sábado, 29 de janeiro de 2011

Espacialidades e Temporalidades da História

Nos dias de hoje, as identidades historiográficas tem sido construídas com um peso importante nas auto-definições de cada historiador em termos de modalidades historiográficas (campos históricos) com as quais ele dialoga, ou no interior de cujas conexões ele produz as suas pesquisas e elabora seus textos historiográficos. Desta maneira, são categorias identitárias importantes, para o historiador contemporâneo, expressões como "História Cultural", "História Política", "História Econômica", "Micro-História", "História Regional", para apenas citar alguns títulos da enorme miríade de campos históricos emque hoje é partilhado o saber e a prática historiográfica.


Por outro lado, os profissionais de História, sobretudo no âmbito do Ensino, mas também no universo institucional da Pesquisa, deve lidar alternadamente com uma série de categorias identitárias mais antigas e já tradicionais, que na verdade são já seculares para os historiadores. São as categorias que se referem a "espacialidades" e "temporalidades". Diz-se de um historiador - independente de suas conexões com a "história cultural", com a "história política" ou com a "micro-história" - que ele é um "medievalista", um historiador da "História Antiga", um historiador da "História da América", da "História da África", do Brasil-Império, e assim por diante. Estas categorias já são clássicas.

Embora o historiador não tenha nenhuma obrigação de se especializar em temporalidades ou espacialidades específicas, e seja cada vez mais comum encontrarmos os historiadores que se definem mais pelos "campos históricos" (História Econômica, História do Imaginário, História de Gênero, etc), é bastante comum que os historiadores sejam chamados a se especializarem em temporalidades ou espacialidades, particularmente quando assumem assentos universitários, já que os currículos de Graduação em História costumam se organizar em torno de uma tblatura que envolve sobretudo as espacialidades e temporalidades, com exceção da área de Teoria e Metodologia da História, que obviamente transcende este tipo de classificações.

Discorreremos, neste momento, sobre classificações relacionadas às ‘espacialidades’ e ‘temporalidades’. O critério das Temporalidades gera modalidades como a História Antiga, História Medieval, História Moderna, História Contemporânea. O critério das Espacialidades gera modalidades como a História Européia, a História da América, a História da África, a História do Brasil, ou as inúmeras histórias de realidades nacionais específicas. Uma ampliação da escala de observação espacial, em direção ao supra-nacional, pode gerar a História das Civilizações (se incorporarmos o conceito de “civilização”), ou, se pensarmos apenas em termos de um agregado planetário, um âmbito mais vasto denominado “História Universal”. Outras divisões relacionadas à espacialidade também podem ser pensadas, como a “História do Ocidente” ou “História do Oriente” (conceitos que sempre precisam ser problematizados, pois bem que poderia ser pensada uma “História do Hemisfério Sul” por oposição a uma “História do Hemisfério Norte”, se olhássemos para o planeta de acordo com uma outra leitura geopolítica). Por fim, é possível combinar “temporalidades” e “espacialidades” para gerar denominações específicas de modalidades históricas, como a “História da América Antiga”, a “História do Brasil Império”, ou a "História do Brasil República" (Quadro 2).

O Quadro abaixo foi construído relacionando no eixo das ordenadas as Temporalidades, e noeixo das abiscisas as Espacialidades. No encontro entre tempos e espaços, localizaremos as identidades historiográficas que habitualmente organizam nossos cursos de Graduação em História. O Quadro faz parte do livro "Teoria da História - volume 1: os conceitos fundamentais" (Petrópolis: Editora Vozes, 2011), a ser lançado em fevereiro deste mesmo ano.



Quadro 2: Modalidades da História por Espacialidade e Temporalidade. Alguns exemplos (Quadro extraído do livro Teoria da História (Petrópolis: Editora Vozes, 2011, vol1) e também incluído em artigo disponível em: http://ning.it/fiY5IC


Naturalmente que a combinação dos critérios da Espacialidade e da Temporalidade gera dilemas e problemas teóricos interessantes, nem sempre fáceis de resolver. Como situar a História do Império Romano, se este, em sua fase de maior expansão, abrangeu vastas regiões da Europa, Ásia e África? De igual maneira, o domínio grego, no período de apogeu militar das ligas Ateniense e Espartana, estendeu-se pela Europa e pela Ásia Menor, o que também inspira dilemas análogos[1]. Há ainda questões outras teóricas interessantes: embora a História Européia possa gerar as tradicionais divisões da História Antiga, da História Medieval, da História Moderna e da História Contemporânea, a História da América não se adéqua bem a esta tábua de leitura, uma vez que não há uma diferença plausível entre uma América Antiga e outra América Medieval que faça qualquer sentido para as sociedades que existiam no período pré-colombiano. De modo geral, denomina-se como “História da América Antiga” a todo o período da História da América que precede a colonização européia a partir da chegada dos espanhóis, dos portugueses, e depois dos ingleses. A série de “Histórias do Brasil”, em contrapartida, também tem as suas especificidades. Prefere-se dividi-la de acordo com sua situação no quadro político externo e interno: um ‘Brasil-Colônia’, um ‘Brasil Império’ já independente, e um ‘Brasil República’. Polêmicas conceituais também podem ocorrer quando estendemos para trás o olhar acerca de uma determinada realidade nacional. O Brasil do período colonial era já “Brasil”, ou seria melhor chamá-lo de “América Portuguesa”?[2].

Deve-se entender, antes de tudo, que os diversos critérios de divisão temporal, que hoje nos são tão familiares e corriqueiros a ponto de os discutirmos muito pouco, são eles mesmos históricos. Mais ainda, nem sempre foram tão gloriosos os começos de todos os “conceitos” que ocupam lugar de honra na Teoria da História. A “Idade Média”, por exemplo – uma modalidade temporal da História que tem sido universo de dedicação de alguns dos mais renomados historiadores europeus, tais como Marc Bloch, Georges Duby e Jacques Le Goff – traz na sua designação uma história à qual não faltaram as imposições depreciativas. Houve uma época em que a expressão “tempos médios” era empregada pela História Teológica para designar um momento da história mundana que já se demorava na sua função de preceder os “finais dos tempos”, estes nos quais um novo mundo se abriria definitivamente para os seres humanos considerados dignos da salvação, ao passo em que outros tantos mergulhariam na danação eterna. Mas depois, com o humanismo que começa a emergir na Itália da época de Petrarca (1304-1374), os “tempos médios” vão designar este longo período “bárbaro” e “sombrio” que se parecia se interpor de maneira incômoda entre o glorioso modelo da antiguidade clássica e os novos tempos humanistas que o queriam recuperar no trecento italiano[3]. Mas rigorosamente falando, tal como assinala Reinhart Koselleck (2006, p.271), parece ter sido Christoph Cellarius (1639-1707), em um manual escrito em 1685, um dos primeiros a já consolidar o uso da expressão “idade média” como designativo de uma das divisões da História Universal (1696), em uma obra que teve tanta repercussão que em 1753 já tinha atingido a sua 11ª edição[4]. A partir daí, “o conceito de Idade Média generalizou-se no século XVIII dos iluministas – quase sempre em sentido pejorativo – para transformar-se, no século XIX, em um topus fixo da periodização histórica” (KOSELLECK, 2006, p.271).

Estes exemplos em torno da trajetória de uma designação que percorre sentidos vários, entre outras investigações de trajetórias semânticas que poderiam se referir à “Idade Antiga”, “Idade Moderna”, “Idade Contemporânea”, “Modernidade”, “Pós-Modernidade” – mostram claramente a historicidade dos próprios conceitos e categorias utilizadas para abordar a questão mesma da ‘historicidade’[5]. Neste quadro de problemas teóricos, ocupam lugar de destaque as intrincadas polêmicas sobre os limites que separam determinadas temporalidades. Quando se encerra a Idade Antiga e inicia-se a Idade Medieval? De acordo com as distintas teorias sobre a desagregação, desarticulação, queda, declínio ou transformação cultural do Império Romano, as datas ou períodos de separação ou transição entre uma época e outra podem oscilar historiograficamente de modo considerável, e já foram propostas interpretações que sinalizam a passagem de um pra o outro período em momentos diversificados no interior de um período de consideráveis extensões que vai do século II ao século VIII. Novos conceitos também podem surgir destas oscilações interpretativas: a “Antiguidade Tardia” pode se estender Idade Média adentro, disputando territórios historiográficos com a “Alta Idade Média”[6]. Sobre isto, ver também http://ning.it/eJ9XEg, em artigo no qual discorremos sobre as ambiguidades relacionadas às fronteiras entre Antiguidade e Idade Média.

Também são igualmente ambíguas as fronteiras entre a Idade Média e a Idade Moderna[7], e ainda mais aquelas que podem ser estabelecidas ou propostas entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea[8]. De igual maneira, quando pensamos no mundo contemporâneo, que período estaríamos vivendo agora, nesta era tão peculiar que se inicia nas últimas décadas do século XX e que adentra o novo milênio: uma Idade Pós-Industrial?, um período Pós-Moderno?, uma fase avançada do Capitalismo Tardio? Surgirá um dia a “História Pós-Moderna”? Na medida em que avançarmos para o Futuro, será necessário redefinirmos toda a tábua tradicional de leitura habitualmente aceita para as temporalidades históricas, já que a “história contemporânea” de hoje será do passado, da mesma forma que a “história moderna” já não é mais moderna? A largas pinceladas, será útil rediscutir as modalidades temporais da História em termos de uma “História da Era Agrícola”, uma “História da Era Industrial”, e a mais recente “História da Era Digital”?

As subdivisões da História sempre geram problemas teóricos a serem resolvidos. Será desnecessário lembrar que a organização da História por modalidades internas que combinam os critérios da ‘espacialidade’ e da ‘temporalidade’ constituem apenas recursos para organizar o trabalho historiográfico em um primeiro momento, mas não são grilhões ou compartimentos para aprisionar os objetos históricos, que inúmeras vezes não correspondem aos espaços nacionais rigidamente estabelecidos, ou balizas temporais inflexíveis[9].

Veja o artigo do qual foram extraídos o Quadro e o texto acima em http://ning.it/fiY5IC
[BARROS, José D'Assunção. "Sobre o conceito de Campo Histórico". História-e-História. Unicamp: março de 2010]

O mesmo quadro e comentário podem ser encontrados em BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 1. Petrópolis: editora Vozes, 2011.


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Notas:

[1] Convocar a Civilização Greco-Romana para a História do ocidente, aliás, constitui já um ponto de vista teórico, e também ideológico. Há uma certa maneira de ver as coisas que permite escolher o mundo Greco-romano como uma das bases civilizacionais do Ocidente Cristão.
[2] América Portuguesa, por exemplo, foi o nome que um historiador no século XVIII – Rocha Pitta – preferiu para designar, em 1730, a vasta extensão sob domínio português que depois daria origem ao Brasil independente (1976).
[3] Sobre os primórdios da noção de uma “idade média sombria”, nos escritos de Petrarca, um estudo de referência é o de T. E. MOMMSEN, 1942, p.226-242.
[4] A expressão “idades médias”, ou “tempos médios”, já aparece no século XV com os humanistas italianos Leonardo Bruni (c.1374-1444) e Flávio Biondo (c.1362-1493); e, antes dele, conforme já foi ressaltado, Petrarca se referira aos “tempos sombrios” que se situavam entre a Antiguidade Greco-Romana e os novos tempos que começavam a retomar mais enfaticamente as referências da antiguidade clássica. Mas o uso da expressão “Idade Média” como claro designativo de um período de tempo a ser inserido em uma estrutura tripartida para a compreensão da história pode ser mesmo atribuído ao erudito alemão Christoph Cellarius, que já divide a sua História Universal nos períodos “Antigo”, “Medieval” e “Novo”.
[5] Também a tendência a pensar nos séculos como unidades de sentido histórico tem a sua história, como tão bem assinala Reinhart Koselleck: “[...] a partir do século XVII eles [os séculos] adquirem cada vez mais pretensões históricas próprias. Passam a ser entendidos como unidades coerentes de sentido. O século do Iluminismo já é pensado assim pelos contemporâneos, estando consciente, por exemplo em Voltaire, de ser diferente do século de Luís XIV” (KOSELLECK, 2006, p.283).
[6] Na Alemanha, Alois Riegl, com seu livro sobre a arte nos últimos tempos da Roma Antiga (Arte Tardo-romana) foi dos primeiros a popularizar o conceito de Spätantike (“Antiguidade Tardia”). Mais recentemente, o historiador irlandês Peter Brown (n.1935) consolidou o uso do conceito na língua inglesa, com os livros The World of Late Antiquity (1971) e The Making of Late Antiquity (1978). Para Brown, a “Antiguidade Tardia” não corresponderia a um período de declínio, mas a um tempo de recomeços, de novas redefinições sociais e culturais que, ainda assim, poderiam ser localizadas dentro dos quadros da Idade Antiga.
[7] Os processos e eventos sinalizadores da Idade Moderna, muito evocados para a delimitação deste período, são vários, entre os quais a (1) Reforma – que institui definitivamente um mundo cristão dividido em várias Igrejas, quebrando de uma vez por todas a pretensão de controle papal sobre toda a religiosidade cristã – bem como (2) o fortalecimento das monarquias absolutas, (3) o deslocamento, em relação ao eixo marítimo principal, do Mediterrâneo para o Atlântico, (4) a expansão européia através das grandes navegações, com a subsequente conquista das Américas, e (5) a mundialização através do comércio de longo alcance. Outro evento importante, que chegou mesmo a ser estabelecido como marco, foi (6) a tomada de Constantinopla pelos turcos, colocando um fim no Império Bizantino, que persistira e resistira durante todo o período medieval, e firmando as fronteiras da expansão islâmica contra a cristandade. Em termos do paradigma apoiado no Materialismo Histórico, (7) o declínio do ‘modo de produção feudal’, apesar de suas persistências até períodos avançados do Antigo Regime, permite que por esta mesma época de transição se entreveja a formação de um modo de produção capitalista, ainda na sua fase mercantilista.
[8] Na historiografia européia, convencionou-se pensar nos marcos da Revolução Francesa e do movimento de Independência Americana como sinalizadores iniciais de um novo período que seria chamado de “História Contemporânea”. Embora sejam sinalizadores carregados de euro-centrismo, e mesmo de franco-centrismo, a escolha do período iluminista como marco inicial da contemporaneidade encontra respaldo na percepção de que os iluministas, e particularmente os homens envolvidos com as lutas revolucionárias na França, passaram a incorporar um sentimento intenso de que estavam fazendo história no seu próprio tempo presente, sendo já personagens de uma nova era. De modo geral, mesmo os historiadores fora da França e em período posterior não questionaram a validade deste marco ou de uma distinção entre a “história contemporânea” e a “história moderna”. Koselleck, no capítulo “Modernidade” de seu Futuro Passado (1979), registra as seguintes observações sobre Ranke: “Ranke, enquanto ensinou, sempre de novo se referia à ‘história dos tempos mais recentes’ ou ‘história contemporânea’, que, dependendo da temática, ele fazia começar com o velho Frederico [rei da Prússia] ou com a Revolução Francesa ou a Americana. Só quando falava da história que lhe era contemporânea é que se desviava do uso lingüístico tradicional, chamando-a de ‘história de nosso tempo’” (KOSELLECK, 1979, p.281). Prenuncia-se então, também aqui, um novo conceito que seria o da “História do Tempo Presente”. Com relação ao “sentimento do novo” entre os europeus do final do século XVIII, é também Koselleck (p.180) quem traz à luz esta passagem de H. G. M. Köster, escrita em 1787 para o verbete “História” da Enciclopédia Alemã: “quase toda a Europa ganhou uma configuração totalmente diferente {...} e quase aparecer nesta parte do mundo uma nova raça de homens” (KÖSTER, Deutsche Encyclopedie, 1787, p.657). / De resto, cumpre observar que a passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea tem como processo distintivo importante o advento da Era Industrial.
[9] Sobre isto, Paul Veyne faz uma interessante observação: “Uma vez que todo acontecimento é tão histórico quanto um outro, pode-se dividir o campo factual com toda liberdade. Como se explica que ainda se insiste em dividi-lo tradicionalmente segundo o espaço e o tempo, ‘história da França’ ou ‘o século XVII’, segundo singularidades e não especificidades? Por que ainda são raros livros intitulados: ‘O Messianismo revolucionário através da História?’, ‘As Hierarquias Sociais de 1450 a nossos dias, na França, China, Tibet e URSS’ ou ‘paz e guerra entre as nações’, para parafrasear títulos de três obras recentes? Não seria uma sobrevivência da adesão original à singularidade dos acontecimentos e do passado nacional?” (VEYNE, 1982, p.42).




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Referências:

BARROS, José D’Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2008 (6ª ed.) [orig.: 2004].
BROWN, Peter, o Fim do Mundo Antigo, Lisboa: Verbo, 1971.
CELLARIUS, Christoph. Historia Universalis. Altemburg: 1753, 11ª edição [originais dos três volumes: 1696, 1704, e póstumo 1708].
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979].
KOSTER, H. M. G. “Historie” in: Deutsche Encyclopädie oder Algemeines Real-Wörterbuch aller Künste und Wissenschaften. Frankfurt: Koster und Ross, 1787. vol.XII.
MOMMSEN, T. E. Petrarch’s Conception of the ‘Dark Ages’. Speculum. n°17, 1942, p.226-242.
ROCHA PITTA. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976 [original: 1730].
VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: UNB, 1982 [original: 1971].

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

História Comparada

Há cerca de oitenta atrás, um importante artigo de Marc Bloch sobre a ‘História Comparada’ (BLOCH, 1928: 15-50) buscava afirmar em um universo historiográfico prestes a se revolucionar uma nova e instigante promessa historiográfica. O ambiente intelectual europeu mostrava-se então bastante propício à formulação de novas idéias no campo da historiografia, e esta estava de fato prestes a conhecer uma verdadeira revolução historiográfica, tanto a partir de um grupo que logo ficaria conhecido como Escola dos Annales, na França, como a partir dos novos desenvolvimentos do Materialismo Histórico, por todo mundo. Neste ambiente revolucionário em termos de inovações teóricas, metodológicas, e interdisciplinares, não tardariam a surgir inúmeras modalidades historiográficas que deixariam para trás o monolítico universo da História Política que se fazia no século XIX.
Ao mesmo tempo em que a proposta de uma “História Comparada” introduz-se como uma nova possibilidade historiográfica entre outras tantas, ela se apresenta como um anseio bastante singular para responder a um contexto histórico bastante específico. O mundo, então, já conhecera os horrores da Primeira Grande Guerra, e outros horrores ainda maiores estavam por vir com a ascensão do Nazismo e a eclosão do segundo grande conflito mundial. Respirava-se então, em uma parte pelo menos significativa da intelectualidade européia, um certo ar de desânimo em relação aos caminhos que tinham sido trilhados através daquele exacerbado culto ao Nacionalismo que tanto caracterizara a estruturação dos estados-nações nos séculos anteriores. Mais ainda, de modo geral os historiadores tinham desempenhado no século anterior um papel bastante relevante na organização institucional dos estados-nações, na estruturação de arquivos para o registro da memória nacional, na construção de narrativas laudatórias que exaltavam cada nação em particular, e que por vezes chegavam mesmo a conclamar indiretamente à Guerra. Alguns, como François Guizot (1787-1874), tinham mesmo ocupado postos governamentais; outros, como Michelet (1789-1874), haviam chefiado arquivos nacionais em seus países. Agora, diante dos aspectos nefastos daquele processo de exacerbação nacionalista que resultara em tão terrível desastre, era compreensível que, no complexo e multi-diversificado circuito dos historiadores profissionais, surgissem aqui e ali os vestígios de um certo “mal estar” da historiografia. Não era um sentimento necessariamente predominante em todos os países e ambientes, mas este mal-estar certamente se fazia presente.
Não é de se estranhar que, neste mesmo contra-clima de desapontamento em relação ao nacionalismo radicalizado – que de resto seguiria adiante pelas décadas vindouras – tenham se fortalecido os primeiros sonhos de ultrapassagem dos antigos modelos propugnados por aquela velha historiografia nacionalista, que até então estivera sempre tão bem acomodada às molduras nacionais. É neste ambiente que surgem os primeiros esforços de sistematização de uma História Comparada – ou melhor, é neste ambiente que emerge a assimilação mais sistemática do comparativismo histórico pelos historiadores profissionais ou por sociólogos que abordaram de algum modo a perspectiva da História. Tal como propunham autores vinculados a propostas as mais diversas – e aqui podemos incluir nomes como o de Marc Bloch, Toynbee ou Norbert Elias – “comparar” era de algum modo abrir-se para o diálogo, romper o isolamento, contrapor ao mero orgulho nacional um elemento de “humanidade”, e, por fim, questionar a intolerância recíproca entre os homens – esta que logo seria coroada com a explosão da primeira bomba atômica.
No intuito de melhor delimitarmos a reflexão que estará sendo desenvolvida neste ensaio, consideraremos que a História Comparada – campo que começava a se delinear ainda discretamente naqueles tempos – constitui antes de mais nada uma modalidade  historiográfica fortemente marcada pela complexidade, já que se refere tanto a um ‘modo específico de observar a história’ como à escolha de um ‘campo de observação’ específico – mais propriamente falando, uma espécie de “duplo campo de observação”, ou mesmo um “múltiplo campo de observação”. Situa-se portanto entre aqueles campos históricos que são definidos por uma “abordagem” específica – por um modo próprio de fazer a história, de observar os fatos ou de analisar as fontes. Resumindo em duas indagações que a tornam possível, a História Comparada pergunta simultaneamente: “o que observar?” e “como observar?”. E dá respostas efetivamente originais a estas duas indagações.
Para compreender de que maneira a História Comparada responde a estas duas questões fundamentais, será imprescindível mergulharmos na compreensão deste gesto fundador – a “comparação” – que dá o próprio nome e uma substância específica a esta modalidade historiográfica. Antes de mais nada, consideraremos que “comparar” é uma maneira bastante específica de propor e pensar as questões. Freqüentemente nos defrontamos com esta forma intuitiva de abordagem quando nos deparamos na vida cotidiana com situações novas, e neste caso a comparação nos ajuda a precisamente a compreender a partir de bases mais conhecidas e seguras aquilo que nos é apresentado como novo, seja identificando semelhanças ou diferenças. Comparar é um gesto espontâneo, uma prática que o homem exercita nas suas atividades mais corriqueiras, mas que surge com especial intensidade e necessidade quando ele tem diante de si uma situação nova ou uma realidade estranha.
A comparação neste momento – diante do desafio ou da necessidade – impõe-se como método. Trata-se de iluminar um objeto ou situação a partir de outro, mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda esta prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades, a perceber variações de um mesmo modelo. Por vezes, será possível ainda a prática da “iluminação recíproca”, um pouco mais sofisticada, que se dispõe a confrontar dois objetos ou realidades ainda não conhecidos de modo a que os traços fundamentais de um ponham em relevo os aspectos do outro, dando a perceber as ausências de elementos em um e outro, as variações de intensidade relativas à mútua presença de algum elemento em comum. Será por fim possível, se o que se observa são dois objetos ou realidades dinâmicas em transformação, verificar como os elementos identificados através da comparação vão variando em alguma direção mais específica – de modo que se possa identificar um certo padrão de transformações no decurso de um tempo – e, mais ainda, se temos duas realidades contíguas, como uma influencia a outra, e como as duas a partir da relação recíproca terminam por se transformar mutuamente.
Já nestes níveis de análise, a comparação não mais se mostra um mero gesto intuitivo, de domínio comum e cotidiano, mas sim um método próprio que oferece àquele que a utiliza determinadas potencialidades e certos limites, forçando-o antes de mais nada a definir o que pode e o que não pode ser comparado, a refletir sobre as condições em que esta comparação pode se estabelecer, a formular estratégias e modos específicos para a observação mais sistematizada das diferenças e variações, acrescentando-se ainda a necessária reflexão de que alguns tipos de objetos permitem este ou aquele modo de observação e de análise, e não outro. Seria oportuno, aqui, indagar pela natureza do momento em que o gesto comparativo passa da prática intuitiva e espontânea para outro patamar, onde se erige em método, em escolha tornada consciente e acompanhada de autocrítica, de procedimentos, de sistematização.
Evocaremos neste momento a contribuição bastante específica de Marc Bloch para a História Comparada, que nas mãos do historiador francês torna-se antes de tudo uma “História Comparada Problema”. Para além desta introdução fundamental da História Comparada no ambiente da “História-Problema” proposto pelos Annales, Bloch teve grande importância como sistematizador do método comparativo de maneira geral, seja a partir de suas considerações teóricas – expressas em dois textos importantes[1] – seja a partir de suas realizações práticas. Será imprescindível compreender, neste caso, o seu esforço de sistematização – este que hoje pode beneficiar os historiadores comparatistas de diversificadas vertentes.
Para melhor clarificar os conceitos fundacionais relacionados à questão da História Comparada, de acordo com a via que se consolidaria a partir de Marc Bloch, convém antes de mais nada distinguir a “História Comparada “propriamente dita – vista aqui como um campo intradisciplinar específico – do “comparativismo histórico”, em sentido mais amplo.
De um modo ou de outro, o historiador sempre utilizou a comparação como parte de seus recursos para compreender as sociedades no tempo, embora não necessariamente como um método sistematizado. De todo modo, poderemos lembrar aqui a formulação de Paul Veyne, que retoma um pressuposto de Giambatista Vico e considera que “toda história é história comparada” (VEYNE, 1983)[2]. Sobre esta questão, diremos que – mesmo quando nos referimos ao comparativismo como método – é evidente que poderemos sempre atribuir um sentido mais específico ao “comparativismo histórico” como abordagem possível, e não como algo que estaria implícito a todo o “fazer histórico” consoante a fórmula enunciada por Veyne. “Comparar”, “elencar semelhanças e diferenças” e “estabelecer analogias” são naturalmente ações tão familiares ao historiador como contextualizar os acontecimentos ou dialogar com as suas fontes. Mas para falarmos em um “método comparativo” é preciso, tal como já pontuamos no início deste ensaio, ultrapassar aquele uso mais próximo da intuição e da utilização cotidiana da comparação para alcançar um nível de observação e análise mais profundo e sistematizado, para o qual “o que se pode comparar” e o “como se compara” tornam-se questões relevantes, fundadoras de um gesto metodológico.
Posto isto, já para definir a “História Comparada” como um campo específico, consideraremos ainda que será preciso se ter em vista uma modalidade que não apenas lança mão do “comparativismo histórico” como método – por exemplo, como método aplicável à análise de determinados tipos de fontes ou séries de acontecimentos – e sim como uma modalidade que estabelece campos de trabalho ou de observação muito bem delineados. A História Comparada, antes do mais, seria uma modalidade historiográfica que atua de forma simultânea e integradora sobre campos de observação diferenciados e bem delimitados – campos, a bem dizer, que ela mesma constitui e delineia. Para o caso daquele tipo de História Comparada que coloca em confronto duas realidades nacionais diferenciadas, estes campos podem ter até suas bases já admitidas por antecipação, é verdade, mas sempre é bom se ter em vista que os universos a serem comparados nas ciências humanas são sempre de algum modo construções do próprio historiador ou do cientista social – não são necessariamente conjuntos já dados ou passíveis de serem admitidos previamente, frisaremos aqui.
Esta bem fundamentada perspectiva de comparativismo histórico tem como um de seus marcos teóricos mais importantes o célebre VI° Congresso Internacional de Ciências Históricas de Oslo (1928), no qual Marc Bloch desenvolveria uma conferência – logo transformada no já mencionado artigo – que objetivava refletir precisamente sobre as potencialidades do estudo comparado na História (BLOCH, 1928). Na verdade, estas considerações teóricas de Bloch sobre o comparativismo histórico podem ser consideradas uma decorrência de sua primeira realização prática neste sentido: a obra Os Reis Taumaturgos (BLOCH, 1993), que havia sido publicada alguns anos antes, em 1924. Será oportuno retomarmos, neste momento, as reflexões de Marc Bloch sobre o comparativismo histórico, pronunciadas no Congresso de Oslo.
Em primeiro lugar, Marc Bloch procura fixar os requisitos fundamentais sobre os quais poderia ser constituída uma História Comparada que realmente fizesse sentido. Sua conclusão é a de que dois aspectos irredutíveis seriam imprescindíveis: de um lado uma certa similaridade dos fatos, de outro, certas dessemelhanças nos ambientes em que esta similaridade ocorria. A semelhança e a diferença, conforme se vê, estabelecem aqui um jogo perfeitamente dinâmico e vivo: sem analogias, e sem diferenças, não e possível se falar em uma autêntica História Comparada. De igual maneira, Bloch visualizou dois grandes caminhos que poderiam ser percorridos pelos historiadores dispostos a lançar mão do comparativismo na História. Seria possível comparar sociedades distantes no tempo e no espaço, ou, ao contrário, sociedades com certa contigüidade espacial e temporal. No caso da comparação de sociedades distanciadas no espaço e no tempo tinha-se uma situação singular: a ausência de interinfluências entre as duas sociedades examinadas. Neste caso, o trabalho consistiria basicamente na busca de analogias – situação para a qual poderemos exemplificar com a possibilidade de estabelecer uma comparação entre o que se poderia chamar de “feudalismo europeu” e o que poderia ser denominado “feudalismo japonês”, duas realidades afastadas no espaço, em uma época em que não poderiam transmitir influências uma à outra[3]. Os riscos típicos deste caminho representado pela possibilidade de comparação entre sociedades não-contíguas é naturalmente o da falsa analogia ou do “anacronismo” – transplante de um modelo válido para uma época ou espacialidade social para um outro contexto histórico onde o modelo não tenha sentido real, correspondendo apenas a uma ficção estabelecida pelo próprio historiador.
Quando nos referimos a “sociedades contíguas”, teremos em vista que o próprio conceito de contigüidade muda de uma época em relação à outra. Na época da mundialização, e mais ainda, no período da globalização, duas sociedades afastadas espacialmente tem possibilidades imediatas de inter-influência, não correspondendo à situação estanque que se tinha nos períodos em que a comunicação era menos imediata. De igual maneira, cabe salientar que a comparação não precisa relacionar necessariamente realidades nacionais distintas, podendo corresponder também a ambientes sociais distintos, que se pretenda comparar.
Posto isso, consideraremos o segundo grande caminho apontado por Marc Bloch para uso da comparação histórica – na verdade aquele que ele mesmo preconizava como preferível. Trata-se aqui de comparar sociedades próximas no tempo e no espaço, que exerçam influências recíprocas. A vantagem de comparar sociedades contíguas está precisamente em abrir a percepção do historiador para as influências mútuas, o que também o coloca em posição favorável para questionar falsas causas locais e esclarecer, por iluminação recíproca, as verdadeiras causas, interrelações ou motivações internas de um fenômeno e as causas ou fatores externos. Será importante ainda salientar que, para empreender este caminho da História Comparada que atua sob realidades históricas contíguas – por exemplo, duas realidades nacionais sincrônicas – o historiador deve estar apto a identificar não apenas as semelhanças como também as diferenças. O exemplo mais concreto que Marc Bloch pôde oferecer desta abordagem, já aplicada a uma investigação histórica específica, foi a sua primorosa obra de 1924: Os Reis Taumaturgos (1993). Ao mesmo tempo, o artigo teórico elaborado em 1928 pelo historiador francês tornou-se uma espécie de pedra fundamental da História Comparada, no qual já veremos claramente os caminhos privilegiados por Marc Bloch no interior desta modalidade historiográfica em formação:
Estudar paralelamente sociedades vizinhas e contemporâneas, constantemente influenciadas umas pelas outras, sujeitas em seu desenvolvimento, devido a sua proximidade e a sua sincronização, à ação das mesmas grandes causas, e remontando, ao menos parcialmente, a uma origem comum” (BLOCH, 1928: 19)
O que se havia realizado em Os Reis Taumaturgos senão este modelo? Teremos aqui duas sociedades medievais vizinhas – a francesa e a inglesa – ambas com um imaginário em comum e com repertórios de representações similares, que serão investigados pelo historiador à luz de um mesmo problema comum que os atravessa: o da crença popular no poder taumatúrgico de seus reis. As duas sociedades se inter-influenciam; as duas cortes que se beneficiam das representações taumatúrgicas – a capetíngia na França e a plantageneta na Inglaterra – rivalizam uma com a outra, movimentam-se, mesmo, no contexto desta iluminação e rivalidade recíprocas. O material histórico adequa-se, portanto, ao caminho proposto pelo modelo preconizado por Bloch: duas sociedades sincrônicas que guardam entre si relações interativas, e que juntas oferecem uma visão clara de um problema comum que as atravessa. Sem uma ou outra, no mero âmbito de uma história nacional, não poderia ser compreendida a questão da apropriação política do imaginário taumatúrgico que se desenvolve nas monarquias européias, das origens em comum deste mesmo imaginário, das intertextualidades que se estabelecem, do confronto do modelo taumatúrgico com outros modelos de realeza. Assim, História Comparada das realezas francesa e inglesa através do imaginário taumatúrgico contribui, de algum modo, para compreender a Europa de maneira mais plena.
Desde a época de Bloch, e sobretudo a partir da segunda metade do século XX, muitas foram as contribuições enquadráveis no âmbito da História Comparada. Pode-se dizer que o enriquecimento da História Comparada enquanto campo que já começa a se definir em meados do século dá-se em dois níveis: por um lado com o crescimento de diálogos interdisciplinares da História com outros campos do saber, como a Antropologia, a Sociologia, a Geografia e a Economia; por outro lado, através de uma maior variedade de escalas de observação a partir das quais se organizam as diversas perspectivas de exercício do comparativismo histórico. A variação na escala de comparação – o âmbito civilizacional, nacional, regional, local, intra-urbano, e assim por diante – desemboca, por fim, na possibilidade de comparar grupos étnicos ou identitários, práticas culturais mais específicas, realidades literárias, havendo mesmo os trabalhos de historiografia comparada, como um campo a mais de interesses.


Leia a continuação deste artigo em: http://ning.it/igoCy1

[BARROS, José D'Assunção. "História Comparada - da contribuição de Marc Bloch à constituição de um moderno campodisciplinar". História Social (Revista da Unicamp). vol.13, 2007, 7-21. http://ning.it/igoCy1

Notas:

[1] (1) BLOCH, 1928 : p.15-50. (2) BLOCH, 1930.
[2] Referindo-se a um outro âmbito de questões, também Witold Kula ressalta a idéia de que nenhum trabalho científico, por limitado e monográfico que seja, pode dispensar totalmente o método comparativo, o que inclui a História (KULA, 1973: 571).
[3] Um exemplo de História Comparada envolvendo sociedades distanciadas, agora relativamente às suas temporalidades, está na pesquisa de Robert Darnton sobre a Censura, a qual o historiador americano examina em três espaço-tempos bem diversificados: A França do Antigo Regime, a Índia britânica do século XIX, e a Alemanha Oriental do século XX (cf. “Entrevista com Robert Darnton” in PALLARES-BURKE, 2000).

sábado, 22 de janeiro de 2011

Geo-História

A Geo-História é o campo histórico que estuda a vida humana no seu relacionamento com o ambiente natural e com o espaço concebido geograficamente. É com Fernando Braudel (1949) que este campo começa a se destacar, passando a se definir e a se encaixar nos estudos históricos de “longa duração” . Por outro lado, a Geo-História pode se dedicar mais especificamente ao estudo de um aspecto transversal no decurso de uma duração mais longa, como fez Le Roy Ladurie ao realizar uma "História do Clima" (1967) . Nestes casos, ocorre muito freqüentemente que o geo-historiador tome para fontes, além da documentação mais tradicional, os próprios vestígios da Natureza (Ladurie esteve atento aos “anéis” que se formam nos caules das árvores de vida longa, considerando que, de acordo com conclusões já estabelecidas pelos botânicos, um anel estreito significa um ano de seca, e um anel largo um ano beneficiado por chuvas abundantes). Conforme se vê, a Geo-História deve dialogar necessariamente não só com a Geografia, como também com outras ciências da natureza (a exemplo da Botânica ou da Ecologia).

Nas décadas recentes começaram a surgir outras modalidades historiográficas próximas à Geo-História,como por exemplo a História Ecológica, que é já uma demanda das últimas décadas, assombradas pelos desastres naturais, pelas devastações florestais, pela ameaça de extinção de inúmeras espécies animais, pelo aumento da poluição e pelo crescimento desordenado nas cidades. A História Ecológica é de certo modo uma Geo-História acrescida de uma preocupação ecológica fundamental

Vamos retornar à primeira metade do século XX para entender a Geo-História a partir de um novo impulso de interdisciplnaridade que, por aquela época, acabava de surgir entre os historiadores franceses ligados à escola dos Annales e alguns geógrafos, principalmente os ligados à escola do geógrafo francês Vidal de la Blache. Partindo dos primeiros empreendimentos de Lucien Febvre, que  publicara uma obra intitulada "A Terra e a Evolução Humana" (1922), a Geo-História começa a tomar forma como uma nova possibilidade de campo histórico, até se delinear mais claramente com uma das mais emblemáticas obras que foram constituídas na conexão deste campo histórico com outros, tais como a História Econômica e a História Política. Referimo-nos à célebre obra "O Mediterrâneo", de Fernando Braudel.

Lucien Febvre já havia oferecido à comunidade historiográfica, com "A Terra e a Evolução Humana" (1922), as primeiras experiências voltadas para a aplicação das concepções espaciais derivadas da escola geográfica de Vidal de La Blache - muito mais voltadas para a idéia de um "possibilismo geográfico" do que para o "determinismo historiográfico" que se via,então, em outras correntes geográficas.  Mas seria Fernando Braudel o primeiro a aplicar estas novas noções a um objeto historiográfico mais específico e de maior magnitude.

"O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Felipe II" (1945) – obra que se celebrizou por entremear para um mesmo objeto o exame de três temporalidades distintas (a longa, a média e a curta duração), cada qual com seu ritmo próprio – traz precisamente no primeiro volume, dedicado ao estudo de uma longa duração na qual tudo se transforma muito lentamente, um modelo que marcaria toda uma geração de historiadores: a idéia de estabelecer como ponto de partida da análise historiográfica o espaço geográfico.


Nesta obra de Braudel, como em Vidal de La Blache, o “meio” e o “espaço” são noções perfeitamente equivalentes. Oscilando entre a idéia de que o meio determina o homem, e a de que os homens instalam-se no meio natural transformando-o de modo a convertê-lo na principal base de sua vida social, Braudel termina por associar intimamente a ‘civilização’ e a ‘macro-espacialidade’. Em Mediterrâneo ele afirma que, “uma civilização é, na base, um espaço trabalhado, organizado pelos homens e pela história” (BRAUDEL, 1966, p.107), e em A Civilização Material do Capitalismo (1960) ele reitera esta relação sob a forma de uma indagação: “o que é uma civilização senão a antiga instalação de uma certa humanidade em um certo espaço?” (BRAUDEL, 1967, p.95). Esta relação íntima entre a sociedade e o meio geográfico (no sentido lablachiano) estaria precisamente na base da formação de uma nova modalidade historiográfica: a Geo-História.

A Geo-História introduz a geografia como grade de leitura para a história (DOSSE, 1994, p.136), e ao trazer o espaço para primeiro plano e não mais tratá-lo como mero teatro de operações – e sim como o próprio sujeito da História – possibilita o exame da longa duração, esta história quase imóvel que se desenrola sobre uma estrutura onde os elementos climáticos, geológicos, vegetais e animais encontram-se em um ambiente de equilíbrio dentro do qual se instala o homem. Rigorosamente falando, não é tanto com a idéia de um “determinismo geográfico” que Braudel trabalha em O Mediterrâneo, e sim com a idéia de um ‘possibilismo’ inspirado precisamente na geografia de Vidal de La Blache. Afora isto, o empreendimento a que o historiador francês se propõe nesta obra paradigmática é o de realizar uma ‘espacialização da temporalidade’, e mais tarde ele aprimorará também uma ‘espacialização da economia’, chegando ao conceito de “economias-mundo” que já se encontra perfeitamente elaborado e sustentado em exemplos históricos com A Civilização Material do Capitalismo.

O objeto do primeiro volume de O Mediterrâneo – que representa a grande originalidade desta obra dividida em três partes que se referem a cada uma das três temporalidades que marcam os ritmos da história – é a relação entre o Homem e o Espaço. É esta relação que ele pretende recuperar através de “uma história quase imóvel ... uma história lenta a desenvolver-se e a transformar-se, feita muito freqüentemente de retornos insistentes, de ciclos sem fim recomeçados” (BRAUDEL, 1969, p.11). A interação entre o Homem e o Espaço, as suas simbioses e estranhamentos, as limitações de um diante do outro, tudo isto não constitui propriamente a moldura do quadro que Braudel pretende examinar, mas o próprio quadro em si mesmo. Eis aqui o primeiro ato deste monumental ensaio historiográfico, e é sobre esta história quase-imóvel de longa duração – a temporalidade espacializada onde o tempo infiltra-se no solo a ponto de quase desaparecer – que se erguerá o segundo ato, a ‘média duração’ que rege os “destinos coletivos e movimentos de conjunto”, trazendo à tona uma história das estruturas que abrange desde os sistemas econômicos até as hegemonias políticas, os estados e sociedades. Trata-se de uma história de ritmos seculares, e não mais milenares, e depois dela surgirá o último andar – a ‘curta duração’ que rege a história dos acontecimentos, formada por “perturbações superficiais, espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas” (BRAUDEL, 1969, p.21).

É fácil perceber como o sujeito da história, nas duas obras monumentais de Braudel, transfere-se do homem propriamente dito para realidades que lhe são muito superiores: o ‘Espaço’, no Mediterrâneo; e a ‘Vida Material’, na Civilização Material do Capitalismo. São estes grandes sujeitos históricos que abrem o campo de possibilismos para as subseqüentes histórias dos ‘movimentos coletivos’ e dos ‘indivíduos’. Tal como observa Peter Burke em uma sintética mas lúcida análise de O Mediterrâneo, um dos objetivos centrais de Braudel nesta obra é mostrar que tanto a história dos acontecimentos como a história das tendências gerais não podem ser compreendidas sem as características geográficas que as informam e que, de resto, tem a sua própria história longa:



“O capítulo sobre as montanhas, por exemplo, discute a cultura e a sociedade das regiões montanhosas, o conservadorismo dos montanheses, as barreiras socioculturais que separam os homens da montanha dos homens da planície, e a necessidade de muitos jovens montanheses emigrarem, tornando-se mercenários” (BURKE, 1991, p.50)



'O Mediterrâneo e Felipe II', enfim, é a insuperável obra prima em que Braudel pretendeu demonstrar que o tempo avança com diferenças velocidades, em uma espécie de polifonia na qual a parte mais grave coincide com a história quase imóvel do Espaço, e onde temporalidade e espacialidade praticamente se convertem uma à outra. Paradoxalmente, apesar de ter sido o primeiro a propor uma “história quase imóvel” como um dos níveis de análise, outra grande contribuição de O Mediterrâneo foi a de mostrar que tudo está sujeito a mudanças, ainda que lentas, o que inclui o próprio Espaço. De fato, a leitura de O Mediterrâneo nos mostra que o espaço definido por este grande Mar era muito maior no século XVI do que nos dias de hoje, pelo simples fato de que o transporte e a comunicação eram muito mais demorados naquele período . Com isto, percebe-se que a espacialidade dilata-se ou comprime-se no tempo conforme consideremos um período ou outro nos quais se contraponham diferentes possibilidades dos homens movimentarem-se no espaço. Mais uma vez, homem, espaço e tempo aparecem como três fatores indissociáveis.

Se o Espaço está sujeito aos ditames do Tempo, por outro lado a Temporalidade também está sujeita aos ditames do Espaço e do meio geográfico. Apenas para dar um exemplo assinalado por François Dosse, o mesmo Mediterrâneo de Braudel também nos mostra um mundo dicotomicamente dividido em duas estações: enquanto o verão autoriza o tempo da guerra, o inverno anuncia a estação da trégua – uma vez que “o mar revolto não permite mais aos grandes comboios militares se encaminharem de um ponto ao outro do espaço mediterrânico: é, então, o tempo dos boatos insensatos, mas também o tempo das negociações e das resoluções pacíficas” (DOSSE, 1994, p.140). Desta maneira o Clima (um aspecto físico do meio geográfico) reconfigura o Espaço, e este redefine o ritmo de tempos em que se desenrolam as ações humanas. Espaço, Tempo e Homem.

A obra de Fernando Braudel também nos permite iniciar outra reflexão que retomaremos mais adiante, e que se refere à consideração de uma diferença fundamental entre “duração” e “recorte de tempo”. Braudel ousou estudar o ‘grande espaço’ no ‘tempo longo’. Quando falamos em “tempo longo” referimo-nos a uma “duração” – ou antes: a um determinado ‘ritmo de duração’. O tempo longo é o tempo que se alonga, o tempo que parece passar mais lentamente. Não devemos confundir “longa duração” com “recorte extenso”. O recorte de Braudel em O Mediterrâneo – pelo menos o recorte deste trecho da História de que ele se vale para orquestrar polifonicamente as três durações distintas – é o reinado de Felipe II. Braudel não estudou nesta obra um ‘recorte temporal estendido’. Ele estudou um recorte tradicional, que cabe em uma ou duas gerações e que coincide com a duração de um reinado, mas examinando através deste recorte a passagem do tempo em três ritmos diferentes. Uma outra coisa seria examinar um determinado espaço – grande ou pequeno – em um recorte extenso ou estendido. Dito de outra forma, o ritmo de tempo que o historiador sintoniza em sua análise de uma determinada realidade histórico-social nada tem a ver com o “recorte temporal historiográfico” escolhido pelo historiador.

Com relação ao seu recorte espacial, Fernando Braudel havia considerado que o Mediterrâneo possuía sob certos aspectos uma unidade que transcendia as unidades nacionais que se agrupavam em torno do grande “mar interior”, e que ultrapassava a polarização política entre os dois grandes impérios da época: o Espanhol e o Turco. Por outro lado, o historiador francês precisou lidar com a ‘unidade na diversidade’, e descreve dezenas de regiões autônomas cujos ritmos convergem para um ritmo supralocal. O mundo mediterrânico que ele descreve é constituído por um grande complexo de ambientes – mares, ilhas, montanhas, planície e desertos – e que se vê partilhado em uma pluralidade de regiões a terem sua heterogeneidade decifrada antes de ser possível propor a homogeneidade maior ditada pelo tipo de vida sugerido pelo grande Mar. Este foi o desafio enfrentado por Braudel.

[Leia o artigo completo, do qual este texto foi adaptado, e compreenda melhor a interdisciplinaridade entre História e Geografia, acessando: http://ning.it/eVVbrn]

[BARROS, José D'Assunção. "Geografia e História: uma interdisciplinaridade mediada pelo espaço" in Geografia - revista da Universidade Estadual de Londrina. vol.19, n°3, 2010. p.67-84]

Sobre a Geo-História, leia também o livro "O Campo da História" (Petrópolis: editora Vozes, 2011, 8a edição).

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

História das Idéias

A História das Idéias é um domínio que conquistou sua perenidade, no quadro de alternativas historiográficas, desde princípios do século XX. Passou por variações no que se refere às concepções das diversas gerações de historiadores das idéias, e conheceu momentos de maior ou menor efervescência no debate historiográfico e no mercado editorial, mas sem sombra de dúvida conquistou um lugar bastante privilegiado no Campo da História. No decorrer século XX, a historiografia pôde assistir ao desenrolar de uma rica trajetória que parece ter partido de uma História das Idéias ainda desencarnada de um contexto social – e que atinge a sua proeminência entre as décadas de 1940 e 1950 – até se chegar a uma verdadeira História Social das Idéias, na qual se mostra tarefa primordial do historiador compreender e constituir um contexto social adequado antes de se tornar íntimo das idéias que pretende examinar.

Nosso objetivo, neste pequeno texto de apresentação para esta modalidade historiográfica, não será o de recuperar na sua inteireza a complexa trajetória deste campo histórico, nem o de pontuá-la com exemplos exaustivos, mas sim o de vislumbrar os diálogos deste domínio que é chamado de História das Idéias com outros campos históricos – sejam eles dimensões, abordagens ou domínios históricos. Naturalmente que, dada a natureza dos seus objetos, a História das Idéias sintoniza francamente ou com a História Cultural, ou com a História Política, sendo estes os principais campos históricos que se colocam aqui em diálogo (o que naturalmente não exclui ainda a possibilidade de uma História das Idéias Econômicas). Às vezes esse diálogo é tão intenso que certos setores da História das Idéias dão mesmo a impressão de serem domínios que se desdobram destas dimensões que são habitualmente denominadas História Cultural e História Política.

Para o caso dos diálogos com a História Política, basta pensar nos trabalhos que investigam mais diretamente as idéias políticas, entre outros. Um diálogo mais intenso com a História Cultural ou com a História Política, ou com ambas, aparece bem explicitamente no primeiro dos limiares possíveis para a História das Idéias: aquele em que são examinadas as idéias relacionadas ao pensamento sistematizado de indivíduos específicos (por exemplo, os tratados filosóficos, as teorias políticas escritas por grandes ou pequenos pensadores políticos, ou as concepções estéticas dos artistas e literatos de diversos tipos e níveis). O mesmo ocorre quando a História das Idéias volta-se para o estudo de movimentos literários e filosóficos tratando-os como tendências que abrangem grupos mais amplos de pensadores (o Verismo na Literatura, ou o Iluminismo na política) e também quando são examinadas as flutuações de pensamento ou opinião em torno de idéias mais específicas como a “república”, a “democracia”, a “liberdade” (ou quaisquer outras). Até este limiar, tem-se um domínio que muitos preferem também chamar de História Intelectual (por exemplo DARNTON, 1990: 175-197).

Prosseguindo em seu campo de possibilidades, no momento em que passa a investir em uma preocupação mais sistemática de examinar as ideologias e a difusão de idéias, a História das Idéias começa a se interconectar não apenas com a História Cultural como também com a História Social em seu sentido mais stricto. Muitos preferem falar aqui de algo mais específico como uma História Social das Idéias, mas é importante ressaltar que – se estivermos empregando aquele sentido mais amplo de “História Social” onde toda História nos dias de hoje é uma “história social” – teremos por força de considerar que toda boa história das idéias, tal como a entende a moderna historiografia profissional, é uma História Social das Idéias. A propósito disto, é bom ressaltar que, nos dias de hoje – mesmo quando examina as idéias estéticas de um artista ou literato – é muito raro que algum historiador profissional se proponha a empreender aquele já mencionado tipo de História das Idéias que as concebe desencarnadas de seu contexto social, tal como o fizeram muitos historiadores na primeira metade do século XX.

A partir do limiar em que o Historiador das Idéias avança pela investigação de idéias que já se apresentam desencarnadas de autoria – ou porque estão mergulhadas na chamada cultura popular, ou porque se referem à coletividade em sentido mais amplo – sua prática historiográfica começa a se inserir em um profícuo diálogo com aqueles setores da História Cultural que investigam as visões de mundo, representações e expressões coletivas. Também aqui, na medida em que estas idéias começam a tocar em algo como as mentalidades ou o “inconsciente coletivo”, poderemos começar a vislumbrar os diálogos da História das Idéias com dimensões como a História das Mentalidades ou como a Psico-História.
Um esquema complexo poderá ajudar a apreender o campo das possibilidades temáticas pertinentes com a História das Idéias:








Quadro 1: Âmbitos de estudos pertinentes à História das Idéias (ver o esquema no artigo em referência)



Podemos situar esquematicamente os diversos objetos de interesse antes citados. Da esquerda para a direita – sugerindo uma direção do mais concreto e singular ao âmbito mais coletivo – teríamos os estudos de idéias específicas, no sentido transversal . Pode-se estudar as variações na percepção das idéias de Igualdade ou Liberdade, por exemplo, ou ainda relações entre duas ou mais idéias, como seria o caso de um estudo relacionando as relações entre os conceitos de ‘igualdade’ e ‘diferença’. Ao mesmo tempo, pode-se examinar tanto estas idéias em um contexto específico como percorrendo vários contextos históricos (o que irá requerer uma abordagem comparativa), da mesma forma em que também será possível examiná-las nos âmbitos do intratexto e do intertexto. Sobre a análise intratextual e intertextual das idéias, num caso o historiador das idéias estará trabalhando com textos singulares e específicos, e no outro caso estará examinando dois ou mais textos em relação intertextual. Em ambas as situações, recairemos em um estudo dos discursos para o qual o historiador das idéias poderá se valer de diversificados métodos que vão desde as técnicas de análise de discurso até as abordagens semióticas e lingüísticas destinadas a captar a significação estrutural dos textos. No esquema proposto, assinalamos campos separados para o estudo das idéias em si mesmas e para os estudos em que estas idéias estarão sendo analisadas em articulação às expressões culturais que as animam – como por exemplo o estudo de uma idéia em um texto literário ou ensaístico específico, em uma obra dramatúrgica, em um ciclo de canções, e assim por diante.

Das idéias tomadas singularmente, passamos em seguida aos sistemas de pensamento mais amplos – aqueles que se verificam ao nível do ‘pensamento sistematizado’ de um autor, e aqueles que já correspondem aos grandes movimentos – tudo isto se abrindo a possibilidades de abordagens relacionadas às idéias políticas, filosóficas, estéticas ou científicas . Em um nível maior de abrangência, poderiam ser citadas inúmeras obras que buscam trazer dentro de algum contexto específico um panorama de idéias relacionadas a uma determinada dimensão (política, filosófica, estética), como fez Quentin Skinner – um dos mais destacados historiadores das idéias – para o estudo das idéias políticas (SKINNER, 1996). O estudo dos grandes paradigmas científicos, na interconexão da História das Idéias com o domínio da História das Ciências – e também no seu diálogo interdisciplinar com a Filosofia da Ciência – vem a seguir. Para este caso, é relevante mencionar contribuições que vão das análises do “paradigma científico” em sentido mais amplo (Gaston Bachelar, Thomas Khun) aos paradigmas disciplinares, jurídicos, normativos, repressivos, tal como nos oferece em diversas de suas obras Michel Foucault Entre os estudos sobre as idéias inseridas em campos disciplinares específicos, podem ser citados, por exemplo, os próprios estudos de historiografia onde são discutidas as diversas idéias de história, seja no âmbito da produção específica de um autor ou no âmbito de correntes historiográficas mais amplas – cumprindo notar que existem também os estudos que investigam a interação entre as idéias historiográficas e os estilos narrativos.

O campo dedicado ao estudo das Ideologias e da difusão de idéias, bem como o campo seguinte, já referido às idéias coletivas de longa duração – mas também às idéias que circulam em articulação a todo um âmbito de práticas culturais que escapam ao universo da cultura letrada – já começam a posicionar a História das Idéias diante de possíveis diálogos com a História das Mentalidades, que é segundo nossa classificação uma ‘dimensão histórica’. A História das Mentalidades, por outro lado, não deve ser confundida com a História das Idéias, ainda que entre elas haja uma possibilidade de intersecção – mais especificamente nas proximidades do limiar que assinala o âmbito dos inconscientes coletivos. Na verdade, a História das Mentalidades também se abre para possibilidades que vão muito além do domínio da História das Idéias, particularmente nas suas investigações relativas aos modos de pensar e de sentir no sentido mais abstrato , bem como na possibilidade de utilizar fontes seriais para verificar as lentas variações históricas em certos padrões mentais. Ao mesmo tempo, tal como já vimos, a maior parte dos estudos ambientados na História das Idéias relaciona-se a idéias que se concretizam de alguma forma em discursos, sistemas de pensamento, sistemas normativos, paradigmas interdisciplinares, e movimentos políticos ou de qualquer outra ordem.

Com relação às abordagens possíveis aos historiadores das idéias – aos seus métodos e fontes históricas possíveis – são empregadas as mais diversas abordagens, indo das variadas possibilidades de análise do discurso aos variados aportes trazidos pelos desenvolvimentos da Lingüística e da Semiótica. Mas um giro metodológico fundamental, certamente, terá sido aquele que – nos anos 1970 – relegou ao passado da historiografia a História das Idéias descarnada e descontextualizada que ainda podia ser vista nos anos 1940 e 1950. Foi com os “contextualistas” ingleses – sobretudo com os trabalhos de História das Idéias Políticas desenvolvidos por Quentin Skinner, John Dunn e John Pocock – que surge a proposta de que as idéias deveriam ser sempre e necessariamente relacionadas diretamente aos seus contextos de enunciação, uma vez que os ambientes históricos e culturais sempre influenciam extraordinariamente a escolha das questões a serem estudadas e, sobretudo, a formatação da própria linguagem mais específica dentro da qual um debate de idéias se realiza.

Desta maneira, seria tarefa primordial do historiador das idéias trazer à luz a linguagem original de um determinado circuito de idéias – evitando o anacronismo e aprofundando-se na adequada compreensão de suas sutilezas de significação – impondo deste modo a necessidade de recriar a temporalidade e o contexto inerente à própria obra. Trata-se, assim, para nos atermos ainda ao caso dos estudos sobre as idéias políticas, de ultrapassar a perspectiva intemporal que às vezes pode ser notada nas obras de historiadores das idéias e cientistas políticos das décadas anteriores, como ocorre por exemplo com as obras de Hannah Arendt. Ressalte-se ainda que, para o novo padrão de História das Idéias consolidado a partir dos contextualistas ingleses, seria importante não apenas reconstituir uma adequada relação entre texto e contexto como também situar a análise dentro de uma perspectiva de que as estruturas lingüísticas são fundamentais para a construção do pensamento de qualquer sujeito histórico – o que, portanto, coloca o historiador das idéias diante do desafio de que não é possível compreender uma idéia sem a plena consciência do momentum lingüístico dentro do qual esta idéia foi formulada.

Não menos importante para o historiador das idéias é perceber e dar a perceber a rede dentro da qual está inserido determinado autor “produtor de idéias” – investigando dentro desta rede tanto as influências que o autor recebe como a recepção de suas idéias pelos seus diversos contemporâneos. Importante examinar, ainda, os diálogos do “produtor de idéias” com toda uma rede intertextual que remonta à tradição dentro da qual seu pensamento se inscreve ou que, também de modo contrário, o contrasta com as tradições contra as quais as idéias do autor estabelecem uma relação de ruptura.

Em que pese a importância dos aportes metodológicos oferecidos pela corrente contextualista à História das Idéias, também não deixaram de ser criticados os exageros da crença de que seria rigorosamente possível recuperar o sentido original de uma obra, particularmente chamando-se atenção para o fato de que a interpretação dos textos e idéias de uma época não deixam de ser guiadas em alguma instância pelos valores do presente do próprio historiador que empreende a análise. Desta maneira, pairando criticamente entre a antiga ilusão de neutralidade e o permanente estado de alerta diante dos perigos do anacronismo, o historiador das idéias deveria se habilitar a trabalhar concedendo um espaço às vozes do passado sem pretender sufocar inutilmente a sua própria voz. Ao mesmo tempo, entre as impossibilidades de um mais-que-perfeito “contextualismo” e as pretensões de um “internalismo” que investe nas possibilidades de buscar exclusivamente dentro de um texto os seus significados – geralmente à luz das metodologias semióticas de origem estruturalista – o historiador das idéias deve fazer as suas escolhas possíveis.

A História das Idéias, enfim, tem se revelado um dos mais produtivos domínios historiográficos, desenvolvendo importantes diálogos com dimensões historiográficas como a História Cultural, a História Social, a História das Mentalidades e a História Política, e também estabelecendo as suas conexões com inúmeros domínios historiográficos que vão da História das Ciências à História da Literatura, além de abrigar as mais diversas abordagens disponíveis para uma análise de suas fontes e contextos históricos. Dentro deste rico quadro de diálogos intradisciplinares e interdisciplinares, o seu interesse tende a se renovar incorporando os demais progressos e novidades que se dão no seio da historiografia e das demais ciências humanas.


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Leia o artigo completo em: http://ning.it/gRqLEP

[BARROS, José D'Assunção. "História das Idéias – em torno de um domínio historiográfico” in Revista Locus – Revista do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF. ISSN: 1413-3024. Vol. 13, n°1, 2007, p.41-64]

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

História Social

Entre as inúmeras modalidades e especialidades nas quais se reparte a disciplina e a prática da História nos dias de hoje, talvez a dimensão historiográfica mais sujeita a oscilações de significado seja a da História Social. Modalidade historiográfica rica de interdisciplinaridades com todas as Ciências Sociais, e igualmente rica na sua possibilidade de objetos de estudo, a História Social abre-se de fato a variadas possibilidades de definição e delimitação que certamente interferem nos vários trabalhos produzidos pelos historiadores que atuam neste campo intradisciplinar. Veremos, a seguir, que há razões várias para essa oferta de uma diversidade de sentidos que vem à tona quando falamos em História Social.

Para retornar aos primeiros usos da expressão “história social” na historiografia moderna, podemos fixar a História Social como modalidade que começa a aparecer de maneira auto-referenciada por ocasião do surgimento na França do Grupo dos Annales, e que naquele momento principia a se mostrar claramente construída – ao lado da História Econômica – por oposição à História Política tradicional. Nesta esteira inicial, houve quem direcionasse a expressão “História Social” para uma história das grandes massas ou para uma história dos grupos sociais de várias espécies (em contraste com a biografia dos grandes homens e com a História das Instituições a que tinha sido tão afeita à historiografia do século anterior).

Também é evidente que a historiografia marxista da mesma época – seguindo os princípios norteadores que já no século XIX haviam sido indicados por Marx e Engels com vistas a uma nova filosofia da história – direcionava-se na mesma época para a elaboração de uma história preocupada com a conjunção dos aspectos econômicos e dos aspectos sociais. O que haveria de relevante a ser estudado não era certamente a história dos grandes homens, ou mesmo a história política dos grandes estados e das instituições, mas sim a historia dos ‘modos de produção’ – isto é, das bases econômicas e sociais que determinariam toda a vida social – e também a história das ‘lutas de classes’, isto é, das relações entre os diversos grupos sociais presentes em uma sociedade particularmente nas suas situações de conflito.

A delimitação de um novo campo a ser chamado de “história social” surge portanto sob a forte influência destes dois campos de motivação que passaram a exercer profunda influência no seio da historiografia da primeira metade do século XX. De um lado vinham os ataques desfechados pelo grupo dos Annales contra aquilo que consideravam uma “velha história política”, de outro lado começavam a surgir as primeiras grandes obras da historiografia marxista, que cumpriam fielmente um programa de filosofia da história voltado para o econômico e para o social tal como havia sido proposto pelos fundadores do materialismo histórico a partir de meados do século XIX.

A História Social, enfim, surgia no cenário historiográfico como campo relevante e definitivo a se estabelecer no âmbito das modalidades historiográficas que devem ser definidas pelas dimensões que são trazidas à tona quando o historiador se põe a examinar um processo histórico qualquer. Considerando aquilo que é colocado em evidência em uma determinada análise historiográfica – a Política, a Cultura, a Economia, as relações sociais – poderíamos ter respectivamente uma História Política, uma História Cultural, uma História Econômica, uma História Social, entre outras possibilidades.

Tal como foi explicitado atrás, esta tendência da historiografia contemporânea a constituir e perceber a história social como campo relacionado a uma dimensão social específica liga-se ao fato de que, na primeira metade do século XX, os novos historiadores passam a opor um novo campo de interesses e enfoques à História Política do século XIX, o que de certo modo produzia uma aliança entre a História Social e a História Econômica na luta pelo estabelecimento de uma historiografia inteiramente nova no que se refere aos fazeres historiográficos do século anterior. À História Social e à História Econômica – como campos inauguradores de um novo fazer historiográfico – logo se juntariam a História Demográfica, a História Cultural, a História das Mentalidades, a História do Imaginário, e também uma nova História Política, não mais preocupada apenas com o poder institucional mas sim com todas as formas de poder que circulam em qualquer sociedade, inclusive os micropoderes que afetam a vida cotidiana e as relações familiares. O quadro das dimensões historiográficas, portanto, multidiversificava-se – e é neste contexto que pode ser definido um primeiro sentido para a História Social como uma instância historiográfica específica, no mesmo nível da História Política e da História da Cultura, apenas para dar dois exemplos.

Por outro lado, outra indagação que surge nos dias de hoje, quando a expressão “história social” já multiplicou os seus sentidos e as suas aberturas de significados, é se a História Social deve ser considerada uma especialidade, com objetos próprios e definidos, ou se o “social” que ao seu nome se agrega como adjetivo acaba de um modo ou de outro por fazer coincidir o seu circuito de interesses com a sociedade – o que faria da História Social uma espécie de categoria transcendente que acaba perpassando ou mesmo englobando todas as outras especialidades da História.

[...]

Com relação às conexões da História Social com as ‘abordagens’ – isto é, com os sub-campos da historiografia que se referem a métodos e fazeres históricos – elas podem se estabelecer tanto no nível dos tratamentos qualitativos, como no nível dos tratamentos quantitativos. Da mesma forma, a História Social pode ser elaborada tanto do ponto de vista de uma Macro-História, que examina de um lugar mais distanciado aspectos como os movimentos sociais ou como a estratificação social de uma determinada realidade humana, como pode ser elaborada do ponto de vista de uma Micro-História, que se aproxima para enxergar de perto o cotidiano, as trajetórias individuais, as práticas que só são percebidas quando é examinado um determinado tipo de documentação em detalhe (por exemplo os inquéritos policiais, os documentos da Inquisição, mas também determinadas produções culturais do âmbito popular onde transpareçam elementos da vida cotidiana, das relações familiares, e assim por diante). As diferenças entre Macro-História e Micro-História ficarão mais claras no item relativo a este último tipo de abordagem.

Não há limitações com relação ao que pode ser tomado como ‘fonte’ para a História Social. É possível encontrá-las tanto na documentação de origem privada como na documentação oficial, por assim dizer. O que estamos chamando de documentação privada são aquelas fontes produzidas ao nível das vidas individuais: os relatos de viagem, os diários pessoais, correspondências entre particulares (sejam indivíduos ilustres, ou não). Documentação oficial ou pública existe de todos os tipos: desde aquelas que oferecem dados massivos sobre uma sociedade – como os inventários e registros fiscais, censitários, testamentários, cartoriais, e paroquiais – até aquelas mais pontuais, referentes a situações específicas. Por exemplo, um material muito rico do tipo que estamos caracterizando como pontual encontra-se nos arquivos judiciais e policiais (ou seja, na documentação oriunda dos sistemas repressivos). Os historiadores sociais da atualidade têm precisamente prestado muita atenção a um vasto manancial de fontes que por muito tempo foi esquecido: os registros de polícia, os processos criminais – incluindo os depoimentos, as confissões e as sentenças proferidas sobre determinado caso – ou ainda, para os primeiros séculos da Idade Moderna, os processos da Santa Inquisição, que costumavam rastrear obsessivamente a vida dos indivíduos investigados, anotar a sua fala nos mínimos detalhes, registrar rigorosamente os dados de sua vida cotidiana com o fito de perceber qualquer indício de comportamento anormal ou mentalidade herética.

É bastante irônico. Os indivíduos pertencentes às classes sociais privilegiadas dão-se a conhecer através dos mais diversificados tipos de fontes à disposição dos historiadores – na documentação política, falam através dos deputados e governantes que os representam; nas notícias de jornais, pode-se até mesmo percebê-los em flashes de sua vida privada nas colunas sociais; na arte letrada, iremos encontrá-los como sujeitos produtores de discurso ou como referentes dos discursos aí produzidos. Já ao pobre, e mais ainda ao excluído, só é dada uma voz quando ele comete um crime (ou quando é acusado de um). Os registros repressivos são paradoxalmente os espaços documentais mais “democráticos” – aqueles onde os historiadores poderão encontrar literalmente as vozes de todas as classes, mas sobretudo as dos indivíduos pertencentes aos grupos sociais menos privilegiados do ponto de vista político e econômico. É só quando comete um crime que o homem pobre adquire uma identidade para a História!

Existem também, é preciso reconhecer, as fontes oriundas da cultura popular. Mas este tipo de fonte é mais propriamente relacionado com a História Cultural, como já vimos anteriormente. Também não deve ser desprezada a grande literatura. A leitura atenta da Comédia Humana de Balzac não é irrelevante para a compreensão da transição para o Capitalismo moderno, e a mesma recomendação de atentar para a importância da literatura como fonte para este período pode ser feita em relação às obras de Victor Hugo. A partir do momento em que a perspectiva realista abriu-se como uma possibilidade para os produtores de obras associadas à cultura letrada (literatura, mas também artes visuais), o homem comum também começou a chegar aos historiadores através destas fontes, embora elas sempre requeiram o cuidado de serem trabalhadas com a consciência de que, nestes casos, o homem pertencente aos extratos sociais menos privilegiados só recebe a sua voz ou a sua transparência através de um filtro, que é a sensibilidade do escritor ou do pintor pertencente a outro grupo social (fora, é claro, quando o próprio artista é oriundo do grupo social que pretende retratar).

Voltemos às fontes de História Social que chegam aos historiadores através da violência. Além da violência individual, que aparece através do crime, existe ainda a violência coletiva, onde a massa anônima deixa suas marcas e conquista também a sua voz através de explosões de revolta que podem ficar registradas nas notícias de jornais, ou então nas descrições dos cronistas para os períodos mais antigos. As revoluções e os processos de transformação social, conforme já observou Thompson muito bem, são momentos privilegiados para a percepção das identidades de classe, inclusive as relativas aos grupos sociais menos privilegiados. São nestes momentos que as massas tornam-se visíveis, exprimindo-se através dos gestos do “protesto” (sejam protestos espontâneos, sejam os movimentos organizados, como as greves) ou da violência coletiva, que podem produzir desde badernas e motins até revoluções com repercussões sociais definitivas. São também nestes momentos que, eventualmente, emergem as lideranças populares – por vezes deixando suas vozes registradas em panfletos e em discursos que foram recolhidos pela imprensa ou pelos cronistas de uma época.

No dia a dia, as massas populares são informes: executam como que emudecidas as tarefas que lhes permitirão assegurar a sua sobrevivência diária. A História conhece os camponeses do final da Idade Média, os operários urbanos das sociedades industriais, os escravos do Brasil Colonial ... sempre através dos registros massivos, que anotarão as datas de seus nascimentos, o número de filhos, a morte, a ocupação, e as modalidades de pertencimento (a um senhorio na Idade Média ou a uma indústria no mundo capitalista). Nestes momentos, as massas falam à História através de números que registram a sua laboriosa e sofrida passividade. Mas quando ocorre um motim, uma insurreição, um protesto público, pela primeira vez a massa de despossuídos será ouvida não através da passividade dos números silenciosos, e sim através dos gestos violentos e ruidosos.

Os “sem-terra”, por exemplo, são habitualmente encontrados pelos historiadores que examinam a História contemporânea do Brasil nos documentos do censo, que os registram como camponeses despossuídos e desempregados. Mas quando eles ocupam uma fazenda, ou quando em protesto eles adentram um espaço que para eles não estaria previsto – como um shopping center – neste momento eles se transformam em atores sociais mais definidos e ganham espaço nas notícias de jornal e outras mídias. Quando a massa excitada derruba uma bastilha, entra subitamente na História não como uma estatística, mas como sujeito coletivo que realiza um ato, que produz ou se incorpora a um movimento social. Os camponeses medievais, de modo similar, chegam aos historiadores como um número incorporado à terra através dos contratos celebrados entre um suserano e um vassalo, ou através de um testamento que os passa adiante para os herdeiros de um feudo. Mas quando produzirem uma Jacquerie serão registrados pela primeira vez por algo que fizeram, e não por algo que fizeram a eles.

São os grandes momentos de protesto ou de violência coletiva que tornam visíveis as massas, e os pequenos momentos de crimes individuais que dão visibilidade ao homem comum. Por isto o historiador acaba chegando às massas e aos indivíduos menos favorecidos através da violência. São as fontes que expressam os vários tipos de violência (ou que registram a repressão a esta violência) aquelas que permitirão a este historiador examinar as relações de classe, as suas expectativas, o seu cotidiano. É aliás curioso observar que, quando o criminoso escapa à repressão, ele perde-se para a História.

Na verdade, as fontes de natureza repressiva – como os processos criminais ou os registros inquisitoriais – constituem registros múltiplos, polifônicos por excelência. A própria diversidade social pode estar presente em um processo judicial ou inquiridor – afinal, o modo como devem ser organizados os processos, entrecruzando indivíduos dos mais diversos tipos, acaba conferindo a este tipo de fontes uma posição muito rica no repertório de documentos à disposição de um historiador social. São fontes que habitualmente envolvem um foco representando o sistema repressivo (não raro expressando contradições internas que podem aparecer sob a forma de conflitos de autoridade) e um universo multifocal que passa por um vasto número de depoentes e de testemunhas, até chegar ao criminoso ou ao inquirido.
É mais raro que a História Social, pelo menos no que se refere a períodos mais recuados, vá encontrar fontes relativas aos grupos menos favorecidos na ‘documentação privada’ (diários, livros de memória, relatos de viagem, correspondência) porque estes tipos de textos nem sempre são conservados depois que os seus autores desaparecem. Mas, na medida em que avança para classes mais favorecidas, o historiador já começa a dispor deste tipo de documentação.
As fontes da História Social, enfim, são de inúmeras modalidades. Sua escolha, naturalmente, será orientada pelo problema histórico a ser definido e investigado pelo historiador.

Conforme vimos – seja no que se refere a seus campos de interesse e objetos privilegiados, seja no que se refere a seus métodos mais recorrentes e fontes historiográficas disponíveis – a História Social mostra-se ao historiador contemporâneo como um campo aberto a inúmeras possibilidades. Um de seus traços centrais, certamente, continuará para o futuro a referir-se ao intenso diálogo com todas as Ciências Sociais, o que tem permitido precisamente essa maior amplitude de objetos e o tratamento de uma maior variedade de tipos de fontes a partir de metodologias que a História pôde apreender de diversificados campos do saber como a Sociologia, a Antropologia, a Lingüística, a Semiótica.


Leia o artigo completo em http://ning.it/hszGnB ou em http://ning.it/gfYjG1

[BARROS, José D’Assunção. “A História Social: seus significados e seus caminhos” in LPH - Revista de História da Universidade Federal de Ouro Preto. N° 15, 2005; p.235-256].

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Micro-História

A Micro-História é um campo relativamente recente na Historiografia, e ainda hoje gera muitas po-lêmicas com relação às suas possibilidades de definição. Uma questão complicadora é que a Micro-História começou a desabrochar com um grupo muito específico de historiadores italianos, que possui, até os dias de hoje, publicação própria (os Quaderni Storici), e por isto não é raro que se confunda a Micro-História – enquanto nova possibilidade de abordagem historiográfica – com este grupo. Mas veremos a seguir que a Micro-História merece ser tratada de maneira mais ampla, como um novo âmbito de possibili-dades historiográficas, e não como uma corrente ou escola dentro da historiografia. O olhar micro-historiográfico, deve-se dizer, pode ser conectado aos mais distintos aportes teóricos, e é assim que ele tem aparecido inclusive na historiografia brasileira das últimas décadas.

Outra confusão sem nenhum fundamento que algumas vezes se faz surge quando se relaciona equi-vocadamente a História Regional e a Micro-História, apesar de estes serem campos radicalmente distintos no que concerne às suas motivações fundadoras. Vejamos a seguir, para diferenciá-la mais claramente da Micro História, do que se trata quando se fala em “História Regional”.

Quando um historiador se propõe a trabalhar dentro do âmbito da História Regional, ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma região específica (ou, melhor dizendo, uma determinada espacia-lidade). O espaço regional, é importante destacar, não estará necessariamente associado a um recorte admi-nistrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, a um recorte cultural ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema histórico que irá examinar. Mas, de qualquer modo, o interesse central do historiador regional é estudar especificamente este espaço, ou as relações sociais que se estabelecem dentro deste espaço, mesmo que eventualmente pretenda compará-lo com outros espaços similares ou examinar em algum momento de sua pesquisa a inserção do espaço regio-nal em um universo maior (o espaço nacional, uma rede comercial).

Que a região é uma construção do historiador, do geógrafo ou do cientista social que examina uma determinada questão, isto já o sabem de longa monta os historiadores regionais. A região não existe obvi-amente como espaço pré-estabelecido, ela é construída dentro das coordenadas de uma determinada pes-quisa ou de uma certa análise sociológica ou historiográfica. Por isto, aliás, é preciso que o pesquisador – ao delimitar o seu espaço de investigação e defini-lo como uma ‘região’ – esclareça os critérios que o con-duziram a esta delimitação. Posto isto, é óbvio que o ‘espaço’, seja este definido como espaço físico ou como espaço social, é uma noção fundamental dentro deste campo de estudos que pode ser enquadrado como História Regional.

Enquanto a História Regional corresponde a um domínio ou a uma abordagem historiográfica que foi se constituindo em torno da idéia de construir um espaço de observação sobre o qual se torna possível perceber determinadas articulações e homogeneidades sociais (e a recorrência de determinadas contradi-ções sociais, obviamente), já a Micro-História corresponde a um campo histórico que se refere a uma coisa bem distinta: a uma determinada maneira de se aproximar de uma certa realidade social ou de construir o objeto historiográfico. A Micro-História, sustentaremos aqui, relaciona-se a uma abordagem, mais do que a qualquer outra coisa.

Antes de mais nada é preciso deixar claro que a Micro-História não se refere necessariamente ao estudo de um espaço físico reduzido ou delimitado, embora isto possa até ocorrer. O que a Micro-História pretende é uma redução na escala de observação do historiador com o intuito de se perceber aspectos que, de outro modo, passariam desapercebidos. Quando um micro-historiador estuda uma pequena comunidade, ele não estuda propriamente a pequena comunidade, mas estuda através da pequena comunidade (não é por exemplo a perspectiva da História Local, que busca o estudo da realidade micro-localizada por ela mesma). A comunidade examinada pela Micro-História pode aparecer, por exemplo, como um meio para se atingir a compreensão de aspectos específicos relativos a uma sociedade mais ampla. Da mesma forma, pode-se tomar para estudo uma ‘realidade micro’ com o intuito de compreender certos aspectos de um pro-cesso de centralização estatal que, em um exame encaminhado do ponto de vista da macro-história, passa-riam certamente desapercebidos.

O objeto de estudo do micro-historiador não precisa ser, desta maneira, o espaço micro-recortado. Pode ser uma prática social específica, a trajetória de determinados atores sociais, um núcleo de represen-tações, uma ocorrência (por exemplo, um crime) ou qualquer outro aspecto que o historiador considere revelador em relação aos problemas sociais ou culturais que está disposto a examinar. Se ele elabora a bio-grafia ou a “história de vida” de um indivíduo (e freqüentemente escolherá um indivíduo anônimo) o que o estará interessando não é propriamente biografar este indivíduo, mas sim os aspectos que poderá perceber através do exame micro-localizado desta vida.

Da mesma maneira, assim como a Micro-História não deve ser confundida com a História Regional ao examinar eventualmente um espaço micro-recortado, também não deve ser confundida com o chamado ‘estudo de caso’ ao estudar uma prática social ou uma ocorrência, e nem ser confundida com a Biografia Histórica ao examinar uma “vida” ou uma trajetória individual. Sempre que toma estes objetos – micro-localidade, prática social, ocorrência histórica, trajetórias individuais entrecruzadas ou vida individual – o micro-historiador está no encalço de algo mais do que estes objetos em si mesmos. A prática micro-historiográfica não deve ser definida propriamente pelo que se vê, mas pelo modo como se vê.

Para utilizar uma metáfora conhecida, a Micro-História propõe a utilização do microscópio ao in-vés do telescópio. Não se trata, neste caso, de depreciar o segundo em relação ao primeiro. O que importa é ter consciência de que cada um destes instrumentos pode se mostrar mais apropriado para conduzir à per-cepção de certos aspectos do universo (por exemplo, o espaço sideral ou o espaço intra-atômico). De igual maneira, a Micro-História procura enxergar aquilo que escapa à Macro-História tradicional, empreendendo para tal uma ‘redução da escala de observação’ que não poupa os detalhes e que investe no exame intensi-vo de uma documentação. Considerando os exemplos antes citados, o que importa para a Micro-História não é tanto a ‘unidade de observação’, mas a ‘escala de observação’ utilizada pelo historiador, o modo intensivo como ele observa, e o que ele observa.

A idéia de que, em muitos casos, a Micro-História examina um campo ou um aspecto reduzido para enxergar mais longe, ou para perceber elementos que escapariam à macro-perspectiva tradicional, merece alguns esclarecimentos adicionais. Poderíamos utilizar aqui uma nova metáfora: a de que o micro-historiador examina “uma gota d’água para enxergar algo do oceano inteiro”, contanto que tenhamos uma compreensão muito precisa sobre que esta imagem significa. Suponhamos um oceanógrafo que estivesse investindo em uma possibilidade como esta. Ele se propôs a buscar compreender algo do oceano inteiro a partir de uma minúscula gota d’água extraída deste oceano – será isto possível? A resposta depende obvi-amente do problema científico que se pretende examinar. Não é possível compreender a fauna marítima examinando uma simples gota do oceano (um peixe não cabe em uma gota d’água). Mas é possível estudar a composição molecular da água a partir de qualquer gota (com exceção, talvez, das gotas extraídas de áreas que sofreram vazamentos de óleo nos acidentes ecológicos que ocasionalmente têm perturbado os noticiários recentes). Não está sendo defendida aqui nenhuma proposta de que este macrocosmos que é o oceano está essencialmente contido neste microcosmos que é a gota d’água, ou de que a sociedade inteira está contida em cada um dos seus fragmentos passíveis de serem examinados. Também não se trata de dizer que a micro-análise seleciona um fragmento para amostra (algumas gotas do oceano, por exemplo), para depois proceder a uma generalização das observações com o fito de concluir que o que aconteceu a uma ou mais gotas d’água acontecerá a todas que compõem o oceano (o que seria o método empírico-indutivo tradicional). Na verdade, a Micro-História não trabalha propriamente com generalizações deste tipo. Pelo contrário, as motivações que produziram este novo tipo de abordagem historiográfica são até mesmo um pouco avessas seja às grandes generalizações (tão típicas das antigas utopias historiográficas da “história total”), seja à idéia de que a gota contém o oceano ou de que o fragmento social contém a socie-dade). De que se trata então?



Leia a continuação deste texto em: http://ning.it/eDmvXt


O presente texto também se encontra, em outra versão, em um dos capítulos do meu livro "O Campo da História" (BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição).

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Outras referências bibliográficas:

BARROS, José D'Assunção. "Micro-História" in O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição. p.152-179.

BARROS, José D'Assunção. "O olhar micro-historiográfico no Brasil". Revista do IHGB, a-165, n°424, jul/set. 2004.

GINZBURG,Carlo. “O inquisidor como antropólogo” In A Micro História e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1991 [original: 1989]

GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” In Mitos, Emblemas, Sinais, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.143-179

GINZBURG,Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 [original: 1975]

LEVI, Giovanni. "Sobre a Micro-História" in BURKE,Peter (org.) A Escrita da História - novas perspectivas. São Paulo: Unesp. 1992. p.133-161.

LIMA, Henrique Espada. A Micro-História Italiana - escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

PESAVENTO, Sandra. “Esta história que chamam micro” In: Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Edurgs, 2000, p. 228-229.

REVEL, Jacques (olrg.). Jogos de Escala - a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.