sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Luta de Classes

“A história de todas as sociedades, até hoje, tem sido a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro especializado das corporações e aprendiz, em suma: opressores e oprimidos estiveram em permanente oposição; travaram uma luta sem trégua, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito” (MARX e ENGELS, Manifesto Comunista, 1848)
).

O Manifesto Comunista (1848), um longo texto do qual transcrevemos apenas um trecho inicial, é um texto bastante peculiar. Ao contrário de grande parte dos textos de Marx ou de Engels, não é um texto exclusivamente filosófico ou científico, destinado a estudar uma questão histórica, a analisar uma realidade social, ou a discutir conceitos com vistas a estruturar um sistema de compreensão da realidade. Este texto, em primeiro lugar, é o que diz o próprio título: um manifesto. Foi escrito para expressar o programa e propósitos da Liga Comunista, bem como para sensibilizar para a causa socialista certos setores organizados do movimento de trabalhadores, em meados do século XIX. Trata-se, em boa parte, de um instrumento de confronto e de propaganda, mas que ao mesmo tempo traz incorporadas algumas das idéias científicas de Marx e Engels acerca da história, da economia e da sociedade.

A razão de transcrevermos aqui este pequeno trecho que dá partida à argumentação desenvolvida no Manifesto Comunista é que, neste escrito orientado pela perspectiva do Materialismo Histórico, ocupam uma posição primordial, e também são beneficiados por uma explicitação direta, três dos conceitos basilares para o novo paradigma: “classe social”, “luta de classes” e “consciência de classe”. Assim, se no Prefácio para a Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), bem como na Ideologia Alemã (1848), afirma-se que a história é a “história do desenvolvimento dos modos de produção”, já no Manifesto Comunista veremos à partida a afirmação de que a história é a “história da luta de classes”.

As duas afirmações não são de modo nenhum incompatíveis; na verdade se complementam, e mesmo se interpenetram. Na longa duração, os “modos de produção” se sucedem, e novas “formações sociais” vão se afirmando em uma história de longo termo que, para o Materialismo Histórico, é regida por um eterno movimento dialético. Contudo, os atores da história são os seres humanos. A história não ocorre sem a ação destes, e ao mesmo tempo ultrapassa o mero limite de ação dos indivíduos. A história, para o Materialismo Histórico, afirma-se aqui como uma história dos grandes grupos sociais, das massas, de forças sociais que agregam os indivíduos. Essa história, todavia, dá-se concomitantemente ao desenvolvimento dos modos de produção, uma vez que os grupos humanos e as forças sociais em contraposição representam posições, interesses e modos de agir articulados ao modo de produção.

Uma “classe social”, ao menos em uma perspectiva possível, ocupa sempre uma posição específica no “modo de produção”, na formação social a ser examinada. A sua história – a das classes sociais em confronto, aliança e luta – é ditada por um ritmo histórico mais agitado: ela se agita através de eventos, assiste à eclosão de revoluções, vê-se atravessada por manifestações ideológicas que podem assumir a forma de produtos culturais específicos. As lutas dão-se nas ruas, nas relações de trabalho, no confronto cotidiano, mas também através de textos, discursos, preconceitos, permanências e inovações. O modo de produção é estrutura e cenário para a atuação das classes sociais, verdadeiros sujeitos da história, de acordo com as proposições que fundamentam o Materialismo Histórico.

O conceito de “classe social”, e as decorrentes noções de “luta de classes” e de “consciência de classe” ocupam, portanto, uma posição central no quadro teórico em que se apóia o Materialismo Histórico. Começaremos por lembrar que o conceito de “classe” aparece desde cedo nos escritos de Marx e Engels (embora não tenha sido criação destes, já que os historiadores franceses do período da Restauração já o haviam utilizado). Em Marx e Engels, conforme já veremos, o conceito não chegou propriamente a adquirir um delineamento fechado e tampouco muito preciso (apesar de sua importância central para cada um destes autores), e chegam a ser registradas formas de utilização relativamente distintas destes conceitos em alguns dos grupos nos quais podemos subdividir as suas obras (as filosóficas, as econômicas e as históricas, por exemplo).

Assim, mostra-se bem diferente o encaminhamento filosófico que Marx imprime ao conceito de “classe social” nas suas obras de juventude, como é o caso dos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), quando o contrastamos com o encaminhamento que ele mesmo dará ao conceito em obras mais marcadamente econômicas, tal como O Capital (1867). Por fim, nas obras históricas – As Lutas de Classe na França (1850), O 18 Brumário (1852) e A Guerra Civil na França (1871) – surge outro tratamento, que busca se adaptar à realidade histórico-social examinada e à análise empírica das fontes .

Na obra O Capital (1867), por exemplo, que tem por objeto de análise o sistema capitalista, existe certa passagem da terceira parte do livro na qual veremos Marx confrontar três classes distintas: a classe dos trabalhadores assalariados (que vivem da venda de sua força de trabalho), a classe dos capitalistas (que extraem seus rendimentos do “lucro”, ou da “mais valia”, que é uma forma tipicamente capitalista de exploração do trabalho assalariado), e, por fim, a classe dos proprietários fundiários, que vive da renda da terra. Se atentarmos para o que estes exemplos nos mostram, a “classe social” parece ser definida aqui em termos da ‘origem dos rendimentos’ que se referem a cada grupo social: salário, lucro, renda da terra .

Em contrapartida, existe outra passagem, escrita em co-autoria pelos dois fundadores do Materialismo Histórico, na qual se faz referência às sociedades antigas, sendo que nesta parece se encaminhar para uma definição de classes por outros critérios. Trata-se agora de uma passagem do acima mencionado Manifesto Comunista (1848), na qual é mencionada a contraposição entre escravos e homens livres. O que se mostra aqui é a dicotomia estabelecida entre duas classes a partir de um estatuto relacionado à liberdade. Não mais há, portanto, uma referência em relação à origem dos recursos que cada classe extrai para o seu viver, pelo menos nesta passagem. No próprio trecho do Manifesto Comunista que colocamos como epígrafe deste item, veremos outras dicotomias classistas apoiadas no status social, além da já citada divisão entre “livres” e “escravos” que se relaciona à Antiguidade Grega. Assim, Marx irá mencionar a dicotomia entre “barões” e “servos” como aquela que dá o tom da alta Idade Média (poderia tê-la apresentado em termos de “senhores” e “servos da gleba”, ou entre “guerreiros” e “camponeses”, esta última já resvalando para o critério funcional). “Mestre” e “Aprendiz”, assim como “Patrício” e “Plebeu” – as outras duas dicotomias mencionadas no mesmo trecho – também insinuam o critério do status social, o que reforça o exemplo antes mencionado.

Por fim, uma terceira situação pode ser ilustrada com uma passagem à qual voltaremos depois, extraída do livro O 18 Brumário (1852). Nesta, e também em outras obras históricas, a classe começa a ser definida pela consciência de pertencimento que passa a ser desenvolvida pelos indivíduos que a compõem, sempre por oposição a outros grupos. Também veremos outra peculiaridade nesta mesma obra, que é uma daquelas em que Marx se coloca efetivamente como historiador (e não como “economista” ou “ativista político”, tal como ocorre nos dois exemplos anteriores). Aqui, obrigado a se instalar em um nível de observação que permita uma avaliação mais complexa da história, tal como ocorre com qualquer historiador, Marx não se compraz mais em discutir a “luta de classes” em termos de uma dicotomia simplificada: ao contrário, irá perceber a múltipla interação entre os diversos grupos sociais, com os seus respectivos representantes no plano político. Guardemos este ponto, pois ele será importante mais adiante.

Estes exemplos, que apenas poderemos mencionar mais superficialmente neste pequeno texto de introdução à questão da “luta de classes”, mostram-nos perfeitamente que Marx e Engels foram construindo o quadro conceitual do Materialismo Histórico gradualmente, e já o adaptando às necessidades concretas a serem enfrentadas pelos seus escritos, sobretudo porque pretendiam antes abrir caminhos do que estabelecer um sistema abstrato e fechado de pensamento. Já com os historiadores e filósofos marxistas subseqüentes, os conceitos associados a “classe social” começam a ser beneficiados por um esforço maior de sistematização, e com isso adquirem múltiplas significações. Gramsci, Lukács e Edward Thompson são apenas três dos nomes importantes nesta discussão que se estende por todo o século XX e atinge o século XXI.

Este texto foi extraído do Terceiro Volume de meu livro "Teoria da História" (BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 3: Os Paradigmas Revolucionários. Petrópolis: Editora Vozes, 2011).

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