo") foi dando origem a uma série de coisas novas, contraditórias em relação ao sistema anterior: a "estranha" figura do "comerciante" (estranha, claro, para o mundo feudal); outros tipos de trabalhadores, como os "artesãos"; o desenvolvimento urbano (Cidades cuja população e importância foi aumentando, e que acabaram conquistando a sua liberdade); o Comércio de longa distância, que nada mais é do que uma grande contradição em relação ao "feudalismo fechado", já que o comércio representa uma abertura para o mundo exterior.
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Todo esse complexo começou a se afirmar como uma "Antítese". Para superar essa Antítese, foi preciso ocorrer uma espécie de "revolução comercial". Não foi na maior parte dos lugares um movimento social como a revolução francesa, mas uma "revolução" no sentido mais amplo: uma revolução de costumes, o surgimento de uma nova maneira de pensar, o crecimento urbano, o desenvolvimento de estradas, um maior desenvolvimento da naútica, e, sobretudo, a invenção, ou o uso cada vez mais frequente, do "dinheiro". Não só dinheito sonante, mas também sistemas de câmbio (letras de câmbio, e outros recursos que facilitavam os negócios, mesmo sem precisar envolver dinheiro físico). Surgiu uma coisa nova: o "lucro". Tudo isso pode ser chamado de "Revolução Comercial" da Idade Média. Acabaria resultando daí uma nova sociedade e uma nova época: a Idade Moderna (a Síntese).
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Vejam, eu trabalhei nesta explicação simplificada com uma espécie de "tipo ideal" (para utilizar esta noção de Max Weber). Não é que só tenha acontecido isso, de acordo com o modelo puro que foi desenvolvido acima. A realidade foi um pouco mais complexa. Também utilizei a "dialética" para tentar compreender esse processo histórico que conduziu da Idade Média (mundo feudal) à Idade Moderna, através da "revolução comercial".
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Notem que não usei uma "dialética idealista", como faria Hegel (o filósofo idealista). Hegel tentaria começar a explicação dele com o mundo das idéias, talvez com a questão das "Três Ordens" (a ideologia divisão da sociedade em um triângulo trifuncional), ou com alguma necessidade do grande "Espírito Universal". Na minha explicação, eu comecei com um aspecto material da sociedade feudal: a propriedade concreta que era o feudo auto-suficiente, e a divisão do trabalho entre três tipos, os camponeses, os senhores, e os monges. Comecei explicando o mundo material, sobretudo o aspecto da autosuficiência e do perfeito equilíbrio entre a "produção" e o "consumo" (ou seja, uma questão econômica). Depois é que foram surgindo as outras coisas - as três ordens, etc. Também foram surgindo novas situações materiais da própria vida material, como o aperfeiçoamento do trabalho e a invenção de novas ferramentas. depois começou a surgir um sistema monetário, e finalmente surgiu a vontade do "lucro". O caminho foi da materialidade às situações relacionadas às relações sociais, depois ao surgimento de uma nova mentalidade, a do lucro. Isso foi uma explicação a partir de uma "dialética materialista".
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Vejam outra coisa. A realidade é na verdade mais complexa do que este "tipo ideal". Vocês vão ver no próximo semestre, na disciplina "Idade Média", que entram outras forças neste processo que eu não mencionei para não estender muito a explicação. Por exemplo, o "Rei". O "rei" no período feudal era uma figura fraca. Era na verdade, quase um "senhor" entre outros - um "senhor" um pouco mais forte, com a função de juiz maior, e que juntava exércitos dos outros senhores quando era necessário enfrentar outros povos. O "poder régio" também vai se fortalecendo muito a partir do século XIII - e entrando em contradição com o poder de autonomia de cada feudo. Na verdade, em muitos casos, os comerciantes e as cidades se aliaram a essa monarquia que foi se fortalecendo cada vez mais. A Idade Moderna já vai ser caracterizada pela emergência dessas monarquias fortes em alguns países como a França, a Espanha, Portugal, Inglaterra. As contradições nuna são tão simples na História. Estou apenas explicando, através de um exemplo simplificado, um modelo de pensamento. Quem quiser ler sobre este fortalecimento do Poder Régio, leia o livro "O Processo Civilizador", de Norbert Elias.
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Também surgiram contradições na Igreja (por exemplo, surgiram as "heresias"; e surgiram novas ordens como a dos "franciscanos", que foram viver bem no coração das cidades). Surgiram contradições, também, entre o Poder da Igreja e o Poder Régio. Todas essas contradições, vocês vão ver depois na disciplina Idade Média.
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Estou só dando exemplo de como seria a análise de um processo histórico - no caso a passagem da Idade Média Feudal ao Mundo Moderno - através de uma análise baseada no modelo do paradigma do Materialismo Histórico, que trabalha com as contradições.
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Vejam outra coisa. Todo tempo eu falei em alguns tipos humanos: o "camponês", o "senhor", os "eclesiásticos", o "comerciante", a "realeza". Não citei, em nenhum momento, um nome. É que, para o Materialismo Histórico, a história não é feita por indivíduos, mesmo os mais ilustres. Essas várias figuras que eu mencionei - o "camponês", a "aristocracia guerreira", a "burguesia ligada ao comércio" - representam "classes sociais". Para o Materialismo Histórico, a História é a história da "luta de classes". Pode ser luta mesmo (física, militar), ou confronto de interesses (por exemplo, os "interesses da burguesia" começam a se confrontar com os "interesses dos senhores feudais"). Para o Materialismo Histórico, a história dá-se através da "luta de classes", e também através da transformação de um tipo de sociedade em outro - ou melhor, de um tipo de organização econômica, ou de um "modo de produção", em outro. Vejam, não é só isso. Mas estes são alguns conceitos fundamentais do Materialismo Histórico.
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Uma última coisa. No século XIV aconteceu a "peste negra", por exemplo. Isso teve outros efeitos nessa transformação da sociedade medieval e na sua passagem à Idade Moderna, pois a população declinou novamente. Ou seja, claro que elementos climáticos, acontecimentos imprevisíveis, e outras coisas, também entram na História. Também teve muita revolta camponesa que foi sufocada; e aconteceram algumas revoltas urbanas.
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Esses são elementos que mostram que a realidade, na História Medieval, é bem mais complexa do que o que poderia ser simplificado pelo esquema atrás descitro. Apenas procurei oferecer aqui um exemplo histórico concreto. Poderiam ser dados outros exemplos, tais como o processo da Revolução Francesa, ou a Queda do Império Romano. Processos e acontecimentos históricos como estes também podem ser analisados sob a ótica do Materialismo Histórico. Este paradigma, enfim, oferece uma certa maneira de ver as coisas, assim como também o fazem os paradigmas Positivista e Historicista. E não está excluída a possibilidade de se combinar, para a interpretação de algum processo histórico elementos dos três paradigmas, ou de outros autores diversos. Mas isto é tema para um texto futuro.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Dois paradigmas: o Positivismo e o Historicismo

Na última postagem deste blog, refletimos sobre o uso do conceito de "Paradigma" nas Ciências Humanas, e, particularmente, sobre a possibilidade de pensarmos em paradigmas historiográficos. Vimos que, nas Ciências Humanas, e, entre elas, na História, nunca existe apenas um único paradigma à disposição dos seus praticantes, ou mesmo um paradigma dominante que seja aceito como o mais correto pela maioria dos historiadores e cientistas sociais. A História, a Sociologia, a Antropologia, a Geografia, são ciências multiparadigmáticas - isto é, admitem variadas maneiras de serem concebidas, diversos caminhos teórico-metodológicos, diversos modelos de orientação para os cientistas humanos. Mesmo que haja preferência por um único modelo em determinados historiadores, seria leviano, nos dias de hoje, um historiador dizer que o seu modelo de eleição é o único legítimo, o único que assegura cientificidade, ou o único que oferece uma possibilidade de compreensão global dos fenômenos históricos.
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Vamos refletir, neste momento, sobre dois dos modelos que surgiram ainda no alvorecer do século XIX - isto é, precisamente naquele momento em que a História começou a ser postulada como um conhecimento científico. Naquela época, os historiadores conquistavam os seus primeiros assentos universitários, pois a História passava a ser reconhecida como uma Disciplina acadêmica tal como o Direito, a Filosofia, ou diversas outras. Embora a História já existisse milenarmente como campo de práticas e de produção de um saber específico, foi naquele momento que os historiadores passam a se auto-retratar como cientistas. Podemos dizer que aqui começa a se formar efetivamente uma "comunidade científica" dos historiadores profissionais, cada qual atento aos demais e todos preocupados com a consistência global do seu campo de conhecimento. Começam a surgir também as primeiras revistas acadêmicas especializadas em História. Ademais, torna-se muito importante a reflexão teórico-metodológica que então se inicia. Os historiadores passam a sistematizar procedimentos para a análise de fontes históricas, começam a publicar manuais e ensaios de reflexão sobre a historiografia. Eles não mais apenas se satisfazem em escrever a História, mas também passam a discutir o que é a História, a refletir sobre a produção historiográfica de sua epoca e de outras épocas.
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Este foi o contexto intelectual em que começaram a aflorar dois paradigmas muito importantes para a História: o Historicismo e o Positivismo. Logo viria um terceiro paradigma, o Materialismo Histórico, ainda em meados do século XIX. Por ora, vamos nos ater ao contraste entre o Positivismo e o Historicismo. Nossa tábua de comparações será a maneira como cada um destes paradigmas concebeu o problema da Objetividade e da Subjetividade na História.
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A oposição entre o Positivismo e o Historicismo dá-se em torno de três questões fundamentais: (1) a possibilidade ou não de encontrar, na história, padrões gerais que possam ser assimilados a Leis Gerais válidas para as sociedades humanas; (2) a necessidade ou não de que a História desenvolva métodos específicos, bem diferenciados daqueles que eram empregados para as ciências naturais e exatas; (3) a possibilidade ou não de que o Historiador possa almejar uma neutralidade absoluta em relação ao seu objeto de estudo e ao conhecimento por ele mesmo produzido.
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Com relação a estas três questões, os paradigmas Positivista e Historicista se encontram espelhados, e em posições diametralmente opostas. Os positivistas, por exemplo, acreditavam na possibilidade de constituir um conhecimento historiográfico muito próximo ao das ciências naturais em termos de Objetividade, pois acreditavam que as sociedades humanas estivessem ligadas a Leis Gerais que regeriam os comportamentos humanos e mesmo as tendências gerais dos processos históricos. Por enfatizarem a idéia de uma "universalidade" identificável para os seres humanos e para as sociedades por eles formadas, acreditavam que o que seria válido para a história de determinado povo seria válido para a história de cada um dos diversos povos existentes no planeta. Por isso, não tardaria a que se abrisse, na seara criada pelas correntes positivistas, uma perspectiva evolucionista: o desenvolvimento histórico de todas as sociedades daria no conduziria ao mesmo lugar. Como as sociedades européias eram as mais desenvolvidas tecnologicamente, a ideia de desenvolvimento universal das sociedades humanas levaria certos positivistas a encararem as sociedades ocidentais (Europa e Américas) como aquelas que estavam em um estágio mais avançado da evolução social, de modo que outras sociedades não seriam sociedades essencialmente diferentes das ocidentais, mas na verdade mais atrasadas. Com o "progresso", uma noção que se torna bastante forte na época, essas sociedades deveriam desenvolver um padrão similar ao das sociedades européias no se´culo XIX.
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Os Historicistas tenderam a enfatizar, em oposição à ideía de "universalidade" da razão humana, os particularismos. Cada povo precisaria ter a sua história analisada nos termos de suas próprias especificidades. Ao invés da "unidade" da razão, os historicistas tendiam a enfatizar a "diversidade" do mundo humano e dos tempos históricos. Em geral, os historicistas rejeitavam a idéia de que seria possível identificar "Leis Gerais" válidas para a humanidade e para a história dos diversos povos. Há um contexto político que favorece, em algumas das nações européias, tais como a Alemanha, esta postura teórico-metodológica. Nesta época, assistimos a uma redefinição do universo político-territorial europeu, e se afirmam os Estados-Nações que saem fortalecidos após o fim das guerras napoleônicas. Muitos historiadores são contratados para escreverem a história de seus países de acordo com uma perspectiva particular e única, e outros são chamados para liderar a constituição de Arquivos Nacionais que deveriam guardar a documentação importante para o estabelecimento da própria memória nacional. O Historicismo se fortalece diante destas novas demandas, e os países de língua alemã tornam-se seus principais focos, que depois são difundidos para outros países como a Inglaterra, a Itália, a Espanha, Portugal.
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Outro ponto de contraste entre os paradigmas Positivista e Historicista refere-se à idéia de que, para os historicistas, a História deveria encontrar métodos próprios. Os Historicistas começam a conceber a História como uma ciência específica, distinta do padrão científico difundido a partir das chamadas "ciências naturais". Os positivistas, ao contrário, procuram aproximar os modelos entre os dois ramos de ciências: as Sociais e as Naturais.
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Por fim, um ponto de destaque no contraste entre Historicismo e Positivismo é a questão da Neutralidade possível ao historiador diante do conhecimento histórico que ele mesmo produz. Os Positivistas preconizavam para os historiadores um tipo de neutralidade que deveria ser similar aos dos cientistas naturais. Acreditavam, de modo geral (e é claro que estamos aqui apenas falando em um modelo-limite) que o historiador poderia se destacar da sociedade que estivesse examinando e agir com neutralidade absoluta na sua análise formulação de questões: ele poderia examinar um processo histórico tal como um botânico examina uma planta. Já os Historicistas tenderam a enfatizar a idéia de que, por mais que os historiadores se empenhassem em assegurar Objetividade para o seu trabalho, eles mesmos estariam sempre imersos na própria história, e também seria histórico o produto de seus trabalhos. A perspectiva historiográfica adotada, enfim, estaria relacionada ao contexto social e histórico do próprio historiador, às possibilidades de concepções oferecidas pela sua própria época, às demandas dos homens de seu tempo. Para o Historicista, não apenas cada sociedade humana ou processo histórico tinha a sua própria história e a sua própria singularidade; também os historiadores tinham cada qual a sua própria história, relacionada à história da tradição a que se ligariam mesmo que involuntariamente, e cada historiador teria sempre a sua perspectiva afetada pelo seu contexto imediato e pelos acontecimentos de sua própria época, sem contar outras subjetividades pertinentes a cada historiador.
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Para uma compreensão mais aprofundada no contraste entre os paradigmas Positivista e Historicista, sugiro a leitura do seguinte texto:

http://www.revistas.uepg.br/index.php?journal=tel&page=article&op=view&path%5B%5D=1116&path%5B%5D=897

domingo, 17 de outubro de 2010

Paradigmas nas Ciências Humanas

No último texto postado neste blog, comentávamos o contraste e a interação entre os âmbitos da Teoria e da Metodologia. Enquanto a Metodologia relaciona-se aos fazeres de um determinado campo disciplinar, a Teoria relaciona-se aos modos de ver, às concepções que pautam este mesmo campo disciplinar. Entre alguns aspectos que remetem à Teoria, podem ser dados como exemplos os "conceitos" utilizados, e também os Paradigmas.
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É sobre o conceito de Paradigma que discorreremos neste momento.
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Um Paradigma, nas ciências, corresponde a determinadas concepções e modos de entender um certo campo de conhecimento que são partilhados pelos praticantes deste campo de conhecimento. A palavra "paradigma", etimologicamente falando, remete à idéia de um modelo a ser seguido.
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As diversas ciências sempre apresentaram, no decorrer do seu desenvolvimento, certos paradigmas que puderam ser partilhados pelos praticantes de cada campo de conhecimento em questão. Por exemplo, desde fins do século XVII e até fins do século XIX,a Física e outros campos das ciências exatas foram amplamente dominados pelo paradigma newtoniano, um modelo que foi instituído por Isaac Newton (1643-1727). Durante a maior parte deste período, praticamente todos os estudiosos de Física concordavam com os preceitos e concepções fundamentais introduzidos por Newton na pesquisa e análise dos fenômenos estudados pela Física. Em fins do século XIX, esse paradigma já não conseguia explicar ou se aplicar ao estudo de alguns dos novos objetos de estudo que surgiram na Física - como certos fenômenos astrofísicos ou como o mundo das partículas atômicas - e por isso esse paradigma começou a ser confrontado por outros, tais como o paradigma da Física Quântica ou como o paradigma da Relatividade, proposto por Albert Einstein. Este é um exemplo bem interessante de que, por vezes, um determinado paradigma se presta muito bem à análise de certos problemas, mas pode começar a apresentar dificuldades para o estudo de outros fenômenos ou âmbitos de estudo. Quando os pesquisadores de um campo de saber começam a fazer novas perguntas, de certa maneira começam a enxergar as coisas de modo diferente - isto é, começam a desenvolver um novo olhar teórico. Frequentemente surgem nestas situações novos paradigmas (novas maneiras de conceber um determinado campo de conhecimentos).
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As Ciências Sociais e Humanas possuem uma peculiaridade que,de certo modo,contrasta com as Ciências Exatas e Naturais. Dificilmente existe um único paradigma, ou um paradigma amplamente dominante, emdisciplinas como a História, a Sociologia, a Antropologia, a Geografia, a Psicologia, entre outras. Habitualmente os campos de saber relacionáveis às ciências humanas são habitados por um determinado número de paradigmas que são disponibilizados aos seus praticantes. Pode-se dizer que estas ciências são multiparadigmáticas.
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Na História, por exemplo, começam a despontar alguns paradigmas já desde o momento em que que surgiu, no século XIX, a proposta de uma historiografia científica (isto é, no momento em que a História conquista seu assento entre as disciplinas universitárias e no qual surge a figura do historiador profissional).
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Já na primeira metade do século XIX começam a se confrontar dois paradigmas que oferecem aos historiadores duas maneiras distintas de conceber a História: o Positivismo e o Historicismo. Em meados do século XIX, já surge um terceiroparadigma: o Materialismo Histórico. Isto apenas para citar as três principais concepções entre as quais se dividiram os historiadores neste primeiro século da historiografia científica.
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É importante também ressaltar que um historiador não precisa necessariamente se identificar integralmente comum paradigma. Há historiadores cujo trabalho parece dialogar comaspectos de um e de outro paradigma, e outros que ficam a meio caminho entre um paradigma e outro. Entender os modelos básicos que são disponibilizados à comunidade dos historiadores não significa acreditar nem que esses modelos existam apenas na sua forma pura, e nem que os historiadores precisem todos se agrupar da mesma maneira, e integralmente, no interior de um único paradigma. Um paradigma historiográfico é uma referência teórica maior que passa a ser partilhada por um número significativo de historiadores, ou pelo menos um modelo que serve de base para um diálogo.
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Existe uma certa discussão a cerca da possibilidade de utilizarmos ou não o conceito de paradigma para compreendermos as alternativas teóricas que se desenvolvem no interior de uma ciência social ou de uma ciência humana. Eu particularmente acredito que este conceito seja bastante útil, desde que tenhamos sempre em vista que as ciências sociais e humanas são sempre multiparadigmáticas. Possivelmente, nunca existirá consenso entre todos os historiadores acerca de um único paradigma que deveria orientar o desenvolvimento dos trabalhos historiográficos. Dito de outra forma, os historiadores sempre contarão com a possibilidade de fazerem certas escolhas teóricas e metodológicas, sem que se possa dizer que uma ou outra é mais correta ou mais adequada.
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Para profundar a questão do "Uso do Conceito de Paragima nas Ciências Humanas", remeto a um artigo que publiquei recentemente comeste mesmo título:
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"Sobre a noção de Paradigma e seu uso nas ciências humanas" (Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC, 2010)

http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/12516/12858

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http://www.scribd.com/doc/39224610/Sobre-a-nocao-de-Paradigma-e-seu-uso-nas-Ciencias-Humanas-BARROS-Jose-D-Assuncao

sábado, 4 de setembro de 2010

Teoria e Metodologia

Podemos iniciar uma compreensão sobre o contraste e interação entre Teoria e Metodologia com uma pequena lembrança sobre a origem das próprias palavras. "Teoria", na sua origem etimológica, está relacionada ao verbo "ver", no sentido de "conceber" (ter uma certa concepção de algo, ou enxergar uma realidade de determinada maneira,quer dizer, por um certo viés).
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Enquanto isso, "Metodologia" relaciona-se ao verbo "fazer". Etimologicamente, "Método" está relacionado a "caminho", A Metodologia surge quando você tem uma tarefa concreta a ser realizada, um objetivo a ser alcançado, uma ação a ser desfechada. Aí, nesse momento em que se passa à ação ou à prática, é preciso adotar procedimentos, escolher materiais e instrumentos de trabalho, planejar uma ação.
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Teoria e Metodologia são, portanto, campos bem diferenciados, embora interajam uma com a outra na produção de conhecimento científico (e, na verdade, em diversas áreas e atividades presentes na vida).
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Quando um pesquisador vai estudar algo, ele já tem uma certa concepção teórica (uma determinada visão de mundo). Também pode ocorrer que, diante de uma situação aparentemente obscura, ou demasiado complexa, o pesquisador adote certos instrumentos teóricos para ver as coisas de determinada maneira. Desta maneira, a Teoria surge da necessidade de enxergar a realidade de forma mais organizada, mais sistematizada.
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A Teoria envolve elementos e aspectos diversos. Os "conceitos", por exemplo, são instrumentos de primeira necessidade para a produção do conhecimento científico, pois eles permitem que uma certa realidade obscura ou complexa seja vista de determinada maneira, a partir de certa perspectiva ou recorte da realidade. Podemos dar o exemplo do conceito de "classe social". Trata-se de um conceito que propõe enxergar uma sociedade como que partilhada por diferentes grupos sociais, definidos por obrigações, privilégios, ou diferentes status (como a posse de mais ou menos dinheiro, nas sociedades capitalistas).
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Quando se enxerga a sociedade a partir de conceitos, como este, torna-se possível simplificar ou organizar mentalmente uma realidade que, de outro modo, seria demasiado complexa ou caótica. Os conceitos são, portanto, instrumentos que possibilitam que enxerguemos por um certo viés uma realidade (uma sociedade histórica, ou um processo, por exemplo).
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Outra coisa ligada ao âmbito da Teoria são os paradigmas que podem orientar a ação e compreensão de um certo campo de saber. Podemos entender um paradigma como uma certa maneira de enxergar determinado campo de conhecimentos. Por exemplo, a História oferece vários paradigmas àqueles que a praticam. Três dos principais paradigmas que surgiram já no século XIX (o século em que a História começou a se postular como um campo científico) foram o Positivismo, o Historicismo e o Materialismo Histórico. Em cada um destes paradigmas, este campo de conhecimento que é a História é visto ou trabalhado de maneira diferente. Isto é, cada um destes paradigmas concebe de maneira diferente a História (isto é, enxerga de maneira difeneciada a História, como campo de produção de um determinado tipo de saber). Paradigmas ditintos podem não apenas compreender de maneira diferenciada o seu campo de saber, como também atribuir tarefas distintas para os seus praticantes, fazer perguntas específicas, lidar de maneira diversificada com a questão da subjetividade e da objetividade.
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Apenas para lembrar um exemplo, o paradigma positivista postula que o historiador pode fazer o seu trabalho ancorado em uma total neutralidade, como se ele mesmo estivesse destacado da História. O Historicismo, ao contrário, já não enxerga o ofício do historiador desta maneira, pois sustenta que o próprio historiador está mergulhado na História (isto é, na areia movediça que produz o conhecimento histórico). Ele pode assegurar uma certa objetividade, se trabalhar com isenção científica e com uma boa metodologia, mas não pode assegurar uma neutralidade absoluta. Para os Historicistas, e também para o Materialismo Histórico, o ponto de vista neutro, fora da história, não existe. Mas não devemos confundir isso com outra coisa: isso não quer dizer que escrever História seja o mesmo que elaborar um panfleto político.
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O Materialismo Histórico, um terceiro paradigma, concebe a história a partir de um duplo ponto de vista: de que o historiador deve considerar a base material da vida social para compreender uma sociedade histórica, e de que a história se movimenta através de uma "luta de classes". Portanto, o Materialismo Histórico vê a História de uma certa maneira, pois enxerga os processos históricos a partir dos conceitos de "luta de classes", "modos de produção", e outros.
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Os "paradigmas", enfim, também são aspectos relacionados à Teoria.
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Por fim, outra coisa que faz parte da "Teoria" são os inúmeros "campos da história" nos quais a História se organiza nos dias de hoje. A organização de um campo de saber em especialidades ou âmbitos de ação é um aspecto importante da teoria, pois se relaciona ao modo de ver o próprio campo de conhecimento ao qual nos filiamos - a própria disciplina em que nos inscrevemos. A História conhece diversos campos históricos: a História das Mentalidades, a História Econômica, a História Cultural, a História Política, a Micro-História, entre inúmeras outras modalidades.
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E quanto à "Metodologia"? O que faz parte da Metodologia? Vimos acima que "Metodologia" se relaciona ao verbo "Fazer". Quando o historiador vai iniciar o seu trabalho na prática, isto é, vai iniciar a sua pesquisa, deve adotar certas escolhas metodológicas. Para o âmbito de estudos que nos interessa, que é a História, devemos considerar que a maior parte das escolhas feitas pelos historiadores passam por aquilo que chamamos de "Fontes Históricas". Como o exame das fontes constitui a única maneira de um historiador atingir uma sociedade do passado, ou compreender processos que já aconteceram, isto termina por obrigar o método histórico a constituir e analisar fontes históricas. Ainda não existe um "visor do tempo" que possibilite o historiador enxergar diretamente o passado. Por isso, os historiadores se especializaram em enxergar o passado através das fontes: é através de fontes - resíduos, objetos materiais, textos produzidos na época que está sendo analisada - que os historiadores conseguem construir uma certa representação do passado (reunir fatos históricos e descrever processos, por exemplo) e também desenvolver a sua interpretação.
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Se vamos examinar algum problema histórico específico, o uso das fontes é fundamental. É claro que também é importante a leitura de Bibliografia (obras dos outros historiadores que examinaram o mesmo assunto). Mas esse diálogo com a produção dos outros historiadores apenas complementa o trabalho original que pode ser realizado por um historiador, e não substitui de maneira nenhuma a utilização de fontes históricas. Sem fontes, é como se estivéssemos enxergando uma época a partir dos olhos dos outros historiadores, e não estabelecendo um diálogo com a própria época que buscamos compreender.
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Uma última coisa importante a ser discutida é o significado de "Historiografia". A Historiografia constitui o conjunto das obras já produzidas por historiadores. Quando trabalhamos com o campo da Historiografia, estamos examinando o trabalho dos próprios historiadores. É como se tomássemos os próprios trabalhos e textos produzidos por historiadores como "fontes históricas". Na Historiografia - ou melhor, na análise dos trabalhos historiográficos, não estamos preocupados em examinar um problema histórico específico (o Nazismo ou a Revolução Francesa); o objetivo é examinar a maneira como os historiadores abordaram determinado problema histórico (por exemplo, como os historiadores produziram diferentes leituras sobre o Nazismo, ou como produziram diferentes interpretações ou teorias sobre a Revolução Francesa).
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Essa é a diferença entre um trabalho histórico (um trabalho que toma por objeto uma sociedade ou processo do passado) e um "trabalho historiográfico" (um trabalho que examina aquilo que foi produzido pelos historiadores em relação a determinada questão). Uma coisa e outra são importantes. Mas devemos ter consciência acerca da distinção entre os dois tipos de trabalhos.
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Para uma reflexão mais aprofundada sobre a distinção entre teoria e metodologia, leiam o primeiro capítulo do volume 1 de 'Teoria da História' (BARROS, José D'Assunção. Teoria da História. volume 1: os Conceitos Fundamentais da Teoria da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011).

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Importância da Teoria e Metodologia da História

Costumo dizer, e realmente acredito nisso, que a Teoria e Metodologia da História é aquilo de mais importante que um curso superior de História pode oferecer a um estudante de graduação - isto é, um 'historiador em formação'. E acrescento que esse 'historiador em formação' irá aprender Teoria e Metodologia da História não apenas nas disciplinas que levam este nome e em outras do mesmo circuito, mas nas próprias disciplinas de conteúdo específico relacionadas a uma temporalidade ou espaço ("História Antiga", "História Medieval", "História Moderna", "História do Brasil", "História da África", etc).
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Na verdade, penso mesmo que aquilo de mais essencial e útil que um aluno pode aprender dos seus professores destas diversas 'disciplinas de conteúdo' é precisamente Teoria e Metodologia da História. Assim, não é tão importante aprender conteúdos específicos de 'História Moderna' em um curso de graduação em História, quanto aprender Teoria ou Metodologia da História "através" da História Moderna. É menos importante aprender conteúdos específicos sobre a Revolução Francesa ou sobre o Renascimento, do que desenvolver competências relacionadas a Teoria e Metodologia através destes conteúdos. Por exemplo, ao estudar a Revolução Francesa em si mesma, o aluno pode alcançar aspectos ainda mais decisivamente importantes, para o seu futuro de historiador, do que os próprios conteúdos diretamente relacionados à Revolução Francesa. Quando se estuda a revolução francesa, ou qualquer outra revolução, pode-se aperfeiçoar a competência, por exemplo, de lidar teoricamente com as revoluções de diversos tipos, ou pode-se aprimorar a sua capacidade de trabalhar com as fontes deste período. Quando estudamos uma sociedade antiga ou medieval, não importa qual seja ela e em qual período, estamos aprendendo a lidar (teórica e metodologicamente) com sociedades antigas e medievais, e também aperfeiçoando ainda mais a nossa competência teórica e metodológica geral como historiadores.
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De fato, o principal a se aprender em um curso de graduação em História não pode ser os conteúdos espaço-temporais específicos, por eles mesmos. Estes conteúdos vão ser aprendidos ou assimilados, obviamente, mas o que eu quero dizer é que não são eles o que há de mais importante. Não é mesmo necessário que um conteúdo específico seja aprendido (isto é, se um conteúdo específico não for aprendido ou assimilado no curso de graduação, e uma infinidade deles não o serão, isso não repercutirá necessariamente como uma lacuna para a vida futura do historiador).
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Se os conteúdos específicos fossem o principal, o Ensino de História sempre seria lacunar. Por mais que um currículo de Graduação em História esteja bem guarnecido de disciplinas de História Antiga, sempre existirão sociedades antigas que ficarão faltando. Na História do Egito, por mais que seja oferecido um bom conteúdo, será obviamente impossível abarcar tudo sobre os vários milênios desta História, ou tudo o que seria importante para a humanidade saber sobre o Antigo Egito.
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O que podemos realmente aprender em um curso de graduação em História é sermos historiadores. Aprendemos a pensar teoricamente como historiadores, a agir metodologicamente como historiadores, a escrever como historiadores. Em um curso de História - "através" dos diversos conteúdos - aprendemos sobre o Tempo, sobre a alteridade das fontes, e sobre muitas outras coisas. Aprendemos a não cometer anacronismos, aprendermos a sermos críticos, e assim por diante. Não é um conteúdo espaço-temporal específico que é o mais importante, mas todas essas coisas.
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Costumo dar um exemplo. Imaginemos que um dia sejam descobertas as ruínas da Atlântida, e que, subitamente, os historiadores tenham à sua disposição as fontes de uma civilização antiga correspondente à Atlântida. A Atlântida, neste momento, deixaria de ser apenas uma lenda e passaria a ser História. No momento em que passassem a estar acessíveis aos historiadores as fontes históricas relacionadas à Atlântida, haveria uma espécie de corrida dos historiadores para escreverem os primeiros livros de história sobre a Atlântida. Possivelmente, algumas universidades incluiriam em seus currículos uma "História da Atlântida". De todo modo, é importante ter em mente que, se o principal a ser aprendido nos cursos de graduação fossem os conteúdos específicos ("História da Grécia", "História dos Estados Unidos"), os historiadores não poderiam elaborar - pela primeira vez - a "História da Atlântida".
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O que permite que os historiadores possam a qualquer momento elaborar uma história de qualquer coisa, inclusive a de uma civilização cujas fontes tenham sido repentinamente descobertas, é o fato de que eles aprenderam a pensar historiograficamente, a teorizar, a agir metodologicamente, a produzir uma escrita específica que é a do historiador. Diga-se de passagem, antes que existissem os cursos de graduação em História, a partir do século XIX, os historiadores não deixavam de aprender essas coisas, de acordo com o padrão de suas próprias épocas. É perfeitamente possível aprender fora da Universidade, também. De qualquer maneira, se existe uma Universidade, e um curso de graduação em História, é para que se aprenda algo ainda mais importante do que os conteúdos específicos: os pensares e fazeres relacionados à História, um modo de escrita, uma competência para dialogar com as fontes e com outros historiadores - uma consciência histórica. Em duas palavras: Teoria e Metodologia.
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É por isso que são tão importantes as disciplinas relacionadas à Teoria e Metodologia da História - e à Historiografia, que corresponde à análise das obras produzidas pelos historiadores. E é por isso, também, que é importante aos professores de disciplinas relacionadas a conteúdos espaço-temporais específicos - a "História do Brasil", a "História Contemporânea", e assim por diante - ensinar Teoria e Metodologia através de suas disciplinas.
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Quando digo "ensinar", estou utilizando a expressão com um sentido mais flexível. Não é "ensinar" no sentido de transmitir uma competência que é sua ao aluno. Ensinar aqui é mediar o grupo de alunos para que trabalhem de uma determinada maneira para que, a partir desta atividade, possam desenvolver competências várias. Trata-se, portanto, de agir como mediador de um grupo para que este aprimore a capacidade de pensar teoricamente, agir metodologicamente, escrever historiograficamente.
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Essa enfim, é a importância da caminhada que aqui iniciamos. Sem Teoria, Método, e o desenvolvimento de uma habilidade historiográfica de Escrita, não é possível a alguém se formar historiador. Teoria, Metodologia e Historiografia são o mais importante. Tudo o mais é negociável.

Para aprofundar mais a importância da Teoria na formação do Historiador, leia:


http://www.periodicos.proped.pro.br/index.php?journal=revistateias&page=article&op=viewFile&path%5B%5D=513&path%5B%5D=552

Dois Modelos Imaginários de Ensino

Antes de iniciar a caminhada de reflexão sobre a Escrita da História, eu gostaria de entretecer algumas reflexões sobre o Ensino, de maneira geral, e sobre o Ensino de História nos cursos de graduação, em especial. Faço isso apenas para me situar, ainda que primariamente e cometendo algumas simplificações (partirei, aliás, de uma dicotomização que não se verifica como tal na realidade complexa do Ensino, mas que é um bom começo para reflexão). Vou introduzir alguns comentários iniciais, e depois remeter a um texto que poderá ser acessado. Antes de mais nada, peço também desculpas aos especialistas em Educação, pois não sou um conhecedor específico da Teoria da Educação, e, aos especialistas, alguns de meus comentários talvez pareçam primários, lugares-comuns, ou mesmo equivocados. A maior parte das reflexões que apresento aqui foram produzidas por uma vivência de muitos anos em sala de aula, particularmente no Ensino de graduação em História, e também no Ensino de Música, uma outra área em que também atuei durante muito tempo.
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Fala-se muito no deslocamento, no último século, de modelos que visavam a 'transmissão de conhecimento' (que muitas não eram senão camuflagens de modelos voltados para a 'transmissão de informações') para novos modelos baseados na 'produção de conhecimento'. Esta questão, obviamente, é fundamental para o Ensino de História - inclusive para o Ensino de História em níveis de graduação, isto é, o Ensino destinado à formação do historiador. Vamos chamar aqui a esta formação específica, a que irá permitir que surja um profissional de história, ou ao menos alguém com um conhecimento especializado sobre o fazer histórico, de "formação histórica".
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É claro que este deslocamento de modelos sintoniza perfeitamente com o deslocamento de um modelo imaginário de História Factual, narrativa ou informativa, para um modelo de História problematizado, e por isso também se agrega a esta reflexão algo que também será útil mais adiante. Mas neste momento estou preocupado com a questão mais geral do Ensino mesmo - que poderia ser também o Ensino de Biologia, Física, Economia, Música, ou qualquer outro. Pretendo refletir sobre a posição dos vários agentes que fazem parte do processo de ensino, no que concerne a dois modelos-limite. Não digo que estes modelos ocorram de forma pura na complexidade real, mas será interessante refletir sobre esta dicotomia, mesmo que para discordar dela, propor depois uma reflexão mais complexa, motivar novos desdobramentos, e assim por diante.
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Deste modo, quero começar esta caminhada com este assunto que não fará parte do caminho central - o da reflexão sobre a Teoria da História - mas que poderá ser metaforicamente considerado como uma pequena estalagem na qual os viajantes pernoitaram antes de seguir a viagem. Afinal, estaremos envolvidos a partir daqui em um processo de Ensino e Aprendizagem em torno do fazer histórico, ou, mais especificamente, em um processo de construção da "formação histórica" que permitirá que assumamos no futuro - e refiro-me neste momento aos historiadores em formação - uma profissão específica, que se estabelece sobre a prática em uma disciplina que tem desenvolvido os seus próprios aportes teóricos, os seus métodos, uma forma de Escrita.
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Proponho então a leitura do seguinte texto, que escrevi para esta finalidade. Trata-se de uma reflexão sobre o que é o Ensino hoje, sobre como nos situamos diante dele. Refletir sobre isso poderá contibuir para as nossas escolhas diante do caminho a seguir:

http://www.scribd.com/doc/36440618/Modelos-Limite-de-Ensino-uma-reflexao-livre-2010