segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Materialismo Histórico - esclarecimentos para os iniciantes nos estudos históricos

Na última postagem deste blog, examinamos dois paradigmas importantes que começaram a surgir na mesma época em que a História passou a postular um estatuto de cientificidade: o Positivismo e o Historicismo. Neste momento, pretendo a discorrer sobre o terceiro paradigma historiográfico importante que surgiu ainda no século XIX: o Materialismo Histórico. Com este terceiro paradigma, temos os três paradigmas que se afirmam no século XIX como alternativas para os historiadores: o Positivismo, o Historicismo e o Materialismo Histórico. Havia ainda outras variações e possibilidades, como a historiografia idealista inspirada na 'Filosofia da História' de Hegel, ou como o paradigma romântico, que em muitos casos apresenta pontos em comum com o Historicismo. Mas deixaremos para falar nestas correntes em outros momentos. Por ora, vamos nos concentrar no Materialismo Histórico e procurar perceber em que este paradigma, fundado por Marx e Engels, contrasta com os dois paradigmas anteriores. Gostaria de alertar para o fato de que me permitirei a algumas simplificações, uma vez que este post, especificamente, é destinado àqueles que ainda não estão familiarizados com os fundamentos do Materialismo Histórico. Em outros posts, avançaremos para níveis maiores de complexidade.
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Um primeiro elemento pode opor o Materialismo Histórico ao outros dois paradigmas (Historicista e Positivista). Pode-se dizer que aqueles paradigmas, nos seus primórdios, adequaram-se satisfatoriamente bem a projetos conservadores (amparar o projeto de "conciliação de classes" que interessava à Burguesia Industrial, no caso do Positivismo Francês, e dar sustento às necessidades dos governos nacionais, no caso do Historicismo Alemão). O Materialismo Histórico, por outro lado, vai se vincular no momento do seu nascedouro a um projeto declaradamente revolucionário. Trata-se de um paradigma historiográfico que tenta dar respostas a uma história que se volta também para as classes sociais menos favorecidas, e não apenas para as elites. Mais ainda,de acordo com o projeto mais específico de Marx, trata-se de contribuir para uma transformação da sociedade.
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Vejam. Isso não quer dizer que cada Positivista e Historicista seja conservador, ou que todo historiador que instrumentaliza o Materialista Histórico seja revolucionário ou que tenha interesses libertadores. O Historicismo, apesar de seus inícios conservadores, foi caminhando para um "relativismo" bastante interessante para a Historiografia, o que favoreceu cada vez mais a tomada de consciência de que "tudo é histórico". O Positivismo também trouxe propostas interessantes para o desenvolvimento das ciências sociais, tal como a corrente teórica de Durkheim (um sociólogo do início do século XX). E o Materialismo Histórico, apesar de inúmeras contribuições que beneficiaram um olhar menos elitista da História, também não deixou de trazer uma corrente que nos dias de hoje é muito questionada, e que é a do stalinismo, na primeira metade do século XX. Mas vamos nos guardar de analisar este ou aquele paradigma como bom, e este ou aquele outro como "mal". O importante, por ora, é conhecermos os paradigmas, e também outras correntes teóricas e alternativas, para fazermos nossas escolhas futuras. Há também autores fundamentais que se localizam "entre" os paradigmas. Outros, fazem combinações entre elementos dos diversos paradigmas. Ou seja, os paradigmas, no seu estado puro, são mais referências do que realidades na prática historiográfica efetiva.
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Vamos agora ao tema deste texto: o Materialismo Histórico.
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Antes de mais nada, dois nomes importantes. Os fundadores deste novo paradigma foram Karl Marx e Friedrich Engels, dois pensadores alemães. Depois vieram outros, muitos outros. Até hoje, o Materialismo Histórico é um paradigma adotado por muitos historiadores, ou por vezes influencia outros historiadores ainda, mesmo que eles não sejam ligados totalmente ao Materialismo Histórico.
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O Materialismo Histórico tem três traços principais que não podem ser esquecidos: "Materialismo", "Historicidade total", e "Dialética". Eu diria que estas três instâncias constituem o "núcleo duro" do Materialismo Histórico: aquilo que, se for retirado, descaracteriza totalmente o que poderia ser chamado de Materialismo Histórico. É na união destas três instâncias - Historicisdade, Materialismo e Dialética - e de mais alguns conceitos (como o de "classe social" e "luta de classes"), que se constrói este paradigma que vamos começar a definir neste momento.
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Em outras oportunidades, discutiremos melhor o que é "Materialismo". Mas só para viabilizar uma imagem inicial, podemos considerar que o "Materialismo" corresponde às maneiras de pensar que se opõem ao "Idealismo". Um sistema de pensamento é "idealista" quando começa a pensar as coisas a partir do "mundo das idéias", do "mundo espiritual", e só depois desce à realidade mais concreta e prática, ao mundo sensível, à materialidade física, e assim por diante. Como exemplo de filósofo "idealista" podemos lembrar Platão, filósofo da Grécia Antiga. Lembremos do célebre "mito das cavernas". Platão sugeria através deste mito, descrito em um de seus diálogos, uma hipótese primordialpara o seu pensamento. Além deste mundo em que vivemos, existiria um mundo anterior e mais perfeito - o "mundo das idéias". O nosso mundo não seria mais do que uma imitação mais perfeita desse "mundo das idéias".
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Isso é um padrão de pensamento "idealista". Muitas religiões, sem querer entrar no mérito de quais, e em quais momentos de sua história, colocam todo o seu investimento em um mundo que existiria depois da morte, e pregam que esse mundo material não tem importância. Isto é uma forma de "idealismo". Também existe um pensamento idealista naqueles filósofos que imaginam que tudo começa, inclusive a história, com uma "idéia", com o "espírito", com o "pensamento", e que o mundo material e concreto, a vida prática, é só um desdobramento de coisas que, antes de se concretizarem, adquirem existência em um plano não material. São alguns exemplos de idealismo.
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Hegel, um filósofo que poderemos discutir em outra oportunidade, era idealista. Ele postulava que a História começa sempre no mundo das idéias. A História seria a realização de uma espécie de "plano da natureza", e o mundo teria começado com um "espírito" que depois se concretizou e deu origem à Matéria. O pensamento de Hegel foi um dos muitos pensamentos idealistas que surgiram na história da filosofia (mas já veremos que uma das noções desenvolvidas por Hegel foi muito aproveitada pelo Materialismo Histórico: o pensamento dialético).
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O Materialismo, ao contrário do "Idealismo", acredita que tudo começa no mundo material, prático, concreto, e que só depois as idéias, as maneiras de pensar, a arte, as ideologias, vão surgindo. Para os materialistas, o historiador tem que começar analisando a base material, a vida concreta, o sistema de trabalho e a economia de uma sociedade. Só depois de examinar estes aspectos, é que ele pode entender por exemplo o plano cultural a arte de um povo, a sua organização política, o seus sistema de hierarquias sociais, preconceitos, e assim por diante. Mas voltaremos a isto depois.
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O segundo elemento do Materialismo Histórico é o conceito de "historicidade absoluta". Tudo é histórico, como já diziam os historicistas (neste ponto, os "materialistas históricos" e os "historicistas" se parecem bastante). Nada escapa à História. Para o materialista histórico, assim como para os historicistas, não existiria uma natureza humana fora da História, independente desta. A natureza humana vai mudando de acordo com a história. Não existiriam valores eternos, fora da história.
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Mas examinemos agora o terceiro elemento do Materialismo Histórico: a Dialética. Para isso, precisarei fazer uma breve digressão. De onde Marx e Engels tiraram a Dialética? Eles se inspiraram precisamente naquele filósofo do qual já falamos: Hegel. Hegel era "idealista"; mas avançou muito no desenvolvimento da dialética, e Marx e Engels aproveitaram isto (só que ao invés de uma "dialética idealista", como a de Hegel, eles irão trabalhar com uma "dialética materialista").
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Os três elementos principais da dialética são: "movimento", "interpenetração dos contrários", "totalidade". Um filósofo pré-socrático, da Grécia Antiga, chamado Heráclito, já falava muito destes aspectos. Para ele, a realidade seria um interminável "movimento", e nela existem sempre "forças opostas" se debatendo umas contra as outras (o calor e o frio, a água e o fogo, etc). Heráclito dizia: "é impossível entrar duas vezes no mesmo rio". Isso porque, quando alguém tenta entrar a segunda vez no mesmo rio, nem o rio é mais o mesmo, e a própria pessoa já mudou um pouco. Mas vamos voltar a Hegel.
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O Movimento Dialético proposto por Hegel começa com uma "Tese" (o ponto inicial de onde tudo começa). Dentro da Tese, mesmo sem que percebamos, já existe um elemento imperceptível de contradição. Quando essa contradição aumenta muito, ou se explicita, surge um segundo elemento, a "Antítese". A "Tese" e a "Antítese" são contraditórias. Elas estão entremeadas em uma realidade, e na verdade a constituem, mas são "contraditórias", e cedo ou tarde se confrontarão. Do confronto entre a Tese e a Antítese, surgirá um produto final: a Síntese. A Síntese tem traços da Tese, e traços da Antítese. Mas já é uma nova coisa. Este é o resultado final de um processo dialético: a Tese entra em confronto com a Antítese, e daí se produz a Síntese.
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Um exemplo já clássico é o da "estatueta de madeira". Digamos que um indiviíduo tenha vontade de construir uma estatueta de madeira. Essa é a "Tese". Para que esse indivíduo possa construir uma estatueta de madeira, contudo, não pode só ficar na idéia de esculpir a estatueta. Tem que passar à ação. A própria idéia de esculpir uma estatueta já traz dentro dela essa necessidade de passar à prática. Com vistas a executar o seu intento, o escultoir sai em busca de material para construir a estatueta, e encontra um pedaço de madeira. A madeira é a "Antítese". Vejam, estas duas coisas não poderão sobreviver uma à outra: elas terão que se enfrentar. A ideía de construir uma estatueta, logo terá de deixar de ser uma idéia. Também a madeira, logo terá de deixar de ser madeira. Uma é a Tese, a outra a Antítese. Então, o escultor começa o seu trabalho de construir a estatueta: a idéia vai se concretizando aos poucos (e deixando de ser idéia), e a madeira vai adquirindo, sob as suas mãos (de acordo com a sua idealização), uma nova forma. Ou seja, a madeira vai deixando de ser "madeira bruta", para se tornar uma "madeira trabalhada", esculpida, e logo logo uma "estatueta". No final de tudo, desapareceu tanto a idéia de construir a estatueta, como desapareceu o pedaço de madeira bruta. Uma nova coisa surgiu: a "estatueta de madeira", que é a Síntese. A "estatueta de madeira" tem tanto um pouco da "ideía de estatueta", como um pouco da m"madeira bruta". Mas ela é uma nova coisa.
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Dei outro exemplo: o da Água (H2O, de acordo com a fórmula química). Geralmente o que chamamos de "água" é o H2O em sua forma líquida. A "água" tem algumas caracetrísticas: é fria, morna, ou mesmo quente (mas não pode ultrapassar determinada temperatura). Suas moléculas não são tão unidas como as do gelo (que dão à água neste estado aquela solidez do gelo). As moléculas da água também não são totalmente desligadas uma das outras, como as moléculas do ar ou de um gás. Por isso, sem serem demasiado unidas ou demasiado soltas, a água tem aquela propriedade de se ajustar a qualquer recipiente (tomar a forma do copo ou da garrafa em que a depositamos). Bom, isso, enfim, é "Água". Esta será a nossa "Tese".
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Conforme disse, só existe "água" (em estado líquido) até uma certa temperatura. Abaixo dessa temperatura, por exemplo, as moléculas começam a se unir, e a água vira gelo. Acima de certa temperatura, as moléculas começam a se soltar demais e a água vira "vapor d´água". Bom, suponhamos que minha água está em um recipiente, e começo a fornecer-lhe mais temperatura. A "Elevação de Temperatura", no caso, será a minha "Antítese". A "Água" (a Tese) aceitará bem esta elevação de temperatura (a Antítese), mas só até certo ponto.
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Digamos que começamos a fornecer muito calor à água. Chega um momento em que as duas coisas - a "água" em estado líquido (a Tese), e a temperatura elevada (a Antítese) - já não podem conviver mais uma com a outra. Este é o momento máximo da "contradição" (a contradição é uma das categorias da dialética. é quando dois contrários, ou duas coisas incompatíveis, já não conseguem conviver mais uma com a outra). No caso em que estamos dando como exemplo, essa contradição vai ocorrer, no seu momento mais insustentável, quando a temperatura sobe a 100%. Nesse momento, a "água" não aguenta mais a temperatura (e podemos dizer que a temperatura também não aguenta mais a água"). O que ocorre então? Á água vai se transformar em "vapor dágua" (H2O em estado gasoso).
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O vapor dágua é a Sintese nesse caso. Ele contem água (a substância H2O), mas também um pouco das exigências da temperatura elevada (as moléculas soltas). Esse é o final desse processo dialético: do confronto entre água líquida (tese) e temperatura elevada (antítese), surgiu o vapor dágua (síntese).
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Prestem atenção naqueles "100 graus". Eles foram o momento no qual, subitamente, a água começou a se transformar em vapor. O processo dialético sempre comporta um momento destes: é o momento em que uma coisa parece "saltar" de um estado a outro (é o momento em que, no exemplo anterior, a "estatueta" já começou a tomar forma, e todo mundo percebe que a "madeira bruta" já está desaparecendo).
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O 100°, para a História, é muito importante. Em um processo histórico, esses "cem gaus" podem corresponder ao momento histórico de uma "revolução", ou de um acontecimento em que uma sociedade muda repentinamente e se transforma em uma outra coisa. O conceito de "revolução" também é muito importante para o paradigma do Materialismo Histórico.
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Vou introduzir, neste momento, já um exemplo histórico, mesmo que simplificado. Começarei com o exemplo da sociedade feudal. O mundo feudal, tal como ocorreu na Europa a certa altura do período medieval (entre os séculos XI e XIV, em alguns países) era constituído, grosso modo, de "feudos". O feudo era uma propriedade grande de terra , que tinha um "senhor", e muitos "servos" que terabalhavam a terra. O "servo" esra uma categoria mais livre do que o escravo da antiguidade romana, mas que (pelo menos aparentemente) não era tão livre como o operário do mundo capitalista. O servo, por exemplo, tinha que ficar preso à terra. Não podia simplesmente pegar suas coisas e ir buscar trabalho em outra freguesia.
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Esse era o mundo feudal. Havia os senhores, que pertenciam à ordem dos "guerreiros" (os bellatore, ou "os que lutam"), e os camponeses (os laboratore, "os que trabalham", que na verdade eram "os que cultivam a terra"). Havia ainda um outro elemento importantíssimo que era a Igreja, e a sociedade feudal também concedia um papel importante aos monges e eclesiásticos ("os que oravam"). Aliás, na época era difundida uma "ideologia" - um conjunto de idéias no qual todos eram levados a acreditar - que pode ser denominado "Ideologia das Três Ordens"). Dizia-se que, de acordo com a vontade de Deus, a sociedade era constituída de três ordens: os laboratore (os que trabalham), os bellatore (os que guerreiam), os oratore ("os que oram". Todo mundo que encontrasse o seu lugar nesse "triângulo trifuncional", como também é chamado, estava de acordo com a vontade de Deus.
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O Feudo perfeito produzia tudo o que precisava, e também consumia tudo, sem deixar sobras. Era portanto "auto-suficiente". Veja, isso é um "tipo ideal" de Feudo (para usar aquele recurso inventado por Max Weber, ao qual me referi acima, e que é pensar um modelo no estado puro). Na prática, não era bem assim. Sempre sobrava uma coisinha, e sempre faltava uma outra. O que ocorria, então, é que o "senhor", o "dono do feudo", designava um dos seus camponeses para ir no outro feudo trocar a sobrinha do feudo com alguma coisa útil.
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Vejam, sem querer, começou a surgir desse camponês que tinha essa função especial uma figura estranha ao "triângulo trifuncional" (os que guerreiam, os que "cultivam a terra", os "que oram").. Para ele viajar até o outro feudo, para trocar mantimentos de um tipo, com mantimentos de outro tipo, ele precisava parar de cultivar o solo (ou seja, precisava "deixar de ser camponês", pelo menos naquele momento). Sem querer, esse mundo feudal (a nosa Tese) já trazia dentro dele uma pequenina contradição, que era esse camponês deslocado para exercer uma função estranha. Mas isso não atrapalhava muito, e era perfeitamente assimilável ao sistema. Era até uma contradição "necessária ao sistema".
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Tudo funcionava bem, porque o que o feudo produzia era mais ou menos o que era consumido (auto-suficiência do feudo). Mas começou a ocorrer de repente um interessante fenômeno histórico. À medida que os camponeses trabalhavam, foram aprendendo a trabalhar cada vez melhor (foram desenvolvendo novas técnicas de cultivo). Como eram também eles que construíam os seus instrumentos (não havia artesãos, especializados em só construir instrumentos e ferramentas). logo eles começaram a construir instrumentos cada vez melhores. Aperfeiçoaram a "charrua", os instrumentos de arado, descobriram um modo de plantio no qual parte da terra descansava enquanto a outra trabalhava - enfim, com o desenvolvimento tecnológico, o trabalho se otimizou, começou-se a produzir mais mantimentos. Mais bem alimentados, a população camponesa foi também aumentando (isso é um dado que pode ser comprovado empiricamente nas fontes históricas, assim como a invenção de novas técnicas e instrumentos). Mas, de todo modo, começou a sobrar mais produtos do que podiam ser consumidos. Começou a ser produzido um "excedente".
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Nesse momento, surgiu uma contradição no sistema feudal: "uma produção maior do que o consumo". Na verdade, não é que surgiu a contradição naquele momento. Já existia aquela sobrinha, que aquele camponês era deslocado para negociar, como vimos antes. Só que a sobrinha foi aumentando. Podemos dizer que a "temperatura da água" começou a aumentar. A água correponde au "feudo" (nossa Tese). A temperatura aumentando corresponde ao "aumento da produção", ou às sobras cada vez maiores (a nossa Antítese). Quando essa produção ficou "muito maior", chegou o momento em que a contradição começou a se explicitar. Essa é a nossa temperatura de "100 graus". Cada vez mais, camponeses foram teransformados em "comerciantes". Alguns adquiriram o direito de se desligar do feudo. Começaram também a se arricar maios, e a desenvolver um "comércio de longa distância" (ir trocar mercadorias em outros países, para trazer, por exemplo, "especiarias" do oriente). Um lugar que começou a se desenvolver muito para acolher essa nova atividade que era o Comércio foram as Cidades. Vejam, as cidades já existiam (ou continuaram a existir na Idade Média, como heranças da Antiguidade). Mas a população era pequena. Algumas eram controladas pela Igreja (por um Bispo). Outras eram controladas por um ou mais senhores feudais. Só que cada vez mais as cidades foram acolhendo os comerciantes. A população foi crescendo. Surgiu um grupo de artesãos (pessoas especializadas, pela primeira vez, em construir ferramentas) A Cidade Medieval começou a se integrar à "contradição", ao Comércio de longa distância.
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Vejam que nesse momento já há uma contradição muito grande. Se o sistema feudal é caracterizado essencialmente por ser um sistema "fechado", "auto-suficiente", "trifuncional" (isso é, constituído de senhores, camponeses e monges), agora ésse mesmo sistema feudal tinha produzido um conjunto de coisas que já não se encaixava mais nessa situação inicial (a Tese, isto é, o mundo feudal). Uma contradição que foi aumentando cada vez mais ("a produção maior do que o consumo") foi dando origem a uma série de coisas novas, contraditórias em relação ao sistema anterior: a "estranha" figura do "comerciante" (estranha, claro, para o mundo feudal); outros tipos de trabalhadores, como os "artesãos"; o desenvolvimento urbano (Cidades cuja população e importância foi aumentando, e que acabaram conquistando a sua liberdade); o Comércio de longa distância, que nada mais é do que uma grande contradição em relação ao "feudalismo fechado", já que o comércio representa uma abertura para o mundo exterior.
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Todo esse complexo começou a se afirmar como uma "Antítese". Para superar essa Antítese, foi preciso ocorrer uma espécie de "revolução comercial". Não foi na maior parte dos lugares um movimento social como a revolução francesa, mas uma "revolução" no sentido mais amplo: uma revolução de costumes, o surgimento de uma nova maneira de pensar, o crecimento urbano, o desenvolvimento de estradas, um maior desenvolvimento da naútica, e, sobretudo, a invenção, ou o uso cada vez mais frequente, do "dinheiro". Não só dinheito sonante, mas também sistemas de câmbio (letras de câmbio, e outros recursos que facilitavam os negócios, mesmo sem precisar envolver dinheiro físico). Surgiu uma coisa nova: o "lucro". Tudo isso pode ser chamado de "Revolução Comercial" da Idade Média. Acabaria resultando daí uma nova sociedade e uma nova época: a Idade Moderna (a Síntese).
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Vejam, eu trabalhei nesta explicação simplificada com uma espécie de "tipo ideal" (para utilizar esta noção de Max Weber). Não é que só tenha acontecido isso, de acordo com o modelo puro que foi desenvolvido acima. A realidade foi um pouco mais complexa. Também utilizei a "dialética" para tentar compreender esse processo histórico que conduziu da Idade Média (mundo feudal) à Idade Moderna, através da "revolução comercial".
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Notem que não usei uma "dialética idealista", como faria Hegel (o filósofo idealista). Hegel tentaria começar a explicação dele com o mundo das idéias, talvez com a questão das "Três Ordens" (a ideologia divisão da sociedade em um triângulo trifuncional), ou com alguma necessidade do grande "Espírito Universal". Na minha explicação, eu comecei com um aspecto material da sociedade feudal: a propriedade concreta que era o feudo auto-suficiente, e a divisão do trabalho entre três tipos, os camponeses, os senhores, e os monges. Comecei explicando o mundo material, sobretudo o aspecto da autosuficiência e do perfeito equilíbrio entre a "produção" e o "consumo" (ou seja, uma questão econômica). Depois é que foram surgindo as outras coisas - as três ordens, etc. Também foram surgindo novas situações materiais da própria vida material, como o aperfeiçoamento do trabalho e a invenção de novas ferramentas. depois começou a surgir um sistema monetário, e finalmente surgiu a vontade do "lucro". O caminho foi da materialidade às situações relacionadas às relações sociais, depois ao surgimento de uma nova mentalidade, a do lucro. Isso foi uma explicação a partir de uma "dialética materialista".
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Vejam outra coisa. A realidade é na verdade mais complexa do que este "tipo ideal". Vocês vão ver no próximo semestre, na disciplina "Idade Média", que entram outras forças neste processo que eu não mencionei para não estender muito a explicação. Por exemplo, o "Rei". O "rei" no período feudal era uma figura fraca. Era na verdade, quase um "senhor" entre outros - um "senhor" um pouco mais forte, com a função de juiz maior, e que juntava exércitos dos outros senhores quando era necessário enfrentar outros povos. O "poder régio" também vai se fortalecendo muito a partir do século XIII - e entrando em contradição com o poder de autonomia de cada feudo. Na verdade, em muitos casos, os comerciantes e as cidades se aliaram a essa monarquia que foi se fortalecendo cada vez mais. A Idade Moderna já vai ser caracterizada pela emergência dessas monarquias fortes em alguns países como a França, a Espanha, Portugal, Inglaterra. As contradições nuna são tão simples na História. Estou apenas explicando, através de um exemplo simplificado, um modelo de pensamento. Quem quiser ler sobre este fortalecimento do Poder Régio, leia o livro "O Processo Civilizador", de Norbert Elias.
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Também surgiram contradições na Igreja (por exemplo, surgiram as "heresias"; e surgiram novas ordens como a dos "franciscanos", que foram viver bem no coração das cidades). Surgiram contradições, também, entre o Poder da Igreja e o Poder Régio. Todas essas contradições, vocês vão ver depois na disciplina Idade Média.
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Estou só dando exemplo de como seria a análise de um processo histórico - no caso a passagem da Idade Média Feudal ao Mundo Moderno - através de uma análise baseada no modelo do paradigma do Materialismo Histórico, que trabalha com as contradições.
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Vejam outra coisa. Todo tempo eu falei em alguns tipos humanos: o "camponês", o "senhor", os "eclesiásticos", o "comerciante", a "realeza". Não citei, em nenhum momento, um nome. É que, para o Materialismo Histórico, a história não é feita por indivíduos, mesmo os mais ilustres. Essas várias figuras que eu mencionei - o "camponês", a "aristocracia guerreira", a "burguesia ligada ao comércio" - representam "classes sociais". Para o Materialismo Histórico, a História é a história da "luta de classes". Pode ser luta mesmo (física, militar), ou confronto de interesses (por exemplo, os "interesses da burguesia" começam a se confrontar com os "interesses dos senhores feudais"). Para o Materialismo Histórico, a história dá-se através da "luta de classes", e também através da transformação de um tipo de sociedade em outro - ou melhor, de um tipo de organização econômica, ou de um "modo de produção", em outro. Vejam, não é só isso. Mas estes são alguns conceitos fundamentais do Materialismo Histórico.
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Uma última coisa. No século XIV aconteceu a "peste negra", por exemplo. Isso teve outros efeitos nessa transformação da sociedade medieval e na sua passagem à Idade Moderna, pois a população declinou novamente. Ou seja, claro que elementos climáticos, acontecimentos imprevisíveis, e outras coisas, também entram na História. Também teve muita revolta camponesa que foi sufocada; e aconteceram algumas revoltas urbanas.
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Esses são elementos que mostram que a realidade, na História Medieval, é bem mais complexa do que o que poderia ser simplificado pelo esquema atrás descitro. Apenas procurei oferecer aqui um exemplo histórico concreto. Poderiam ser dados outros exemplos, tais como o processo da Revolução Francesa, ou a Queda do Império Romano. Processos e acontecimentos históricos como estes também podem ser analisados sob a ótica do Materialismo Histórico. Este paradigma, enfim, oferece uma certa maneira de ver as coisas, assim como também o fazem os paradigmas Positivista e Historicista. E não está excluída a possibilidade de se combinar, para a interpretação de algum processo histórico elementos dos três paradigmas, ou de outros autores diversos. Mas isto é tema para um texto futuro.

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