tag:blogger.com,1999:blog-73433435783533064862024-03-05T06:24:19.581-08:00Blog Escrita da HistóriaJosé D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.comBlogger49125tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-52742770427969736582011-02-09T20:24:00.001-08:002011-02-09T20:24:50.129-08:00História dos ConceitosBreve: texto sobre a História dos ConceitosJosé D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-79871974454506605522011-01-29T15:34:00.000-08:002011-01-29T15:40:52.009-08:00Espacialidades e Temporalidades da HistóriaNos dias de hoje, as identidades historiográficas tem sido construídas com um peso importante nas auto-definições de cada historiador em termos de modalidades historiográficas (campos históricos) com as quais ele dialoga, ou no interior de cujas conexões ele produz as suas pesquisas e elabora seus textos historiográficos. Desta maneira, são categorias identitárias importantes, para o historiador contemporâneo, expressões como "História Cultural", "História Política", "História Econômica", "Micro-História", "História Regional", para apenas citar alguns títulos da enorme miríade de campos históricos emque hoje é partilhado o saber e a prática historiográfica.<br />
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Por outro lado, os profissionais de História, sobretudo no âmbito do Ensino, mas também no universo institucional da Pesquisa, deve lidar alternadamente com uma série de categorias identitárias mais antigas e já tradicionais, que na verdade são já seculares para os historiadores. São as categorias que se referem a "espacialidades" e "temporalidades". Diz-se de um historiador - independente de suas conexões com a "história cultural", com a "história política" ou com a "micro-história" - que ele é um "medievalista", um historiador da "História Antiga", um historiador da "História da América", da "História da África", do Brasil-Império, e assim por diante. Estas categorias já são clássicas.<br />
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Embora o historiador não tenha nenhuma obrigação de se especializar em temporalidades ou espacialidades específicas, e seja cada vez mais comum encontrarmos os historiadores que se definem mais pelos "campos históricos" (História Econômica, História do Imaginário, História de Gênero, etc), é bastante comum que os historiadores sejam chamados a se especializarem em temporalidades ou espacialidades, particularmente quando assumem assentos universitários, já que os currículos de Graduação em História costumam se organizar em torno de uma tblatura que envolve sobretudo as espacialidades e temporalidades, com exceção da área de Teoria e Metodologia da História, que obviamente transcende este tipo de classificações.<br />
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Discorreremos, neste momento, sobre classificações relacionadas às ‘espacialidades’ e ‘temporalidades’. O critério das Temporalidades gera modalidades como a História Antiga, História Medieval, História Moderna, História Contemporânea. O critério das Espacialidades gera modalidades como a História Européia, a História da América, a História da África, a História do Brasil, ou as inúmeras histórias de realidades nacionais específicas. Uma ampliação da escala de observação espacial, em direção ao supra-nacional, pode gerar a História das Civilizações (se incorporarmos o conceito de “civilização”), ou, se pensarmos apenas em termos de um agregado planetário, um âmbito mais vasto denominado “História Universal”. Outras divisões relacionadas à espacialidade também podem ser pensadas, como a “História do Ocidente” ou “História do Oriente” (conceitos que sempre precisam ser problematizados, pois bem que poderia ser pensada uma “História do Hemisfério Sul” por oposição a uma “História do Hemisfério Norte”, se olhássemos para o planeta de acordo com uma outra leitura geopolítica). Por fim, é possível combinar “temporalidades” e “espacialidades” para gerar denominações específicas de modalidades históricas, como a “História da América Antiga”, a “História do Brasil Império”, ou a "História do Brasil República" (Quadro 2).<br />
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O Quadro abaixo foi construído relacionando no eixo das ordenadas as Temporalidades, e noeixo das abiscisas as Espacialidades. No encontro entre tempos e espaços, localizaremos as identidades historiográficas que habitualmente organizam nossos cursos de Graduação em História. O Quadro faz parte do livro "Teoria da História - volume 1: os conceitos fundamentais" (Petrópolis: Editora Vozes, 2011), a ser lançado em fevereiro deste mesmo ano.<br />
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJASZScgTfnJMQUmUFVL0t18032MVI9HzZU3nmBG7veV1TzL-04uB3xzTY8A2Z0yihXibKBImopJlm8YpO-SfA4ndzKrZ_izFtgEMC8cnMjiF2duqgqhoGhw67266d2VbXOcM2Y7cX0VMC/s1600/Imagem+1.+Espacialidades+e+Temporalidades+da+Hist%25C3%25B3ria.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="190" s5="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJASZScgTfnJMQUmUFVL0t18032MVI9HzZU3nmBG7veV1TzL-04uB3xzTY8A2Z0yihXibKBImopJlm8YpO-SfA4ndzKrZ_izFtgEMC8cnMjiF2duqgqhoGhw67266d2VbXOcM2Y7cX0VMC/s320/Imagem+1.+Espacialidades+e+Temporalidades+da+Hist%25C3%25B3ria.jpg" width="320" /></a></div><br />
Quadro 2: Modalidades da História por Espacialidade e Temporalidade. Alguns exemplos (Quadro extraído do livro Teoria da História (Petrópolis: Editora Vozes, 2011, vol1) e também incluído em artigo disponível em: <a href="http://ning.it/fiY5IC">http://ning.it/fiY5IC</a><br />
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Naturalmente que a combinação dos critérios da Espacialidade e da Temporalidade gera dilemas e problemas teóricos interessantes, nem sempre fáceis de resolver. Como situar a História do Império Romano, se este, em sua fase de maior expansão, abrangeu vastas regiões da Europa, Ásia e África? De igual maneira, o domínio grego, no período de apogeu militar das ligas Ateniense e Espartana, estendeu-se pela Europa e pela Ásia Menor, o que também inspira dilemas análogos[1]. Há ainda questões outras teóricas interessantes: embora a História Européia possa gerar as tradicionais divisões da História Antiga, da História Medieval, da História Moderna e da História Contemporânea, a História da América não se adéqua bem a esta tábua de leitura, uma vez que não há uma diferença plausível entre uma América Antiga e outra América Medieval que faça qualquer sentido para as sociedades que existiam no período pré-colombiano. De modo geral, denomina-se como “História da América Antiga” a todo o período da História da América que precede a colonização européia a partir da chegada dos espanhóis, dos portugueses, e depois dos ingleses. A série de “Histórias do Brasil”, em contrapartida, também tem as suas especificidades. Prefere-se dividi-la de acordo com sua situação no quadro político externo e interno: um ‘Brasil-Colônia’, um ‘Brasil Império’ já independente, e um ‘Brasil República’. Polêmicas conceituais também podem ocorrer quando estendemos para trás o olhar acerca de uma determinada realidade nacional. O Brasil do período colonial era já “Brasil”, ou seria melhor chamá-lo de “América Portuguesa”?[2].<br />
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Deve-se entender, antes de tudo, que os diversos critérios de divisão temporal, que hoje nos são tão familiares e corriqueiros a ponto de os discutirmos muito pouco, são eles mesmos históricos. Mais ainda, nem sempre foram tão gloriosos os começos de todos os “conceitos” que ocupam lugar de honra na Teoria da História. A “Idade Média”, por exemplo – uma modalidade temporal da História que tem sido universo de dedicação de alguns dos mais renomados historiadores europeus, tais como Marc Bloch, Georges Duby e Jacques Le Goff – traz na sua designação uma história à qual não faltaram as imposições depreciativas. Houve uma época em que a expressão “tempos médios” era empregada pela História Teológica para designar um momento da história mundana que já se demorava na sua função de preceder os “finais dos tempos”, estes nos quais um novo mundo se abriria definitivamente para os seres humanos considerados dignos da salvação, ao passo em que outros tantos mergulhariam na danação eterna. Mas depois, com o humanismo que começa a emergir na Itália da época de Petrarca (1304-1374), os “tempos médios” vão designar este longo período “bárbaro” e “sombrio” que se parecia se interpor de maneira incômoda entre o glorioso modelo da antiguidade clássica e os novos tempos humanistas que o queriam recuperar no trecento italiano[3]. Mas rigorosamente falando, tal como assinala Reinhart Koselleck (2006, p.271), parece ter sido Christoph Cellarius (1639-1707), em um manual escrito em 1685, um dos primeiros a já consolidar o uso da expressão “idade média” como designativo de uma das divisões da História Universal (1696), em uma obra que teve tanta repercussão que em 1753 já tinha atingido a sua 11ª edição[4]. A partir daí, “o conceito de Idade Média generalizou-se no século XVIII dos iluministas – quase sempre em sentido pejorativo – para transformar-se, no século XIX, em um topus fixo da periodização histórica” (KOSELLECK, 2006, p.271).<br />
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Estes exemplos em torno da trajetória de uma designação que percorre sentidos vários, entre outras investigações de trajetórias semânticas que poderiam se referir à “Idade Antiga”, “Idade Moderna”, “Idade Contemporânea”, “Modernidade”, “Pós-Modernidade” – mostram claramente a historicidade dos próprios conceitos e categorias utilizadas para abordar a questão mesma da ‘historicidade’[5]. Neste quadro de problemas teóricos, ocupam lugar de destaque as intrincadas polêmicas sobre os limites que separam determinadas temporalidades. Quando se encerra a Idade Antiga e inicia-se a Idade Medieval? De acordo com as distintas teorias sobre a desagregação, desarticulação, queda, declínio ou transformação cultural do Império Romano, as datas ou períodos de separação ou transição entre uma época e outra podem oscilar historiograficamente de modo considerável, e já foram propostas interpretações que sinalizam a passagem de um pra o outro período em momentos diversificados no interior de um período de consideráveis extensões que vai do século II ao século VIII. Novos conceitos também podem surgir destas oscilações interpretativas: a “Antiguidade Tardia” pode se estender Idade Média adentro, disputando territórios historiográficos com a “Alta Idade Média”[6]. Sobre isto, ver também http://ning.it/eJ9XEg, em artigo no qual discorremos sobre as ambiguidades relacionadas às fronteiras entre Antiguidade e Idade Média.<br />
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Também são igualmente ambíguas as fronteiras entre a Idade Média e a Idade Moderna[7], e ainda mais aquelas que podem ser estabelecidas ou propostas entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea[8]. De igual maneira, quando pensamos no mundo contemporâneo, que período estaríamos vivendo agora, nesta era tão peculiar que se inicia nas últimas décadas do século XX e que adentra o novo milênio: uma Idade Pós-Industrial?, um período Pós-Moderno?, uma fase avançada do Capitalismo Tardio? Surgirá um dia a “História Pós-Moderna”? Na medida em que avançarmos para o Futuro, será necessário redefinirmos toda a tábua tradicional de leitura habitualmente aceita para as temporalidades históricas, já que a “história contemporânea” de hoje será do passado, da mesma forma que a “história moderna” já não é mais moderna? A largas pinceladas, será útil rediscutir as modalidades temporais da História em termos de uma “História da Era Agrícola”, uma “História da Era Industrial”, e a mais recente “História da Era Digital”?<br />
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As subdivisões da História sempre geram problemas teóricos a serem resolvidos. Será desnecessário lembrar que a organização da História por modalidades internas que combinam os critérios da ‘espacialidade’ e da ‘temporalidade’ constituem apenas recursos para organizar o trabalho historiográfico em um primeiro momento, mas não são grilhões ou compartimentos para aprisionar os objetos históricos, que inúmeras vezes não correspondem aos espaços nacionais rigidamente estabelecidos, ou balizas temporais inflexíveis[9].<br />
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Veja o artigo do qual foram extraídos o Quadro e o texto acima em <a href="http://ning.it/fiY5IC">http://ning.it/fiY5IC</a><br />
[BARROS, José D'Assunção. "Sobre o conceito de Campo Histórico". História-e-História. Unicamp: março de 2010]<br />
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O mesmo quadro e comentário podem ser encontrados em BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 1. Petrópolis: editora Vozes, 2011.<br />
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Notas:<br />
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[1] Convocar a Civilização Greco-Romana para a História do ocidente, aliás, constitui já um ponto de vista teórico, e também ideológico. Há uma certa maneira de ver as coisas que permite escolher o mundo Greco-romano como uma das bases civilizacionais do Ocidente Cristão.<br />
[2] América Portuguesa, por exemplo, foi o nome que um historiador no século XVIII – Rocha Pitta – preferiu para designar, em 1730, a vasta extensão sob domínio português que depois daria origem ao Brasil independente (1976).<br />
[3] Sobre os primórdios da noção de uma “idade média sombria”, nos escritos de Petrarca, um estudo de referência é o de T. E. MOMMSEN, 1942, p.226-242.<br />
[4] A expressão “idades médias”, ou “tempos médios”, já aparece no século XV com os humanistas italianos Leonardo Bruni (c.1374-1444) e Flávio Biondo (c.1362-1493); e, antes dele, conforme já foi ressaltado, Petrarca se referira aos “tempos sombrios” que se situavam entre a Antiguidade Greco-Romana e os novos tempos que começavam a retomar mais enfaticamente as referências da antiguidade clássica. Mas o uso da expressão “Idade Média” como claro designativo de um período de tempo a ser inserido em uma estrutura tripartida para a compreensão da história pode ser mesmo atribuído ao erudito alemão Christoph Cellarius, que já divide a sua História Universal nos períodos “Antigo”, “Medieval” e “Novo”.<br />
[5] Também a tendência a pensar nos séculos como unidades de sentido histórico tem a sua história, como tão bem assinala Reinhart Koselleck: “[...] a partir do século XVII eles [os séculos] adquirem cada vez mais pretensões históricas próprias. Passam a ser entendidos como unidades coerentes de sentido. O século do Iluminismo já é pensado assim pelos contemporâneos, estando consciente, por exemplo em Voltaire, de ser diferente do século de Luís XIV” (KOSELLECK, 2006, p.283).<br />
[6] Na Alemanha, Alois Riegl, com seu livro sobre a arte nos últimos tempos da Roma Antiga (Arte Tardo-romana) foi dos primeiros a popularizar o conceito de Spätantike (“Antiguidade Tardia”). Mais recentemente, o historiador irlandês Peter Brown (n.1935) consolidou o uso do conceito na língua inglesa, com os livros The World of Late Antiquity (1971) e The Making of Late Antiquity (1978). Para Brown, a “Antiguidade Tardia” não corresponderia a um período de declínio, mas a um tempo de recomeços, de novas redefinições sociais e culturais que, ainda assim, poderiam ser localizadas dentro dos quadros da Idade Antiga.<br />
[7] Os processos e eventos sinalizadores da Idade Moderna, muito evocados para a delimitação deste período, são vários, entre os quais a (1) Reforma – que institui definitivamente um mundo cristão dividido em várias Igrejas, quebrando de uma vez por todas a pretensão de controle papal sobre toda a religiosidade cristã – bem como (2) o fortalecimento das monarquias absolutas, (3) o deslocamento, em relação ao eixo marítimo principal, do Mediterrâneo para o Atlântico, (4) a expansão européia através das grandes navegações, com a subsequente conquista das Américas, e (5) a mundialização através do comércio de longo alcance. Outro evento importante, que chegou mesmo a ser estabelecido como marco, foi (6) a tomada de Constantinopla pelos turcos, colocando um fim no Império Bizantino, que persistira e resistira durante todo o período medieval, e firmando as fronteiras da expansão islâmica contra a cristandade. Em termos do paradigma apoiado no Materialismo Histórico, (7) o declínio do ‘modo de produção feudal’, apesar de suas persistências até períodos avançados do Antigo Regime, permite que por esta mesma época de transição se entreveja a formação de um modo de produção capitalista, ainda na sua fase mercantilista.<br />
[8] Na historiografia européia, convencionou-se pensar nos marcos da Revolução Francesa e do movimento de Independência Americana como sinalizadores iniciais de um novo período que seria chamado de “História Contemporânea”. Embora sejam sinalizadores carregados de euro-centrismo, e mesmo de franco-centrismo, a escolha do período iluminista como marco inicial da contemporaneidade encontra respaldo na percepção de que os iluministas, e particularmente os homens envolvidos com as lutas revolucionárias na França, passaram a incorporar um sentimento intenso de que estavam fazendo história no seu próprio tempo presente, sendo já personagens de uma nova era. De modo geral, mesmo os historiadores fora da França e em período posterior não questionaram a validade deste marco ou de uma distinção entre a “história contemporânea” e a “história moderna”. Koselleck, no capítulo “Modernidade” de seu Futuro Passado (1979), registra as seguintes observações sobre Ranke: “Ranke, enquanto ensinou, sempre de novo se referia à ‘história dos tempos mais recentes’ ou ‘história contemporânea’, que, dependendo da temática, ele fazia começar com o velho Frederico [rei da Prússia] ou com a Revolução Francesa ou a Americana. Só quando falava da história que lhe era contemporânea é que se desviava do uso lingüístico tradicional, chamando-a de ‘história de nosso tempo’” (KOSELLECK, 1979, p.281). Prenuncia-se então, também aqui, um novo conceito que seria o da “História do Tempo Presente”. Com relação ao “sentimento do novo” entre os europeus do final do século XVIII, é também Koselleck (p.180) quem traz à luz esta passagem de H. G. M. Köster, escrita em 1787 para o verbete “História” da Enciclopédia Alemã: “quase toda a Europa ganhou uma configuração totalmente diferente {...} e quase aparecer nesta parte do mundo uma nova raça de homens” (KÖSTER, Deutsche Encyclopedie, 1787, p.657). / De resto, cumpre observar que a passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea tem como processo distintivo importante o advento da Era Industrial.<br />
[9] Sobre isto, Paul Veyne faz uma interessante observação: “Uma vez que todo acontecimento é tão histórico quanto um outro, pode-se dividir o campo factual com toda liberdade. Como se explica que ainda se insiste em dividi-lo tradicionalmente segundo o espaço e o tempo, ‘história da França’ ou ‘o século XVII’, segundo singularidades e não especificidades? Por que ainda são raros livros intitulados: ‘O Messianismo revolucionário através da História?’, ‘As Hierarquias Sociais de 1450 a nossos dias, na França, China, Tibet e URSS’ ou ‘paz e guerra entre as nações’, para parafrasear títulos de três obras recentes? Não seria uma sobrevivência da adesão original à singularidade dos acontecimentos e do passado nacional?” (VEYNE, 1982, p.42).<br />
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Referências:<br />
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BARROS, José D’Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2008 (6ª ed.) [orig.: 2004].<br />
BROWN, Peter, o Fim do Mundo Antigo, Lisboa: Verbo, 1971.<br />
CELLARIUS, Christoph. Historia Universalis. Altemburg: 1753, 11ª edição [originais dos três volumes: 1696, 1704, e póstumo 1708].<br />
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979].<br />
KOSTER, H. M. G. “Historie” in: Deutsche Encyclopädie oder Algemeines Real-Wörterbuch aller Künste und Wissenschaften. Frankfurt: Koster und Ross, 1787. vol.XII.<br />
MOMMSEN, T. E. Petrarch’s Conception of the ‘Dark Ages’. Speculum. n°17, 1942, p.226-242.<br />
ROCHA PITTA. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976 [original: 1730].<br />
VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: UNB, 1982 [original: 1971].José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-48039276977889015402011-01-25T21:04:00.000-08:002011-01-26T20:03:56.146-08:00História Comparada<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">Há cerca de oitenta atrás, um importante artigo de Marc Bloch sobre a ‘História Comparada’ (BLOCH, 1928:<span style="font-size: 11pt; line-height: 150%;"> </span>15-50) buscava afirmar em um universo historiográfico prestes a se revolucionar uma nova e instigante promessa historiográfica. O ambiente intelectual europeu mostrava-se então bastante propício à formulação de novas idéias no campo da historiografia, e esta estava de fato prestes a conhecer uma verdadeira revolução historiográfica, tanto a partir de um grupo que logo ficaria conhecido como Escola dos Annales, na França, como a partir dos novos desenvolvimentos do Materialismo Histórico, por todo mundo. Neste ambiente revolucionário em termos de inovações teóricas, metodológicas, e interdisciplinares, não tardariam a surgir inúmeras modalidades historiográficas que deixariam para trás o monolítico universo da História Política que se fazia no século XIX.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">Ao mesmo tempo em que a proposta de uma “História Comparada” introduz-se como uma nova possibilidade historiográfica entre outras tantas, ela se apresenta como um anseio bastante singular para responder a um contexto histórico bastante específico. O mundo, então, já conhecera os horrores da Primeira Grande Guerra, e outros horrores ainda maiores estavam por vir com a ascensão do Nazismo e a eclosão do segundo grande conflito mundial. Respirava-se então, em uma parte pelo menos significativa da intelectualidade européia, um certo ar de desânimo em relação aos caminhos que tinham sido trilhados através daquele exacerbado culto ao Nacionalismo que tanto caracterizara a estruturação dos estados-nações nos séculos anteriores. Mais ainda, de modo geral os historiadores tinham desempenhado no século anterior um papel bastante relevante na organização institucional dos estados-nações, na estruturação de arquivos para o registro da memória nacional, na construção de narrativas laudatórias que exaltavam cada nação em particular, e que por vezes chegavam mesmo a conclamar indiretamente à Guerra. Alguns, como François Guizot (<span style="font-size: 11pt; line-height: 150%;">1787-1874</span>), tinham mesmo ocupado postos governamentais; outros, como Michelet (<span style="font-size: 11pt; line-height: 150%;">1789-1874</span>), haviam chefiado arquivos nacionais em seus países. Agora, diante dos aspectos nefastos daquele processo de exacerbação nacionalista que resultara em tão terrível desastre, era compreensível que, no complexo e multi-diversificado circuito dos historiadores profissionais, surgissem aqui e ali os vestígios de um certo “mal estar” da historiografia. Não era um sentimento necessariamente predominante em todos os países e ambientes, mas este mal-estar certamente se fazia presente.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45pt;">Não é de se estranhar que, neste mesmo contra-clima de desapontamento em relação ao nacionalismo radicalizado – que de resto seguiria adiante pelas décadas vindouras – tenham se fortalecido os primeiros sonhos de ultrapassagem dos antigos modelos propugnados por aquela velha historiografia nacionalista, que até então estivera sempre tão bem acomodada às molduras nacionais. É neste ambiente que surgem os primeiros esforços de sistematização de uma História Comparada – ou melhor, é neste ambiente que emerge a assimilação mais sistemática do comparativismo histórico pelos historiadores profissionais ou por sociólogos que abordaram de algum modo a perspectiva da História. Tal como propunham autores vinculados a propostas as mais diversas – e aqui podemos incluir nomes como o de Marc Bloch, Toynbee ou Norbert Elias – “comparar” era de algum modo abrir-se para o diálogo, romper o isolamento, contrapor ao mero orgulho nacional um elemento de “humanidade”, e, por fim, questionar a intolerância recíproca entre os homens – esta que logo seria coroada com a explosão da primeira bomba atômica.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">No intuito de melhor delimitarmos a reflexão que estará sendo desenvolvida neste ensaio, consideraremos que a História Comparada – campo que começava a se delinear ainda discretamente naqueles tempos – constitui antes de mais nada uma modalidade<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>historiográfica fortemente marcada pela complexidade, já que se refere tanto a um ‘modo específico de observar a história’ como à escolha de um ‘campo de observação’ específico – mais propriamente falando, uma espécie de “duplo campo de observação”, ou mesmo um “múltiplo campo de observação”. Situa-se portanto entre aqueles campos históricos que são definidos por uma “abordagem” específica – por um modo próprio de fazer a história, de observar os fatos ou de analisar as fontes. Resumindo em duas indagações que a tornam possível, a História Comparada pergunta simultaneamente: “o que observar?” e “como observar?”. E dá respostas efetivamente originais a estas duas indagações.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45pt;">Para compreender de que maneira a História Comparada responde a estas duas questões fundamentais, será imprescindível mergulharmos na compreensão deste gesto fundador – a “comparação” – que dá o próprio nome e uma substância específica a esta modalidade historiográfica. Antes de mais nada, consideraremos que “comparar” é uma maneira bastante específica de propor e pensar as questões. Freqüentemente nos defrontamos com esta forma intuitiva de abordagem quando nos deparamos na vida cotidiana com situações novas, e neste caso a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">comparação</i> nos ajuda a precisamente a compreender a partir de bases mais conhecidas e seguras aquilo que nos é apresentado como novo, seja identificando semelhanças ou diferenças. Comparar é um gesto espontâneo, uma prática que o homem exercita nas suas atividades mais corriqueiras, mas que surge com especial intensidade e necessidade quando ele tem diante de si uma situação nova ou uma realidade estranha. </div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45pt;">A comparação neste momento – diante do desafio ou da necessidade – impõe-se como método. Trata-se de iluminar um objeto ou situação a partir de outro, mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda esta prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades, a perceber variações de um mesmo modelo. Por vezes, será possível ainda a prática da “iluminação recíproca”, um pouco mais sofisticada, que se dispõe a confrontar dois objetos ou realidades ainda não conhecidos de modo a que os traços fundamentais de um ponham em relevo os aspectos do outro, dando a perceber as ausências de elementos em um e outro, as variações de intensidade relativas à mútua presença de algum elemento em comum. Será por fim possível, se o que se observa são dois objetos ou realidades dinâmicas em transformação, verificar como os elementos identificados através da comparação vão variando em alguma direção mais específica – de modo que se possa identificar um certo padrão de transformações no decurso de um tempo – e, mais ainda, se temos duas realidades contíguas, como uma influencia a outra, e como as duas a partir da relação recíproca terminam por se transformar mutuamente.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45pt;">Já nestes níveis de análise, a comparação não mais se mostra um mero gesto intuitivo, de domínio comum e cotidiano, mas sim um método próprio que oferece àquele que a utiliza determinadas potencialidades e certos limites, forçando-o antes de mais nada a definir o que pode e o que não pode ser comparado, a refletir sobre as condições em que esta comparação pode se estabelecer, a formular estratégias e modos específicos para a observação mais sistematizada das diferenças e variações, acrescentando-se ainda a necessária reflexão de que alguns tipos de objetos permitem este ou aquele modo de observação e de análise, e não outro. Seria oportuno, aqui, indagar pela natureza do momento em que o gesto comparativo passa da prática intuitiva e espontânea para outro patamar, onde se erige em método, em escolha tornada consciente e acompanhada de autocrítica, de procedimentos, de sistematização.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">Evocaremos neste momento a contribuição bastante específica de Marc Bloch para a História Comparada, que nas mãos do historiador francês torna-se antes de tudo uma “História Comparada Problema”. Para além desta introdução fundamental da História Comparada no ambiente da “História-Problema” proposto pelos Annales, Bloch teve grande importância como sistematizador do método comparativo de maneira geral, seja a partir de suas considerações teóricas – expressas em dois textos importantes<a href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=7343343578353306486#_ftn1" name="_ftnref1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[1]</span></span></span></span></a> – seja a partir de suas realizações práticas. Será imprescindível compreender, neste caso, o seu esforço de sistematização – este que hoje pode beneficiar os historiadores comparatistas de diversificadas vertentes. </div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">Para melhor clarificar os conceitos fundacionais relacionados à questão da História Comparada, de acordo com a via que se consolidaria a partir de Marc Bloch, convém antes de mais nada distinguir a “História Comparada “propriamente dita – vista aqui como um campo intradisciplinar específico – do “comparativismo histórico”, em sentido mais amplo.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45pt;">De um modo ou de outro, o historiador sempre utilizou a comparação como parte de seus recursos para compreender as sociedades no tempo, embora não necessariamente como um método sistematizado. De todo modo, poderemos lembrar aqui a formulação de Paul Veyne, que retoma um pressuposto de Giambatista Vico e considera que “toda história é história comparada” (VEYNE, 1983)<a href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=7343343578353306486#_ftn2" name="_ftnref2" style="mso-footnote-id: ftn2;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[2]</span></span></span></span></a>. Sobre esta questão, diremos que – mesmo quando nos referimos ao comparativismo como método – é evidente que poderemos sempre atribuir um sentido mais específico ao “comparativismo histórico” como abordagem possível, e não como algo que estaria implícito a todo o “fazer histórico” consoante a fórmula enunciada por Veyne. “Comparar”, “elencar semelhanças e diferenças” e “estabelecer analogias” são naturalmente ações tão familiares ao historiador como contextualizar os acontecimentos ou dialogar com as suas fontes. Mas para falarmos em um “método comparativo” é preciso, tal como já pontuamos no início deste ensaio, ultrapassar aquele uso mais próximo da intuição e da utilização cotidiana da comparação para alcançar um nível de observação e análise mais profundo e sistematizado, para o qual “o que se pode comparar” e o “como se compara” tornam-se questões relevantes, fundadoras de um gesto metodológico.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45pt;">Posto isto, já para definir a “História Comparada” como um campo específico, consideraremos ainda que será preciso se ter em vista uma modalidade que não apenas lança mão do “comparativismo histórico” como método – por exemplo, como método aplicável à análise de determinados tipos de fontes ou séries de acontecimentos – e sim como uma modalidade que estabelece campos de trabalho ou de observação muito bem delineados. A História Comparada, antes do mais, seria uma modalidade historiográfica que atua de forma simultânea e integradora sobre campos de observação diferenciados e bem delimitados – campos, a bem dizer, que ela mesma constitui e delineia. Para o caso daquele tipo de História Comparada que coloca em confronto duas realidades nacionais diferenciadas, estes campos podem ter até suas bases já admitidas por antecipação, é verdade, mas sempre é bom se ter em vista que os universos a serem comparados nas ciências humanas são sempre de algum modo construções do próprio historiador ou do cientista social – não são necessariamente conjuntos já dados ou passíveis de serem admitidos previamente, frisaremos aqui.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">Esta bem fundamentada perspectiva de comparativismo histórico tem como um de seus marcos teóricos mais importantes o célebre VI° Congresso Internacional de Ciências Históricas de Oslo (1928), no qual Marc Bloch desenvolveria uma conferência – logo transformada no já mencionado artigo – que objetivava refletir precisamente sobre as potencialidades do estudo comparado na História (BLOCH, 1928). Na verdade, estas considerações teóricas de Bloch sobre o comparativismo histórico podem ser consideradas uma decorrência de sua primeira realização prática neste sentido: a obra <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Os Reis Taumaturgos</i> (BLOCH, 1993), que havia sido publicada alguns anos antes, em 1924. Será oportuno retomarmos, neste momento, as reflexões de Marc Bloch sobre o comparativismo histórico, pronunciadas no Congresso de Oslo.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">Em primeiro lugar, Marc Bloch procura fixar os requisitos fundamentais sobre os quais poderia ser constituída uma História Comparada que realmente fizesse sentido. Sua conclusão é a de que dois aspectos irredutíveis seriam imprescindíveis: de um lado uma certa similaridade dos fatos, de outro, certas dessemelhanças nos ambientes em que esta similaridade ocorria. A semelhança e a diferença, conforme se vê, estabelecem aqui um jogo perfeitamente dinâmico e vivo: sem analogias, e sem diferenças, não e possível se falar em uma autêntica História Comparada. De igual maneira, Bloch visualizou dois grandes caminhos que poderiam ser percorridos pelos historiadores dispostos a lançar mão do comparativismo na História. Seria possível comparar sociedades distantes no tempo e no espaço, ou, ao contrário, sociedades com certa contigüidade espacial e temporal. No caso da comparação de sociedades distanciadas no espaço e no tempo tinha-se uma situação singular: a ausência de interinfluências entre as duas sociedades examinadas. Neste caso, o trabalho consistiria basicamente na busca de analogias – situação para a qual poderemos exemplificar com a possibilidade de estabelecer uma comparação entre o que se poderia chamar de “feudalismo europeu” e o que poderia ser denominado “feudalismo japonês”, duas realidades afastadas no espaço, em uma época em que não poderiam transmitir influências uma à outra<a href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=7343343578353306486#_ftn3" name="_ftnref3" style="mso-footnote-id: ftn3;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[3]</span></span></span></span></a>. Os riscos típicos deste caminho representado pela possibilidade de comparação entre sociedades não-contíguas é naturalmente o da falsa analogia ou do “anacronismo” – transplante de um modelo válido para uma época ou espacialidade social para um outro contexto histórico onde o modelo não tenha sentido real, correspondendo apenas a uma ficção estabelecida pelo próprio historiador.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45pt;">Quando nos referimos a “sociedades contíguas”, teremos em vista que o próprio conceito de contigüidade muda de uma época em relação à outra. Na época da mundialização, e mais ainda, no período da globalização, duas sociedades afastadas espacialmente tem possibilidades imediatas de inter-influência, não correspondendo à situação estanque que se tinha nos períodos em que a comunicação era menos imediata. De igual maneira, cabe salientar que a comparação não precisa relacionar necessariamente realidades nacionais distintas, podendo corresponder também a ambientes sociais distintos, que se pretenda comparar.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">Posto isso, consideraremos o segundo grande caminho apontado por Marc Bloch para uso da comparação histórica – na verdade aquele que ele mesmo preconizava como preferível. Trata-se aqui de comparar sociedades próximas no tempo e no espaço, que exerçam influências recíprocas. A vantagem de comparar sociedades contíguas está precisamente em abrir a percepção do historiador para as influências mútuas, o que também o coloca em posição favorável para questionar falsas causas locais e esclarecer, por iluminação recíproca, as verdadeiras causas, interrelações ou motivações internas de um fenômeno e as causas ou fatores externos. Será importante ainda salientar que, para empreender este caminho da História Comparada que atua sob realidades históricas contíguas – por exemplo, duas realidades nacionais sincrônicas – o historiador deve estar apto a identificar não apenas as semelhanças como também as diferenças. O exemplo mais concreto que Marc Bloch pôde oferecer desta abordagem, já aplicada a uma investigação histórica específica, foi a sua primorosa obra de 1924: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Os Reis Taumaturgos</i> (1993). Ao mesmo tempo, o artigo teórico elaborado em 1928 pelo historiador francês tornou-se uma espécie de pedra fundamental da História Comparada, no qual já veremos claramente os caminhos privilegiados por Marc Bloch no interior desta modalidade historiográfica em formação:</div><div class="MsoNormal" style="margin: 12pt 4.95pt 0pt 3cm; text-align: justify;">“<span style="font-size: 11pt;">Estudar paralelamente sociedades vizinhas e contemporâneas, constantemente influenciadas umas pelas outras, sujeitas em seu desenvolvimento, devido a sua proximidade e a sua sincronização, à ação das mesmas grandes causas, e remontando, ao menos parcialmente, a uma origem comum</span>” (BLOCH, 1928: 19)</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 16pt 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">O que se havia realizado em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Os Reis Taumaturgos</i> senão este modelo? Teremos aqui duas sociedades medievais vizinhas – a francesa e a inglesa – ambas com um imaginário em comum e com repertórios de representações similares, que serão investigados pelo historiador à luz de um mesmo problema comum que os atravessa: o da crença popular no poder taumatúrgico de seus reis. As duas sociedades se inter-influenciam; as duas cortes que se beneficiam das representações taumatúrgicas – a capetíngia na França e a plantageneta na Inglaterra – rivalizam uma com a outra, movimentam-se, mesmo, no contexto desta iluminação e rivalidade recíprocas. O material histórico adequa-se, portanto, ao caminho proposto pelo modelo preconizado por Bloch: duas sociedades sincrônicas que guardam entre si relações interativas, e que juntas oferecem uma visão clara de um problema comum que as atravessa. Sem uma ou outra, no mero âmbito de uma história nacional, não poderia ser compreendida a questão da apropriação política do imaginário taumatúrgico que se desenvolve nas monarquias européias, das origens em comum deste mesmo imaginário, das intertextualidades que se estabelecem, do confronto do modelo taumatúrgico com outros modelos de realeza. Assim, História Comparada das realezas francesa e inglesa através do imaginário taumatúrgico contribui, de algum modo, para compreender a Europa de maneira mais plena. </div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;">Desde a época de Bloch, e sobretudo a partir da segunda metade do século XX, muitas foram as contribuições enquadráveis no âmbito da História Comparada. Pode-se dizer que o enriquecimento da História Comparada enquanto campo que já começa a se definir em meados do século dá-se em dois níveis: por um lado com o crescimento de diálogos interdisciplinares da História com outros campos do saber, como a Antropologia, a Sociologia, a Geografia e a Economia; por outro lado, através de uma maior variedade de escalas de observação a partir das quais se organizam as diversas perspectivas de exercício do comparativismo histórico. A variação na escala de comparação – o âmbito civilizacional, nacional, regional, local, intra-urbano, e assim por diante – desemboca, por fim, na possibilidade de comparar grupos étnicos ou identitários, práticas culturais mais específicas, realidades literárias, havendo mesmo os trabalhos de historiografia comparada, como um campo a mais de interesses.</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify; text-indent: 45.1pt;"><br />
</div><div style="mso-element: footnote-list;"></div><div style="mso-element: footnote-list;">Leia a continuação deste artigo em: <a href="http://ning.it/igoCy1">http://ning.it/igoCy1</a></div><div style="mso-element: footnote-list;"></div><div style="mso-element: footnote-list;"><br />
[BARROS, José D'Assunção. "História Comparada - da contribuição de Marc Bloch à constituição de um moderno campodisciplinar". História Social (Revista da Unicamp). vol.13, 2007, 7-21. <a href="http://ning.it/igoCy1">http://ning.it/igoCy1</a></div><div style="mso-element: footnote-list;"></div><div style="mso-element: footnote-list;"></div><div style="mso-element: footnote-list;"></div><div style="mso-element: footnote-list;"><hr align="left" size="1" width="33%" /></div><div id="ftn1" style="mso-element: footnote;"><div class="MsoFootnoteText" style="margin: 0cm 0cm 1pt; text-align: justify;">Notas:</div><div class="MsoFootnoteText" style="margin: 0cm 0cm 1pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoFootnoteText" style="margin: 0cm 0cm 1pt; text-align: justify;"><a href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=7343343578353306486#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[1]</span></span></span></span></a><span style="font-size: x-small;"> (</span><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-size: 8pt;">1</span></b><span style="font-size: x-small;">) BLOCH, 1928 : p.15-50. (</span><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-size: 8pt;">2</span></b><span style="font-size: x-small;">) BLOCH, 1930.</span></div></div><div id="ftn2" style="mso-element: footnote;"><div class="MsoFootnoteText" style="margin: 0cm 0cm 1pt; text-align: justify;"><a href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=7343343578353306486#_ftnref2" name="_ftn2" style="mso-footnote-id: ftn2;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[2]</span></span></span></span></a><span style="font-size: x-small;"> Referindo-se a um outro âmbito de questões, também Witold Kula ressalta a idéia de que nenhum trabalho científico, por limitado e monográfico que seja, pode dispensar totalmente o método comparativo, o que inclui a História (KULA, 1973: 571).</span></div></div><div id="ftn3" style="mso-element: footnote;"><div class="MsoFootnoteText" style="margin: 0cm 0cm 1pt; text-align: justify;"><a href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=7343343578353306486#_ftnref3" name="_ftn3" style="mso-footnote-id: ftn3;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[3]</span></span></span></span></a><span style="font-size: x-small;"> Um exemplo de História Comparada envolvendo sociedades distanciadas, agora relativamente às suas temporalidades, está na pesquisa de Robert Darnton sobre a Censura, a qual o historiador americano examina em três espaço-tempos bem diversificados: A França do Antigo Regime, a Índia britânica do século XIX, e a Alemanha Oriental do século XX (cf. “Entrevista com Robert Darnton” in PALLARES-BURKE, 2000).</span></div></div>José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-18022353089833312242011-01-22T20:01:00.001-08:002011-01-22T20:01:46.568-08:00Geo-HistóriaA Geo-História é o campo histórico que estuda a vida humana no seu relacionamento com o ambiente natural e com o espaço concebido geograficamente. É com Fernando Braudel (1949) que este campo começa a se destacar, passando a se definir e a se encaixar nos estudos históricos de “longa duração” . Por outro lado, a Geo-História pode se dedicar mais especificamente ao estudo de um aspecto transversal no decurso de uma duração mais longa, como fez Le Roy Ladurie ao realizar uma "História do Clima" (1967) . Nestes casos, ocorre muito freqüentemente que o geo-historiador tome para fontes, além da documentação mais tradicional, os próprios vestígios da Natureza (Ladurie esteve atento aos “anéis” que se formam nos caules das árvores de vida longa, considerando que, de acordo com conclusões já estabelecidas pelos botânicos, um anel estreito significa um ano de seca, e um anel largo um ano beneficiado por chuvas abundantes). Conforme se vê, a Geo-História deve dialogar necessariamente não só com a Geografia, como também com outras ciências da natureza (a exemplo da Botânica ou da Ecologia).<br />
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Nas décadas recentes começaram a surgir outras modalidades historiográficas próximas à Geo-História,como por exemplo a História Ecológica, que é já uma demanda das últimas décadas, assombradas pelos desastres naturais, pelas devastações florestais, pela ameaça de extinção de inúmeras espécies animais, pelo aumento da poluição e pelo crescimento desordenado nas cidades. A História Ecológica é de certo modo uma Geo-História acrescida de uma preocupação ecológica fundamental<br />
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Vamos retornar à primeira metade do século XX para entender a Geo-História a partir de um novo impulso de interdisciplnaridade que, por aquela época, acabava de surgir entre os historiadores franceses ligados à escola dos Annales e alguns geógrafos, principalmente os ligados à escola do geógrafo francês Vidal de la Blache. Partindo dos primeiros empreendimentos de Lucien Febvre, que publicara uma obra intitulada "A Terra e a Evolução Humana" (1922), a Geo-História começa a tomar forma como uma nova possibilidade de campo histórico, até se delinear mais claramente com uma das mais emblemáticas obras que foram constituídas na conexão deste campo histórico com outros, tais como a História Econômica e a História Política. Referimo-nos à célebre obra "O Mediterrâneo", de Fernando Braudel.<br />
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Lucien Febvre já havia oferecido à comunidade historiográfica, com "A Terra e a Evolução Humana" (1922), as primeiras experiências voltadas para a aplicação das concepções espaciais derivadas da escola geográfica de Vidal de La Blache - muito mais voltadas para a idéia de um "possibilismo geográfico" do que para o "determinismo historiográfico" que se via,então, em outras correntes geográficas. Mas seria Fernando Braudel o primeiro a aplicar estas novas noções a um objeto historiográfico mais específico e de maior magnitude.<br />
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"O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Felipe II" (1945) – obra que se celebrizou por entremear para um mesmo objeto o exame de três temporalidades distintas (a longa, a média e a curta duração), cada qual com seu ritmo próprio – traz precisamente no primeiro volume, dedicado ao estudo de uma longa duração na qual tudo se transforma muito lentamente, um modelo que marcaria toda uma geração de historiadores: a idéia de estabelecer como ponto de partida da análise historiográfica o espaço geográfico.<br />
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Nesta obra de Braudel, como em Vidal de La Blache, o “meio” e o “espaço” são noções perfeitamente equivalentes. Oscilando entre a idéia de que o meio determina o homem, e a de que os homens instalam-se no meio natural transformando-o de modo a convertê-lo na principal base de sua vida social, Braudel termina por associar intimamente a ‘civilização’ e a ‘macro-espacialidade’. Em Mediterrâneo ele afirma que, “uma civilização é, na base, um espaço trabalhado, organizado pelos homens e pela história” (BRAUDEL, 1966, p.107), e em A Civilização Material do Capitalismo (1960) ele reitera esta relação sob a forma de uma indagação: “o que é uma civilização senão a antiga instalação de uma certa humanidade em um certo espaço?” (BRAUDEL, 1967, p.95). Esta relação íntima entre a sociedade e o meio geográfico (no sentido lablachiano) estaria precisamente na base da formação de uma nova modalidade historiográfica: a Geo-História.<br />
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A Geo-História introduz a geografia como grade de leitura para a história (DOSSE, 1994, p.136), e ao trazer o espaço para primeiro plano e não mais tratá-lo como mero teatro de operações – e sim como o próprio sujeito da História – possibilita o exame da longa duração, esta história quase imóvel que se desenrola sobre uma estrutura onde os elementos climáticos, geológicos, vegetais e animais encontram-se em um ambiente de equilíbrio dentro do qual se instala o homem. Rigorosamente falando, não é tanto com a idéia de um “determinismo geográfico” que Braudel trabalha em O Mediterrâneo, e sim com a idéia de um ‘possibilismo’ inspirado precisamente na geografia de Vidal de La Blache. Afora isto, o empreendimento a que o historiador francês se propõe nesta obra paradigmática é o de realizar uma ‘espacialização da temporalidade’, e mais tarde ele aprimorará também uma ‘espacialização da economia’, chegando ao conceito de “economias-mundo” que já se encontra perfeitamente elaborado e sustentado em exemplos históricos com A Civilização Material do Capitalismo.<br />
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O objeto do primeiro volume de O Mediterrâneo – que representa a grande originalidade desta obra dividida em três partes que se referem a cada uma das três temporalidades que marcam os ritmos da história – é a relação entre o Homem e o Espaço. É esta relação que ele pretende recuperar através de “uma história quase imóvel ... uma história lenta a desenvolver-se e a transformar-se, feita muito freqüentemente de retornos insistentes, de ciclos sem fim recomeçados” (BRAUDEL, 1969, p.11). A interação entre o Homem e o Espaço, as suas simbioses e estranhamentos, as limitações de um diante do outro, tudo isto não constitui propriamente a moldura do quadro que Braudel pretende examinar, mas o próprio quadro em si mesmo. Eis aqui o primeiro ato deste monumental ensaio historiográfico, e é sobre esta história quase-imóvel de longa duração – a temporalidade espacializada onde o tempo infiltra-se no solo a ponto de quase desaparecer – que se erguerá o segundo ato, a ‘média duração’ que rege os “destinos coletivos e movimentos de conjunto”, trazendo à tona uma história das estruturas que abrange desde os sistemas econômicos até as hegemonias políticas, os estados e sociedades. Trata-se de uma história de ritmos seculares, e não mais milenares, e depois dela surgirá o último andar – a ‘curta duração’ que rege a história dos acontecimentos, formada por “perturbações superficiais, espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas” (BRAUDEL, 1969, p.21).<br />
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É fácil perceber como o sujeito da história, nas duas obras monumentais de Braudel, transfere-se do homem propriamente dito para realidades que lhe são muito superiores: o ‘Espaço’, no Mediterrâneo; e a ‘Vida Material’, na Civilização Material do Capitalismo. São estes grandes sujeitos históricos que abrem o campo de possibilismos para as subseqüentes histórias dos ‘movimentos coletivos’ e dos ‘indivíduos’. Tal como observa Peter Burke em uma sintética mas lúcida análise de O Mediterrâneo, um dos objetivos centrais de Braudel nesta obra é mostrar que tanto a história dos acontecimentos como a história das tendências gerais não podem ser compreendidas sem as características geográficas que as informam e que, de resto, tem a sua própria história longa:<br />
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“O capítulo sobre as montanhas, por exemplo, discute a cultura e a sociedade das regiões montanhosas, o conservadorismo dos montanheses, as barreiras socioculturais que separam os homens da montanha dos homens da planície, e a necessidade de muitos jovens montanheses emigrarem, tornando-se mercenários” (BURKE, 1991, p.50)<br />
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'O Mediterrâneo e Felipe II', enfim, é a insuperável obra prima em que Braudel pretendeu demonstrar que o tempo avança com diferenças velocidades, em uma espécie de polifonia na qual a parte mais grave coincide com a história quase imóvel do Espaço, e onde temporalidade e espacialidade praticamente se convertem uma à outra. Paradoxalmente, apesar de ter sido o primeiro a propor uma “história quase imóvel” como um dos níveis de análise, outra grande contribuição de O Mediterrâneo foi a de mostrar que tudo está sujeito a mudanças, ainda que lentas, o que inclui o próprio Espaço. De fato, a leitura de O Mediterrâneo nos mostra que o espaço definido por este grande Mar era muito maior no século XVI do que nos dias de hoje, pelo simples fato de que o transporte e a comunicação eram muito mais demorados naquele período . Com isto, percebe-se que a espacialidade dilata-se ou comprime-se no tempo conforme consideremos um período ou outro nos quais se contraponham diferentes possibilidades dos homens movimentarem-se no espaço. Mais uma vez, homem, espaço e tempo aparecem como três fatores indissociáveis.<br />
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Se o Espaço está sujeito aos ditames do Tempo, por outro lado a Temporalidade também está sujeita aos ditames do Espaço e do meio geográfico. Apenas para dar um exemplo assinalado por François Dosse, o mesmo Mediterrâneo de Braudel também nos mostra um mundo dicotomicamente dividido em duas estações: enquanto o verão autoriza o tempo da guerra, o inverno anuncia a estação da trégua – uma vez que “o mar revolto não permite mais aos grandes comboios militares se encaminharem de um ponto ao outro do espaço mediterrânico: é, então, o tempo dos boatos insensatos, mas também o tempo das negociações e das resoluções pacíficas” (DOSSE, 1994, p.140). Desta maneira o Clima (um aspecto físico do meio geográfico) reconfigura o Espaço, e este redefine o ritmo de tempos em que se desenrolam as ações humanas. Espaço, Tempo e Homem.<br />
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A obra de Fernando Braudel também nos permite iniciar outra reflexão que retomaremos mais adiante, e que se refere à consideração de uma diferença fundamental entre “duração” e “recorte de tempo”. Braudel ousou estudar o ‘grande espaço’ no ‘tempo longo’. Quando falamos em “tempo longo” referimo-nos a uma “duração” – ou antes: a um determinado ‘ritmo de duração’. O tempo longo é o tempo que se alonga, o tempo que parece passar mais lentamente. Não devemos confundir “longa duração” com “recorte extenso”. O recorte de Braudel em O Mediterrâneo – pelo menos o recorte deste trecho da História de que ele se vale para orquestrar polifonicamente as três durações distintas – é o reinado de Felipe II. Braudel não estudou nesta obra um ‘recorte temporal estendido’. Ele estudou um recorte tradicional, que cabe em uma ou duas gerações e que coincide com a duração de um reinado, mas examinando através deste recorte a passagem do tempo em três ritmos diferentes. Uma outra coisa seria examinar um determinado espaço – grande ou pequeno – em um recorte extenso ou estendido. Dito de outra forma, o ritmo de tempo que o historiador sintoniza em sua análise de uma determinada realidade histórico-social nada tem a ver com o “recorte temporal historiográfico” escolhido pelo historiador.<br />
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Com relação ao seu recorte espacial, Fernando Braudel havia considerado que o Mediterrâneo possuía sob certos aspectos uma unidade que transcendia as unidades nacionais que se agrupavam em torno do grande “mar interior”, e que ultrapassava a polarização política entre os dois grandes impérios da época: o Espanhol e o Turco. Por outro lado, o historiador francês precisou lidar com a ‘unidade na diversidade’, e descreve dezenas de regiões autônomas cujos ritmos convergem para um ritmo supralocal. O mundo mediterrânico que ele descreve é constituído por um grande complexo de ambientes – mares, ilhas, montanhas, planície e desertos – e que se vê partilhado em uma pluralidade de regiões a terem sua heterogeneidade decifrada antes de ser possível propor a homogeneidade maior ditada pelo tipo de vida sugerido pelo grande Mar. Este foi o desafio enfrentado por Braudel.<br />
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[Leia o artigo completo, do qual este texto foi adaptado, e compreenda melhor a interdisciplinaridade entre História e Geografia, acessando: <span style="font-family: "Times New Roman"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><a href="http://ning.it/eVVbrn">http://ning.it/eVVbrn</a></span>]<br />
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[BARROS, José D'Assunção. "Geografia e História: uma interdisciplinaridade mediada pelo espaço" in Geografia - revista da Universidade Estadual de Londrina. vol.19, n°3, 2010. p.67-84]<br />
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Sobre a Geo-História, leia também o livro "O Campo da História" (Petrópolis: editora Vozes, 2011, 8a edição).José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-21864268971324649372011-01-19T16:09:00.001-08:002011-01-22T09:41:18.263-08:00História das Idéias<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">A História das Idéias é um domínio que conquistou sua perenidade, no quadro de alternativas historiográficas, desde princípios do século XX. Passou por variações no que se refere às concepções das diversas gerações de historiadores das idéias, e conheceu momentos de maior ou menor efervescência no debate historiográfico e no mercado editorial, mas sem sombra de dúvida conquistou um lugar bastante privilegiado no Campo da História. No decorrer século XX, a historiografia pôde assistir ao desenrolar de uma rica trajetória que parece ter partido de uma História das Idéias ainda desencarnada de um contexto social – e que atinge a sua proeminência entre as décadas de 1940 e 1950 – até se chegar a uma verdadeira História Social das Idéias, na qual se mostra tarefa primordial do historiador compreender e constituir um contexto social adequado antes de se tornar íntimo das idéias que pretende examinar.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Nosso objetivo, neste pequeno texto de apresentação para esta modalidade historiográfica, não será o de recuperar na sua inteireza a complexa trajetória deste campo histórico, nem o de pontuá-la com exemplos exaustivos, mas sim o de vislumbrar os diálogos deste domínio que é chamado de História das Idéias com outros campos históricos – sejam eles dimensões, abordagens ou domínios históricos. Naturalmente que, dada a natureza dos seus objetos, a História das Idéias sintoniza francamente ou com a História Cultural, ou com a História Política, sendo estes os principais campos históricos que se colocam aqui em diálogo (o que naturalmente não exclui ainda a possibilidade de uma História das Idéias Econômicas). Às vezes esse diálogo é tão intenso que certos setores da História das Idéias dão mesmo a impressão de serem domínios que se desdobram destas dimensões que são habitualmente denominadas História Cultural e História Política.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Para o caso dos diálogos com a História Política, basta pensar nos trabalhos que investigam mais diretamente as idéias políticas, entre outros. Um diálogo mais intenso com a História Cultural ou com a História Política, ou com ambas, aparece bem explicitamente no primeiro dos limiares possíveis para a História das Idéias: aquele em que são examinadas as idéias relacionadas ao pensamento sistematizado de indivíduos específicos (por exemplo, os tratados filosóficos, as teorias políticas escritas por grandes ou pequenos pensadores políticos, ou as concepções estéticas dos artistas e literatos de diversos tipos e níveis). O mesmo ocorre quando a História das Idéias volta-se para o estudo de movimentos literários e filosóficos tratando-os como tendências que abrangem grupos mais amplos de pensadores (o Verismo na Literatura, ou o Iluminismo na política) e também quando são examinadas as flutuações de pensamento ou opinião em torno de idéias mais específicas como a “república”, a “democracia”, a “liberdade” (ou quaisquer outras). Até este limiar, tem-se um domínio que muitos preferem também chamar de História Intelectual (por exemplo <span style="font-family: "Times New Roman"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">DARNTON, 1990: 175-197</span>).</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Prosseguindo em seu campo de possibilidades, no momento em que passa a investir em uma preocupação mais sistemática de examinar as ideologias e a difusão de idéias, a História das Idéias começa a se interconectar não apenas com a História Cultural como também com a História Social em seu sentido mais stricto. Muitos preferem falar aqui de algo mais específico como uma História Social das Idéias, mas é importante ressaltar que – se estivermos empregando aquele sentido mais amplo de “História Social” onde toda História nos dias de hoje é uma “história social” – teremos por força de considerar que toda boa história das idéias, tal como a entende a moderna historiografia profissional, é uma História Social das Idéias. A propósito disto, é bom ressaltar que, nos dias de hoje – mesmo quando examina as idéias estéticas de um artista ou literato – é muito raro que algum historiador profissional se proponha a empreender aquele já mencionado tipo de História das Idéias que as concebe desencarnadas de seu contexto social, tal como o fizeram muitos historiadores na primeira metade do século XX.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">A partir do limiar em que o Historiador das Idéias avança pela investigação de idéias que já se apresentam desencarnadas de autoria – ou porque estão mergulhadas na chamada cultura popular, ou porque se referem à coletividade em sentido mais amplo – sua prática historiográfica começa a se inserir em um profícuo diálogo com aqueles setores da História Cultural que investigam as visões de mundo, representações e expressões coletivas. Também aqui, na medida em que estas idéias começam a tocar em algo como as mentalidades ou o “inconsciente coletivo”, poderemos começar a vislumbrar os diálogos da História das Idéias com dimensões como a História das Mentalidades ou como a Psico-História.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Um esquema complexo poderá ajudar a apreender o campo das possibilidades temáticas pertinentes com a História das Idéias:</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Quadro 1: Âmbitos de estudos pertinentes à História das Idéias (ver o esquema no artigo em referência)</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Podemos situar esquematicamente os diversos objetos de interesse antes citados. Da esquerda para a direita – sugerindo uma direção do mais concreto e singular ao âmbito mais coletivo – teríamos os estudos de idéias específicas, no sentido transversal . Pode-se estudar as variações na percepção das idéias de Igualdade ou Liberdade, por exemplo, ou ainda relações entre duas ou mais idéias, como seria o caso de um estudo relacionando as relações entre os conceitos de ‘igualdade’ e ‘diferença’. Ao mesmo tempo, pode-se examinar tanto estas idéias em um contexto específico como percorrendo vários contextos históricos (o que irá requerer uma abordagem comparativa), da mesma forma em que também será possível examiná-las nos âmbitos do intratexto e do intertexto. Sobre a análise intratextual e intertextual das idéias, num caso o historiador das idéias estará trabalhando com textos singulares e específicos, e no outro caso estará examinando dois ou mais textos em relação intertextual. Em ambas as situações, recairemos em um estudo dos discursos para o qual o historiador das idéias poderá se valer de diversificados métodos que vão desde as técnicas de análise de discurso até as abordagens semióticas e lingüísticas destinadas a captar a significação estrutural dos textos. No esquema proposto, assinalamos campos separados para o estudo das idéias em si mesmas e para os estudos em que estas idéias estarão sendo analisadas em articulação às expressões culturais que as animam – como por exemplo o estudo de uma idéia em um texto literário ou ensaístico específico, em uma obra dramatúrgica, em um ciclo de canções, e assim por diante.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Das idéias tomadas singularmente, passamos em seguida aos sistemas de pensamento mais amplos – aqueles que se verificam ao nível do ‘pensamento sistematizado’ de um autor, e aqueles que já correspondem aos grandes movimentos – tudo isto se abrindo a possibilidades de abordagens relacionadas às idéias políticas, filosóficas, estéticas ou científicas . Em um nível maior de abrangência, poderiam ser citadas inúmeras obras que buscam trazer dentro de algum contexto específico um panorama de idéias relacionadas a uma determinada dimensão (política, filosófica, estética), como fez Quentin Skinner – um dos mais destacados historiadores das idéias – para o estudo das idéias políticas (SKINNER, 1996). O estudo dos grandes paradigmas científicos, na interconexão da História das Idéias com o domínio da História das Ciências – e também no seu diálogo interdisciplinar com a Filosofia da Ciência – vem a seguir. Para este caso, é relevante mencionar contribuições que vão das análises do “paradigma científico” em sentido mais amplo (Gaston Bachelar, Thomas Khun) aos paradigmas disciplinares, jurídicos, normativos, repressivos, tal como nos oferece em diversas de suas obras Michel Foucault Entre os estudos sobre as idéias inseridas em campos disciplinares específicos, podem ser citados, por exemplo, os próprios estudos de historiografia onde são discutidas as diversas idéias de história, seja no âmbito da produção específica de um autor ou no âmbito de correntes historiográficas mais amplas – cumprindo notar que existem também os estudos que investigam a interação entre as idéias historiográficas e os estilos narrativos.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">O campo dedicado ao estudo das Ideologias e da difusão de idéias, bem como o campo seguinte, já referido às idéias coletivas de longa duração – mas também às idéias que circulam em articulação a todo um âmbito de práticas culturais que escapam ao universo da cultura letrada – já começam a posicionar a História das Idéias diante de possíveis diálogos com a História das Mentalidades, que é segundo nossa classificação uma ‘dimensão histórica’. A História das Mentalidades, por outro lado, não deve ser confundida com a História das Idéias, ainda que entre elas haja uma possibilidade de intersecção – mais especificamente nas proximidades do limiar que assinala o âmbito dos inconscientes coletivos. Na verdade, a História das Mentalidades também se abre para possibilidades que vão muito além do domínio da História das Idéias, particularmente nas suas investigações relativas aos modos de pensar e de sentir no sentido mais abstrato , bem como na possibilidade de utilizar fontes seriais para verificar as lentas variações históricas em certos padrões mentais. Ao mesmo tempo, tal como já vimos, a maior parte dos estudos ambientados na História das Idéias relaciona-se a idéias que se concretizam de alguma forma em discursos, sistemas de pensamento, sistemas normativos, paradigmas interdisciplinares, e movimentos políticos ou de qualquer outra ordem.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Com relação às abordagens possíveis aos historiadores das idéias – aos seus métodos e fontes históricas possíveis – são empregadas as mais diversas abordagens, indo das variadas possibilidades de análise do discurso aos variados aportes trazidos pelos desenvolvimentos da Lingüística e da Semiótica. Mas um giro metodológico fundamental, certamente, terá sido aquele que – nos anos 1970 – relegou ao passado da historiografia a História das Idéias descarnada e descontextualizada que ainda podia ser vista nos anos 1940 e 1950. Foi com os “contextualistas” ingleses – sobretudo com os trabalhos de História das Idéias Políticas desenvolvidos por Quentin Skinner, John Dunn e John Pocock – que surge a proposta de que as idéias deveriam ser sempre e necessariamente relacionadas diretamente aos seus contextos de enunciação, uma vez que os ambientes históricos e culturais sempre influenciam extraordinariamente a escolha das questões a serem estudadas e, sobretudo, a formatação da própria linguagem mais específica dentro da qual um debate de idéias se realiza.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Desta maneira, seria tarefa primordial do historiador das idéias trazer à luz a linguagem original de um determinado circuito de idéias – evitando o anacronismo e aprofundando-se na adequada compreensão de suas sutilezas de significação – impondo deste modo a necessidade de recriar a temporalidade e o contexto inerente à própria obra. Trata-se, assim, para nos atermos ainda ao caso dos estudos sobre as idéias políticas, de ultrapassar a perspectiva intemporal que às vezes pode ser notada nas obras de historiadores das idéias e cientistas políticos das décadas anteriores, como ocorre por exemplo com as obras de Hannah Arendt. Ressalte-se ainda que, para o novo padrão de História das Idéias consolidado a partir dos contextualistas ingleses, seria importante não apenas reconstituir uma adequada relação entre texto e contexto como também situar a análise dentro de uma perspectiva de que as estruturas lingüísticas são fundamentais para a construção do pensamento de qualquer sujeito histórico – o que, portanto, coloca o historiador das idéias diante do desafio de que não é possível compreender uma idéia sem a plena consciência do momentum lingüístico dentro do qual esta idéia foi formulada.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Não menos importante para o historiador das idéias é perceber e dar a perceber a rede dentro da qual está inserido determinado autor “produtor de idéias” – investigando dentro desta rede tanto as influências que o autor recebe como a recepção de suas idéias pelos seus diversos contemporâneos. Importante examinar, ainda, os diálogos do “produtor de idéias” com toda uma rede intertextual que remonta à tradição dentro da qual seu pensamento se inscreve ou que, também de modo contrário, o contrasta com as tradições contra as quais as idéias do autor estabelecem uma relação de ruptura.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Em que pese a importância dos aportes metodológicos oferecidos pela corrente contextualista à História das Idéias, também não deixaram de ser criticados os exageros da crença de que seria rigorosamente possível recuperar o sentido original de uma obra, particularmente chamando-se atenção para o fato de que a interpretação dos textos e idéias de uma época não deixam de ser guiadas em alguma instância pelos valores do presente do próprio historiador que empreende a análise. Desta maneira, pairando criticamente entre a antiga ilusão de neutralidade e o permanente estado de alerta diante dos perigos do anacronismo, o historiador das idéias deveria se habilitar a trabalhar concedendo um espaço às vozes do passado sem pretender sufocar inutilmente a sua própria voz. Ao mesmo tempo, entre as impossibilidades de um mais-que-perfeito “contextualismo” e as pretensões de um “internalismo” que investe nas possibilidades de buscar exclusivamente dentro de um texto os seus significados – geralmente à luz das metodologias semióticas de origem estruturalista – o historiador das idéias deve fazer as suas escolhas possíveis.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">A História das Idéias, enfim, tem se revelado um dos mais produtivos domínios historiográficos, desenvolvendo importantes diálogos com dimensões historiográficas como a História Cultural, a História Social, a História das Mentalidades e a História Política, e também estabelecendo as suas conexões com inúmeros domínios historiográficos que vão da História das Ciências à História da Literatura, além de abrigar as mais diversas abordagens disponíveis para uma análise de suas fontes e contextos históricos. Dentro deste rico quadro de diálogos intradisciplinares e interdisciplinares, o seu interesse tende a se renovar incorporando os demais progressos e novidades que se dão no seio da historiografia e das demais ciências humanas.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">______________________________</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">Leia o artigo completo em: <a href="http://ning.it/gRqLEP">http://ning.it/gRqLEP</a></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: inherit;">[<span style="font-size: 12pt;">BARROS, José D'Assunção. "História das Idéias – em torno de um domínio historiográfico” in <i>Revista Locus – </i>Revista do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF. ISSN: <phone o:ls="trans" w:st="on">1413-3024</phone>. Vol. 13, n°1, 2007, p.41-64</span>]</span></div>José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-43528761860129147542011-01-11T19:54:00.000-08:002011-01-11T19:58:59.754-08:00História SocialEntre as inúmeras modalidades e especialidades nas quais se reparte a disciplina e a prática da História nos dias de hoje, talvez a dimensão historiográfica mais sujeita a oscilações de significado seja a da História Social. Modalidade historiográfica rica de interdisciplinaridades com todas as Ciências Sociais, e igualmente rica na sua possibilidade de objetos de estudo, a História Social abre-se de fato a variadas possibilidades de definição e delimitação que certamente interferem nos vários trabalhos produzidos pelos historiadores que atuam neste campo intradisciplinar. Veremos, a seguir, que há razões várias para essa oferta de uma diversidade de sentidos que vem à tona quando falamos em História Social.<br /><br />Para retornar aos primeiros usos da expressão “história social” na historiografia moderna, podemos fixar a História Social como modalidade que começa a aparecer de maneira auto-referenciada por ocasião do surgimento na França do Grupo dos Annales, e que naquele momento principia a se mostrar claramente construída – ao lado da História Econômica – por oposição à História Política tradicional. Nesta esteira inicial, houve quem direcionasse a expressão “História Social” para uma história das grandes massas ou para uma história dos grupos sociais de várias espécies (em contraste com a biografia dos grandes homens e com a História das Instituições a que tinha sido tão afeita à historiografia do século anterior).<br /><br />Também é evidente que a historiografia marxista da mesma época – seguindo os princípios norteadores que já no século XIX haviam sido indicados por Marx e Engels com vistas a uma nova filosofia da história – direcionava-se na mesma época para a elaboração de uma história preocupada com a conjunção dos aspectos econômicos e dos aspectos sociais. O que haveria de relevante a ser estudado não era certamente a história dos grandes homens, ou mesmo a história política dos grandes estados e das instituições, mas sim a historia dos ‘modos de produção’ – isto é, das bases econômicas e sociais que determinariam toda a vida social – e também a história das ‘lutas de classes’, isto é, das relações entre os diversos grupos sociais presentes em uma sociedade particularmente nas suas situações de conflito.<br /><br />A delimitação de um novo campo a ser chamado de “história social” surge portanto sob a forte influência destes dois campos de motivação que passaram a exercer profunda influência no seio da historiografia da primeira metade do século XX. De um lado vinham os ataques desfechados pelo grupo dos Annales contra aquilo que consideravam uma “velha história política”, de outro lado começavam a surgir as primeiras grandes obras da historiografia marxista, que cumpriam fielmente um programa de filosofia da história voltado para o econômico e para o social tal como havia sido proposto pelos fundadores do materialismo histórico a partir de meados do século XIX.<br /><br />A História Social, enfim, surgia no cenário historiográfico como campo relevante e definitivo a se estabelecer no âmbito das modalidades historiográficas que devem ser definidas pelas dimensões que são trazidas à tona quando o historiador se põe a examinar um processo histórico qualquer. Considerando aquilo que é colocado em evidência em uma determinada análise historiográfica – a Política, a Cultura, a Economia, as relações sociais – poderíamos ter respectivamente uma História Política, uma História Cultural, uma História Econômica, uma História Social, entre outras possibilidades.<br /><br />Tal como foi explicitado atrás, esta tendência da historiografia contemporânea a constituir e perceber a história social como campo relacionado a uma dimensão social específica liga-se ao fato de que, na primeira metade do século XX, os novos historiadores passam a opor um novo campo de interesses e enfoques à História Política do século XIX, o que de certo modo produzia uma aliança entre a História Social e a História Econômica na luta pelo estabelecimento de uma historiografia inteiramente nova no que se refere aos fazeres historiográficos do século anterior. À História Social e à História Econômica – como campos inauguradores de um novo fazer historiográfico – logo se juntariam a História Demográfica, a História Cultural, a História das Mentalidades, a História do Imaginário, e também uma nova História Política, não mais preocupada apenas com o poder institucional mas sim com todas as formas de poder que circulam em qualquer sociedade, inclusive os micropoderes que afetam a vida cotidiana e as relações familiares. O quadro das dimensões historiográficas, portanto, multidiversificava-se – e é neste contexto que pode ser definido um primeiro sentido para a História Social como uma instância historiográfica específica, no mesmo nível da História Política e da História da Cultura, apenas para dar dois exemplos.<br /><br />Por outro lado, outra indagação que surge nos dias de hoje, quando a expressão “história social” já multiplicou os seus sentidos e as suas aberturas de significados, é se a História Social deve ser considerada uma especialidade, com objetos próprios e definidos, ou se o “social” que ao seu nome se agrega como adjetivo acaba de um modo ou de outro por fazer coincidir o seu circuito de interesses com a sociedade – o que faria da História Social uma espécie de categoria transcendente que acaba perpassando ou mesmo englobando todas as outras especialidades da História.<br /><br />[...]<br /><br />Com relação às conexões da História Social com as ‘abordagens’ – isto é, com os sub-campos da historiografia que se referem a métodos e fazeres históricos – elas podem se estabelecer tanto no nível dos tratamentos qualitativos, como no nível dos tratamentos quantitativos. Da mesma forma, a História Social pode ser elaborada tanto do ponto de vista de uma Macro-História, que examina de um lugar mais distanciado aspectos como os movimentos sociais ou como a estratificação social de uma determinada realidade humana, como pode ser elaborada do ponto de vista de uma Micro-História, que se aproxima para enxergar de perto o cotidiano, as trajetórias individuais, as práticas que só são percebidas quando é examinado um determinado tipo de documentação em detalhe (por exemplo os inquéritos policiais, os documentos da Inquisição, mas também determinadas produções culturais do âmbito popular onde transpareçam elementos da vida cotidiana, das relações familiares, e assim por diante). As diferenças entre Macro-História e Micro-História ficarão mais claras no item relativo a este último tipo de abordagem.<br /><br />Não há limitações com relação ao que pode ser tomado como ‘fonte’ para a História Social. É possível encontrá-las tanto na documentação de origem privada como na documentação oficial, por assim dizer. O que estamos chamando de documentação privada são aquelas fontes produzidas ao nível das vidas individuais: os relatos de viagem, os diários pessoais, correspondências entre particulares (sejam indivíduos ilustres, ou não). Documentação oficial ou pública existe de todos os tipos: desde aquelas que oferecem dados massivos sobre uma sociedade – como os inventários e registros fiscais, censitários, testamentários, cartoriais, e paroquiais – até aquelas mais pontuais, referentes a situações específicas. Por exemplo, um material muito rico do tipo que estamos caracterizando como pontual encontra-se nos arquivos judiciais e policiais (ou seja, na documentação oriunda dos sistemas repressivos). Os historiadores sociais da atualidade têm precisamente prestado muita atenção a um vasto manancial de fontes que por muito tempo foi esquecido: os registros de polícia, os processos criminais – incluindo os depoimentos, as confissões e as sentenças proferidas sobre determinado caso – ou ainda, para os primeiros séculos da Idade Moderna, os processos da Santa Inquisição, que costumavam rastrear obsessivamente a vida dos indivíduos investigados, anotar a sua fala nos mínimos detalhes, registrar rigorosamente os dados de sua vida cotidiana com o fito de perceber qualquer indício de comportamento anormal ou mentalidade herética.<br /><br />É bastante irônico. Os indivíduos pertencentes às classes sociais privilegiadas dão-se a conhecer através dos mais diversificados tipos de fontes à disposição dos historiadores – na documentação política, falam através dos deputados e governantes que os representam; nas notícias de jornais, pode-se até mesmo percebê-los em flashes de sua vida privada nas colunas sociais; na arte letrada, iremos encontrá-los como sujeitos produtores de discurso ou como referentes dos discursos aí produzidos. Já ao pobre, e mais ainda ao excluído, só é dada uma voz quando ele comete um crime (ou quando é acusado de um). Os registros repressivos são paradoxalmente os espaços documentais mais “democráticos” – aqueles onde os historiadores poderão encontrar literalmente as vozes de todas as classes, mas sobretudo as dos indivíduos pertencentes aos grupos sociais menos privilegiados do ponto de vista político e econômico. É só quando comete um crime que o homem pobre adquire uma identidade para a História!<br /><br />Existem também, é preciso reconhecer, as fontes oriundas da cultura popular. Mas este tipo de fonte é mais propriamente relacionado com a História Cultural, como já vimos anteriormente. Também não deve ser desprezada a grande literatura. A leitura atenta da Comédia Humana de Balzac não é irrelevante para a compreensão da transição para o Capitalismo moderno, e a mesma recomendação de atentar para a importância da literatura como fonte para este período pode ser feita em relação às obras de Victor Hugo. A partir do momento em que a perspectiva realista abriu-se como uma possibilidade para os produtores de obras associadas à cultura letrada (literatura, mas também artes visuais), o homem comum também começou a chegar aos historiadores através destas fontes, embora elas sempre requeiram o cuidado de serem trabalhadas com a consciência de que, nestes casos, o homem pertencente aos extratos sociais menos privilegiados só recebe a sua voz ou a sua transparência através de um filtro, que é a sensibilidade do escritor ou do pintor pertencente a outro grupo social (fora, é claro, quando o próprio artista é oriundo do grupo social que pretende retratar).<br /><br />Voltemos às fontes de História Social que chegam aos historiadores através da violência. Além da violência individual, que aparece através do crime, existe ainda a violência coletiva, onde a massa anônima deixa suas marcas e conquista também a sua voz através de explosões de revolta que podem ficar registradas nas notícias de jornais, ou então nas descrições dos cronistas para os períodos mais antigos. As revoluções e os processos de transformação social, conforme já observou Thompson muito bem, são momentos privilegiados para a percepção das identidades de classe, inclusive as relativas aos grupos sociais menos privilegiados. São nestes momentos que as massas tornam-se visíveis, exprimindo-se através dos gestos do “protesto” (sejam protestos espontâneos, sejam os movimentos organizados, como as greves) ou da violência coletiva, que podem produzir desde badernas e motins até revoluções com repercussões sociais definitivas. São também nestes momentos que, eventualmente, emergem as lideranças populares – por vezes deixando suas vozes registradas em panfletos e em discursos que foram recolhidos pela imprensa ou pelos cronistas de uma época.<br /><br />No dia a dia, as massas populares são informes: executam como que emudecidas as tarefas que lhes permitirão assegurar a sua sobrevivência diária. A História conhece os camponeses do final da Idade Média, os operários urbanos das sociedades industriais, os escravos do Brasil Colonial ... sempre através dos registros massivos, que anotarão as datas de seus nascimentos, o número de filhos, a morte, a ocupação, e as modalidades de pertencimento (a um senhorio na Idade Média ou a uma indústria no mundo capitalista). Nestes momentos, as massas falam à História através de números que registram a sua laboriosa e sofrida passividade. Mas quando ocorre um motim, uma insurreição, um protesto público, pela primeira vez a massa de despossuídos será ouvida não através da passividade dos números silenciosos, e sim através dos gestos violentos e ruidosos.<br /><br />Os “sem-terra”, por exemplo, são habitualmente encontrados pelos historiadores que examinam a História contemporânea do Brasil nos documentos do censo, que os registram como camponeses despossuídos e desempregados. Mas quando eles ocupam uma fazenda, ou quando em protesto eles adentram um espaço que para eles não estaria previsto – como um shopping center – neste momento eles se transformam em atores sociais mais definidos e ganham espaço nas notícias de jornal e outras mídias. Quando a massa excitada derruba uma bastilha, entra subitamente na História não como uma estatística, mas como sujeito coletivo que realiza um ato, que produz ou se incorpora a um movimento social. Os camponeses medievais, de modo similar, chegam aos historiadores como um número incorporado à terra através dos contratos celebrados entre um suserano e um vassalo, ou através de um testamento que os passa adiante para os herdeiros de um feudo. Mas quando produzirem uma Jacquerie serão registrados pela primeira vez por algo que fizeram, e não por algo que fizeram a eles.<br /><br />São os grandes momentos de protesto ou de violência coletiva que tornam visíveis as massas, e os pequenos momentos de crimes individuais que dão visibilidade ao homem comum. Por isto o historiador acaba chegando às massas e aos indivíduos menos favorecidos através da violência. São as fontes que expressam os vários tipos de violência (ou que registram a repressão a esta violência) aquelas que permitirão a este historiador examinar as relações de classe, as suas expectativas, o seu cotidiano. É aliás curioso observar que, quando o criminoso escapa à repressão, ele perde-se para a História.<br /><br />Na verdade, as fontes de natureza repressiva – como os processos criminais ou os registros inquisitoriais – constituem registros múltiplos, polifônicos por excelência. A própria diversidade social pode estar presente em um processo judicial ou inquiridor – afinal, o modo como devem ser organizados os processos, entrecruzando indivíduos dos mais diversos tipos, acaba conferindo a este tipo de fontes uma posição muito rica no repertório de documentos à disposição de um historiador social. São fontes que habitualmente envolvem um foco representando o sistema repressivo (não raro expressando contradições internas que podem aparecer sob a forma de conflitos de autoridade) e um universo multifocal que passa por um vasto número de depoentes e de testemunhas, até chegar ao criminoso ou ao inquirido.<br />É mais raro que a História Social, pelo menos no que se refere a períodos mais recuados, vá encontrar fontes relativas aos grupos menos favorecidos na ‘documentação privada’ (diários, livros de memória, relatos de viagem, correspondência) porque estes tipos de textos nem sempre são conservados depois que os seus autores desaparecem. Mas, na medida em que avança para classes mais favorecidas, o historiador já começa a dispor deste tipo de documentação.<br />As fontes da História Social, enfim, são de inúmeras modalidades. Sua escolha, naturalmente, será orientada pelo problema histórico a ser definido e investigado pelo historiador.<br /><br />Conforme vimos – seja no que se refere a seus campos de interesse e objetos privilegiados, seja no que se refere a seus métodos mais recorrentes e fontes historiográficas disponíveis – a História Social mostra-se ao historiador contemporâneo como um campo aberto a inúmeras possibilidades. Um de seus traços centrais, certamente, continuará para o futuro a referir-se ao intenso diálogo com todas as Ciências Sociais, o que tem permitido precisamente essa maior amplitude de objetos e o tratamento de uma maior variedade de tipos de fontes a partir de metodologias que a História pôde apreender de diversificados campos do saber como a Sociologia, a Antropologia, a Lingüística, a Semiótica.<br /><br /><br />Leia o artigo completo em <a href="http://ning.it/hszGnB">http://ning.it/hszGnB</a> ou em <a href="http://ning.it/gfYjG1">http://ning.it/gfYjG1</a><br /><br />[BARROS, José D’Assunção. “A História Social: seus significados e seus caminhos” in LPH - Revista de História da Universidade Federal de Ouro Preto. N° 15, 2005; p.235-256].José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-34044486166559656162011-01-10T23:21:00.000-08:002011-01-10T23:22:06.005-08:00Micro-HistóriaA Micro-História é um campo relativamente recente na Historiografia, e ainda hoje gera muitas po-lêmicas com relação às suas possibilidades de definição. Uma questão complicadora é que a Micro-História começou a desabrochar com um grupo muito específico de historiadores italianos, que possui, até os dias de hoje, publicação própria (os Quaderni Storici), e por isto não é raro que se confunda a Micro-História – enquanto nova possibilidade de abordagem historiográfica – com este grupo. Mas veremos a seguir que a Micro-História merece ser tratada de maneira mais ampla, como um novo âmbito de possibili-dades historiográficas, e não como uma corrente ou escola dentro da historiografia. O olhar micro-historiográfico, deve-se dizer, pode ser conectado aos mais distintos aportes teóricos, e é assim que ele tem aparecido inclusive na historiografia brasileira das últimas décadas.<br /><br />Outra confusão sem nenhum fundamento que algumas vezes se faz surge quando se relaciona equi-vocadamente a História Regional e a Micro-História, apesar de estes serem campos radicalmente distintos no que concerne às suas motivações fundadoras. Vejamos a seguir, para diferenciá-la mais claramente da Micro História, do que se trata quando se fala em “História Regional”.<br /><br />Quando um historiador se propõe a trabalhar dentro do âmbito da História Regional, ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma região específica (ou, melhor dizendo, uma determinada espacia-lidade). O espaço regional, é importante destacar, não estará necessariamente associado a um recorte admi-nistrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, a um recorte cultural ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema histórico que irá examinar. Mas, de qualquer modo, o interesse central do historiador regional é estudar especificamente este espaço, ou as relações sociais que se estabelecem dentro deste espaço, mesmo que eventualmente pretenda compará-lo com outros espaços similares ou examinar em algum momento de sua pesquisa a inserção do espaço regio-nal em um universo maior (o espaço nacional, uma rede comercial).<br /><br />Que a região é uma construção do historiador, do geógrafo ou do cientista social que examina uma determinada questão, isto já o sabem de longa monta os historiadores regionais. A região não existe obvi-amente como espaço pré-estabelecido, ela é construída dentro das coordenadas de uma determinada pes-quisa ou de uma certa análise sociológica ou historiográfica. Por isto, aliás, é preciso que o pesquisador – ao delimitar o seu espaço de investigação e defini-lo como uma ‘região’ – esclareça os critérios que o con-duziram a esta delimitação. Posto isto, é óbvio que o ‘espaço’, seja este definido como espaço físico ou como espaço social, é uma noção fundamental dentro deste campo de estudos que pode ser enquadrado como História Regional.<br /><br />Enquanto a História Regional corresponde a um domínio ou a uma abordagem historiográfica que foi se constituindo em torno da idéia de construir um espaço de observação sobre o qual se torna possível perceber determinadas articulações e homogeneidades sociais (e a recorrência de determinadas contradi-ções sociais, obviamente), já a Micro-História corresponde a um campo histórico que se refere a uma coisa bem distinta: a uma determinada maneira de se aproximar de uma certa realidade social ou de construir o objeto historiográfico. A Micro-História, sustentaremos aqui, relaciona-se a uma abordagem, mais do que a qualquer outra coisa.<br /><br />Antes de mais nada é preciso deixar claro que a Micro-História não se refere necessariamente ao estudo de um espaço físico reduzido ou delimitado, embora isto possa até ocorrer. O que a Micro-História pretende é uma redução na escala de observação do historiador com o intuito de se perceber aspectos que, de outro modo, passariam desapercebidos. Quando um micro-historiador estuda uma pequena comunidade, ele não estuda propriamente a pequena comunidade, mas estuda através da pequena comunidade (não é por exemplo a perspectiva da História Local, que busca o estudo da realidade micro-localizada por ela mesma). A comunidade examinada pela Micro-História pode aparecer, por exemplo, como um meio para se atingir a compreensão de aspectos específicos relativos a uma sociedade mais ampla. Da mesma forma, pode-se tomar para estudo uma ‘realidade micro’ com o intuito de compreender certos aspectos de um pro-cesso de centralização estatal que, em um exame encaminhado do ponto de vista da macro-história, passa-riam certamente desapercebidos.<br /><br />O objeto de estudo do micro-historiador não precisa ser, desta maneira, o espaço micro-recortado. Pode ser uma prática social específica, a trajetória de determinados atores sociais, um núcleo de represen-tações, uma ocorrência (por exemplo, um crime) ou qualquer outro aspecto que o historiador considere revelador em relação aos problemas sociais ou culturais que está disposto a examinar. Se ele elabora a bio-grafia ou a “história de vida” de um indivíduo (e freqüentemente escolherá um indivíduo anônimo) o que o estará interessando não é propriamente biografar este indivíduo, mas sim os aspectos que poderá perceber através do exame micro-localizado desta vida.<br /><br />Da mesma maneira, assim como a Micro-História não deve ser confundida com a História Regional ao examinar eventualmente um espaço micro-recortado, também não deve ser confundida com o chamado ‘estudo de caso’ ao estudar uma prática social ou uma ocorrência, e nem ser confundida com a Biografia Histórica ao examinar uma “vida” ou uma trajetória individual. Sempre que toma estes objetos – micro-localidade, prática social, ocorrência histórica, trajetórias individuais entrecruzadas ou vida individual – o micro-historiador está no encalço de algo mais do que estes objetos em si mesmos. A prática micro-historiográfica não deve ser definida propriamente pelo que se vê, mas pelo modo como se vê.<br /><br />Para utilizar uma metáfora conhecida, a Micro-História propõe a utilização do microscópio ao in-vés do telescópio. Não se trata, neste caso, de depreciar o segundo em relação ao primeiro. O que importa é ter consciência de que cada um destes instrumentos pode se mostrar mais apropriado para conduzir à per-cepção de certos aspectos do universo (por exemplo, o espaço sideral ou o espaço intra-atômico). De igual maneira, a Micro-História procura enxergar aquilo que escapa à Macro-História tradicional, empreendendo para tal uma ‘redução da escala de observação’ que não poupa os detalhes e que investe no exame intensi-vo de uma documentação. Considerando os exemplos antes citados, o que importa para a Micro-História não é tanto a ‘unidade de observação’, mas a ‘escala de observação’ utilizada pelo historiador, o modo intensivo como ele observa, e o que ele observa.<br /><br />A idéia de que, em muitos casos, a Micro-História examina um campo ou um aspecto reduzido para enxergar mais longe, ou para perceber elementos que escapariam à macro-perspectiva tradicional, merece alguns esclarecimentos adicionais. Poderíamos utilizar aqui uma nova metáfora: a de que o micro-historiador examina “uma gota d’água para enxergar algo do oceano inteiro”, contanto que tenhamos uma compreensão muito precisa sobre que esta imagem significa. Suponhamos um oceanógrafo que estivesse investindo em uma possibilidade como esta. Ele se propôs a buscar compreender algo do oceano inteiro a partir de uma minúscula gota d’água extraída deste oceano – será isto possível? A resposta depende obvi-amente do problema científico que se pretende examinar. Não é possível compreender a fauna marítima examinando uma simples gota do oceano (um peixe não cabe em uma gota d’água). Mas é possível estudar a composição molecular da água a partir de qualquer gota (com exceção, talvez, das gotas extraídas de áreas que sofreram vazamentos de óleo nos acidentes ecológicos que ocasionalmente têm perturbado os noticiários recentes). Não está sendo defendida aqui nenhuma proposta de que este macrocosmos que é o oceano está essencialmente contido neste microcosmos que é a gota d’água, ou de que a sociedade inteira está contida em cada um dos seus fragmentos passíveis de serem examinados. Também não se trata de dizer que a micro-análise seleciona um fragmento para amostra (algumas gotas do oceano, por exemplo), para depois proceder a uma generalização das observações com o fito de concluir que o que aconteceu a uma ou mais gotas d’água acontecerá a todas que compõem o oceano (o que seria o método empírico-indutivo tradicional). Na verdade, a Micro-História não trabalha propriamente com generalizações deste tipo. Pelo contrário, as motivações que produziram este novo tipo de abordagem historiográfica são até mesmo um pouco avessas seja às grandes generalizações (tão típicas das antigas utopias historiográficas da “história total”), seja à idéia de que a gota contém o oceano ou de que o fragmento social contém a socie-dade). De que se trata então?<br /><br /><br /><br />Leia a continuação deste texto em: <a href="http://ning.it/eDmvXt">http://ning.it/eDmvXt</a><br /><br /><br />O presente texto também se encontra, em outra versão, em um dos capítulos do meu livro "O Campo da História" (BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição).<br /><br />______________________________<br /><br />Outras referências bibliográficas:<br /><br />BARROS, José D'Assunção. "Micro-História" in O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição. p.152-179.<br /><br />BARROS, José D'Assunção. "O olhar micro-historiográfico no Brasil". Revista do IHGB, a-165, n°424, jul/set. 2004.<br /><br />GINZBURG,Carlo. “O inquisidor como antropólogo” In A Micro História e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1991 [original: 1989]<br /><br />GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” In Mitos, Emblemas, Sinais, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.143-179<br /><br />GINZBURG,Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 [original: 1975]<br /><br />LEVI, Giovanni. "Sobre a Micro-História" in BURKE,Peter (org.) A Escrita da História - novas perspectivas. São Paulo: Unesp. 1992. p.133-161.<br /><br />LIMA, Henrique Espada. A Micro-História Italiana - escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.<br /><br />PESAVENTO, Sandra. “Esta história que chamam micro” In: Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Edurgs, 2000, p. 228-229.<br /><br />REVEL, Jacques (olrg.). Jogos de Escala - a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-65214398663368867002011-01-10T23:15:00.000-08:002011-01-10T23:16:35.942-08:00História EconômicaA historiografia tem passado, nas décadas recentes, por uma sistemática revisão de seus pressupostos, e ao mesmo tempo por uma expansão de seus objetos, de suas abordagens, de seus aportes teóricos, de seus diálogos interdisciplinares. Dentro da História, enquanto campo de conhecimento mais amplo, várias das mais antigas modalidades historiográficas têm passado por esta redefinição de seus fazeres e fronteiras. Tem sido assim com a História Política, com a História Social, ou com a História Econômica. É este último campo historiográfico que pretendo discutir neste momento, examinando os seus deslocamentos temáticos, a revisão dos seus fazeres e de seus modos de examinar a dimensão econômica das sociedades historicamente localizadas. Abordarei a questão de dentro da perspectiva da própria historiografia, e não da Economia, que, destarte, é a disciplina fundamental com a qual dialoga esta modalidade historiográfica.<br /><br />De modo bastante evidente, as últimas décadas historiográficas assistiram a um claro crescimento da rejeição à idéia de que a vida social e cultural seja direta e linearmente determinada pelas dimensões da Economia e da vida material – uma crítica que se estabelece inclusive no interior de algumas das correntes do próprio marxismo, a partir daí admitindo que processos culturais podem ser igualmente determinantes, inclusive agindo ou reagindo sobre a dimensão econômica de uma Sociedade[1]. Ao mesmo tempo, é patente também que os modelos quantitativos de levantamento e análise de dados também tem sido criticados significativamente nos últimos anos, o que reforça o fato de que vem se enunciando já há algumas décadas a tendência à rejeição de ‘uma certa História Econômica’ – linear, redutora – e também a proposta de novos métodos para além das técnicas quantitativas, que já não são compreendidas necessariamente como a única base de legitimidade de uma história científica, ou mesmo garantia desta última.<br /><br />Posto isto, consideraremos que, de todo modo, a História Econômica já se constitui efetivamente em um campo histórico bastante antigo – “antigo”, porém, muito longe da possibilidade de ser taxado de “inatual”. Esta combinação de “antiguidade” com “atualidade” tem a sua história. À parte as trilhas epistemológicas que possuem um traçado anterior ao próprio âmbito da Economia Histórica tal como a entendemos hoje – isto é, à parte aqueles caminhos que já desde o século XIX vinham sendo percorridos pelos Economistas que se interessaram pela História como meio para solucionar alguns problemas do seu próprio campo disciplinar[2] – datam pelo menos da terceira década do século XX os investimentos mais decisivos dos historiadores em constituir a História Econômica como um campo historiográfico específico, ou como uma disciplina já bem constituída no interior de uma História de novo tipo[3]. Neste empreendimento, que em diversos focos diferenciados da Europa e das Américas começam a ter explicitadas as suas primeiras realizações em torno de 1930, freqüentemente se misturaram economistas e historiadores em uma empresa mista. Mais ainda, freqüentemente economistas se fizeram historiadores, e historiadores se fizeram economistas.<br /><br />Diante deste domínio historiográfico em comum, no qual se encontram em incessante diálogo tanto os economistas por formação como os historiadores que se apropriaram de um conhecimento significativo pertinente às ciências econômicas, é forçoso admitir que a História Econômica é um daqueles setores intradisciplinares da História que exige dos seus praticantes certos conhecimentos e técnicas bastante específicas, possivelmente mais do que qualquer outro campo histórico. Além disto, convém lembrar que, se a História Econômica é já uma das modalidades historiográficas mais antigas em atual vigência, isto se dá porque – conjuntamente com a História Social – ela foi das primeiras que na primeira metade do século XX começaram a ser empunhadas como bandeiras a se agitarem contra a velha História Política que até então se fazia bem de acordo com o modelo do século XIX, esta história essencialmente preocupada com fatos políticos relacionados aos grandes Estados-Nacionais, e que quase sempre se apresentava como uma história essencialmente factual, narrativa no mau sentido, pouco problematizada.<br /><br />É contra este padrão historiográfico extremamente antigo – este sim francamente inatual – que se insurgiu a seu tempo a moderna História Econômica conjuntamente com a História Social – seja através das realizações inauguradas pela Escola dos Annales, seja através das primeiras obras mais propriamente historiográficas desenvolvidas no âmbito do Materialismo Histórico, filosofia da História que havia sido fundada ainda no século XIX por Marx e Engels mas que só então, no século XX, começava a render realmente seus primeiros frutos em forma de historiografia[4].<br /><br />O nosso objetivo em seguida será refletir sobre a História Econômica como campo intradisciplinar da História – examinar seu estatuto epistemológico, seus aportes teóricos e possibilidades técnicas, seus objetos preferenciais. Eventualmente, falaremos de algumas correntes específicas – tanto as inseridas no seio das Ciências Econômicas como as originadas no próprio seio da Historiografia – que atravessaram ou têm atravessado esse campo intradisciplinar que passaremos a chamar de História Econômica. Mas não estaremos nos utilizando da expressão “História Econômica” para remontar a correntes historiográficas ou economicistas específicas, a não ser entre aspas, e nos casos específicos em que a designação for de uso de grupos que empregam a palavra como uma auto-referência (por exemplo, o grupo da New economic History, nos Estados Unidos de a partir dos anos 1960). Via de regra, História Econômica estará sendo abordada aqui como um campo histórico definido que abriga muitas correntes, que acumulou certo repertório de discussões conceituais e potencialidades metodológicas, que se volta para determinados objetos específicos que adquirem sentido no entrecruzamento das questões econômicas e das questões históricas.<br /><br />Um ponto de partida será discutir algumas noções fundamentais que fundam esta modalidade historiográfica desde suas origens, e outras noções que se desenvolveram posteriormente no seio dos estudos de História Econômica como noções e conceitos importantes. A primeira destas noções, no caso uma noção fundacional, é a própria noção de “sistema econômico” – já que freqüentemente os historiadores e economistas que se irmanam em torno do interesse pelos objetos mais habituais da História Econômica estão interessados em desvendar conjuntos coerentes que são referidos como “sistemas econômicos” de uma época ou outra, de uma determinada espacialidade social. Ou seja, como estes historiadores e economistas estão interessados em examinar um sistema integrado no interior do qual os diversos fatos econômicos adquirem algum sentido relativamente a uma determinada sociedade historicamente localizada, o conceito clama aqui por uma reflexão atenta acerca de suas principais implicações.<br /><br /><br />Leia o artigo completo em: <a href="http://ning.it/dF7fM5">http://ning.it/dF7fM5</a>José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-49903284644781973242011-01-10T23:13:00.000-08:002011-01-10T23:14:31.965-08:00História PolíticaPolítica e Poder, é quase um truísmo dizer, são indissociáveis. Por outro lado, tanto a Política – campo de expressão por excelência do Poder nos seus âmbitos mais tradicionais – como o Poder em seu sentido mais amplo (o que inclui toda uma diversidade de setores da vida social e das atividades humanas nas quais tal noção se aplica de maneira imperiosa) são igualmente indissociáveis da História. A Política, em sentido mais restrito, e o Poder, em sentido mais amplo, são construídos, percebidos, exercidos, apropriados, imaginados e discursados de modos diferenciados ao longo da História. Nada mais natural que, diante do incessante fluxo da História no que tange às múltiplas perspectivas sobre o Poder que vão surgindo e se desenvolvendo, também tenha se afirmado no seio da historiografia um campo mais específicos de estudos, também em permanente transformação: a História Política.<br />.<br />É precisamente no âmbito deste campo mais específico de estudos historiográficos que, nas décadas recentes, tanto no Brasil como nos círculos historiográficos internacionais, tem crescido o interesse em se rediscutir o Poder, a Política e a própria História Política com relação aos seus paradigmas, questões conceituais e procedimentos metodológicos. O interesse facilmente se explica. Se a partir da terceira década do século XX se impuseram como campos preferenciais vitoriosos na historiografia ocidental alguns modos de pensar e realizar a História que pareciam relegar para segundo plano a História Política – na verdade uma velha História Política que fora tão típica do século XIX – já nas décadas recentes a historiografia ocidental se viu partilhada por uma diversidade muito maior de modalidades e abordagens históricas, algumas novas, outras renovadas.<br />.<br />Em um mundo contemporâneo no qual tem se tornado cada vez mais clara a multiplicidade de poderes de todos os tipos que envolvem a vida social e individual, da coerção ou planificação governamental mais direta às sutis formas de propaganda subliminares, a História Política viu-se sensivelmente renovada neste novo rearranjo de modalidades históricas. Trata-se, contudo, muito mais de um desenvolvimento lógico e estrutural da Historiografia e de sua inserção no contexto da história recente, conforme veremos oportunamente, do que de uma simples moda historiográfica que retorna para compensar seus anos de relativo eclipse.<br />.<br />Vejamos, antes de mais nada, como se situa a História Política no quadro das inúmeras modalidades em que hoje se encontra partilhado o Campo da História. Dentro do vasto campo de modalidades da História que hoje abrigam os enfoques e fazeres historiográficos – e que vão de categorias mais recentes como a Micro-História e a História do Imaginário até categorias já tradicionais como a História Econômica e a História Demográfica – existem algumas modalidades que se definem a partir de uma peculiaridade bem interessante. Elas são atravessadas por uma palavra apenas, que parece iluminar de maneira especial cada um dos seus diversos caminhos internos. Entre outras possíveis, podemos lembrar as noções de “Cultura”, “População”, “Poder”, a partir das quais teremos modalidades historiográficas muito específicas como a História Cultural, a História Demográfica, a História Política. Dentre essas modalidades historiográficas que são iluminadas em seu espectro de possibilidades internas por uma noção fundamental, a História Política ocupa um lugar bastante especial por razões que já discutiremos. Por trás da História Política – de qualquer história política, das antigas às novas possibilidades – está uma palavra apenas, ou um aspecto, que ocupa o papel de centro de gravidade de todos os fazeres e abordagens históricas que se abrigam sobre esta categoria. A palavra “poder” rege os caminhos internos da História Política da mesma maneira que a palavra “cultura” rege os caminhos internos da História Cultural, ou que a palavra “imagem” erige-se como horizonte fundamental para a História do Imaginário.<br />.<br />“Poder”, como “cultura”, é entretanto uma palavra complexa, polissêmica, que se abre como campo de disputas para múltiplos sentidos e como objeto para multidiversificadas apropriações. Temos aqui palavras que são verdadeiros espelhos de muitas faces, que se transfiguram conforme os seus usos ou as intenções que as animam, que se transformam, que se comprimem ou se alargam ao longo da sua história léxica. A palavra “poder” é como uma armadura que se tem oferecido para muitas batalhas historiográficas, verdadeira arena que estimula confrontos internos dos quais podem emergir vencedores, neste ou naquele momento, alguns sentidos mais específicos ou mais abrangentes.<br />.<br />Deveremos indicar, em primeiro lugar, a expansão de sentidos a que se permite o conceito de “Poder” na passagem de uma história política mais tradicional, como a que se fazia no século XIX, para as novas possibilidades que surgem com a historiografia do século XX, culminando com um novo âmbito que, nas últimas décadas do século XX, já passa a ser referido em termos de uma “nova história política”. “Poder”, de acordo com estas expansões de sentido, não seria apenas aquele que, na ótica dos historiadores e pensadores políticos do século XIX, emanava sempre do Estado ou das grandes Instituições – ou que a estes podia se confrontar através de revoluções capazes de destronar um rei e impor uma nova ordem igualmente centralizada – e nem seria apenas aquele poder que de resto mostrava-se exercido fundamentalmente pelos personagens que ocupavam lugar de destaque nos quadros governamentais, institucionais e militares da várias nações-estados. “Poder” – de acordo com uma nova ótica que foi se impondo gradualmente – é aquilo que exercemos também na nossa vida cotidiana, uns sobre os outros, como membros de uma família, de uma vizinhança ou de uma comunidade falante. “Poder” é o que exercemos através das palavras ou imagens, através dos modos de comportamento, dos preconceitos.<br />.<br />O “Poder” apresenta-se a todo instante neste imenso teatro social no qual todos ocupamos simultaneamente a função de atores e de espectadores – daí que se possa falar hoje em um “teatro do poder” quando examinamos a política nas várias épocas históricas. Poder, no decurso de uma série de novas lutas políticas e sociais que redefiniu radicalmente a sociedade em que vivemos, é aquilo os homens aprenderam a reconhecer nas mulheres, que as maiorias aprenderam a reconhecer nas minorias, que o mundo da ordem aprendeu a reconhecer na marginalidade, que os adultos que aprenderam a reconhecer nos mais jovens. Essa compreensão mais abrangente da noção de “poder” redefine, obviamente, os sentidos para o que se deve entender por História Política.<br />.<br />Redefinida desta maneira, os objetos da História Política são todos aqueles que se mostram atravessados pela noção de “poder” em todas as direções e sentidos, e não mais exclusivamente de uma perspectiva da centralidade estatal ou da imposição dos grupos dominantes de uma sociedade. Neste sentido, teremos de um lado aqueles antigos enfoques da História Política tradicional que, apesar de terem sido rejeitados pela historiografia mais moderna de a partir dos anos 1930 (Escola dos Annales e novos marxismos), com as últimas décadas do século XX começaram a retornar dotados de um novo sentido. A Guerra, a Diplomacia, as Instituições, ou até mesmo a trajetória política dos indivíduos que ocuparam lugares privilegiados na organização do poder – tudo isto começa a retornar a partir do final do último século com um novo interesse.<br />.<br />De outro lado, além destes objetos já tradicionais que se referem às relações entre as grandes unidades políticas e aos modos de organização destas macro-unidades políticas que são os Estados e as Instituições, adquirem especial destaque, por exemplo, as relações políticas entre grupos sociais de diversos tipos. A rigor, as ‘ideologias’ e os movimentos sociais e políticos (por exemplo, as Revoluções) sempre constituíram pontos de especial interesse por parte da nova historiografia que se inicia com o século XX, mesmo porque estes eram campos de interesses muito caros à nova História Social que estava então se formando. Mas por outro lado, tal como já ressaltamos, hoje despertam um interesse análogo as relações interindividuais (micropoderes, relações de poder no interior da família, relacionamentos intergrupais), bem como o campo das representações políticas, dos símbolos, dos mitos políticos, do teatro do poder, ou do discurso<br /><br /><br />Leia a continuação deste artigo em <a href="http://ning.it/gXYdA1">http://ning.it/gXYdA1 </a><br /><br /><br />(BARROS, José D'1Assunção. “História Política – o estudo historiográfico do poder, dos micropoderes, do discurso e do imaginário político”. Educere et Educare – Revista de Educação. n°4, n°1. 1° semestre de. 2009).<br /><br /><br />O artigo baseia-se no capítulo "História Política" do livro O Campo da História (Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição).José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-66490004498002787682011-01-10T23:10:00.000-08:002011-01-10T23:12:24.424-08:00História CulturalEntre as várias modalidades da História que se desenvolveram no decurso do século XX, algumas têm primado pela riqueza de possibilidades que abrem aos historiadores que as praticam, por vezes com perspectivas antagônicas entre si. A História Cultural – campo historiográfico que se torna mais preciso e evidente a partir das últimas décadas do século XX, mas que tem claros antecedentes desde o início do século – é entre estas particularmente rica no sentido de abrigar no seu seio diferentes possibilidades de tratamento. Nosso objetivo aqui será o de elaborar um pequeno panorama das principais tendências que têm se projetado no âmbito da História Cultural.<br />.<br />Para introduzir um universo comum a todas as tendências de aqui falaremos, consideraremos que a História Cultural é aquele campo do saber historiográfico atravessado pela noção de “cultura” (da mesma maneira que a História Política é o campo atravessado pela noção de “poder”, ou que a História Demográfica funda-se essencialmente sobre o conceito de “população”, e assim por diante). Cultura, contudo, é um conceito extremamente polissêmico, notando-se ainda que o século XX trouxe-lhe novas redefinições e abordagens em relação ao que se pensava no século XIX como um âmbito cultural digno de ser investigado pelos historiadores.<br />.<br />Orientando-se em geral por uma noção muito restrita de “cultura”, os historiadores do século XIX costumavam passar ao largo das manifestações culturais de todos os tipos que aparecem através da cultura popular, além de também ignorarem que qualquer objeto material produzido pelo homem faz também parte da cultura – da cultura material, mais especificamente. Além disto, negligenciava-se o fato de que toda a vida cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura. Ao existir, qualquer indivíduo já está automaticamente produzindo cultura, sem que para isto seja preciso ser um artista, um intelectual, ou um artesão. A própria linguagem, e as práticas discursivas que constituem a substância da vida social, embasam esta noção mais ampla de Cultura. “Comunicar” é produzir Cultura, e de saída isto já implica na duplicidade reconhecida entre Cultura Oral e Cultura Escrita (sem falar que o ser humano também se comunica através dos gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social, isto é, do seu ‘modo de vida’).<br />.<br />Apenas para exemplificar com uma situação significativa, tomemos um “livro”, este objeto cultural reconhecido por todos os que até hoje se debruçaram sobre os problemas culturais. Ao escrever um livro, o seu autor está incorporando o papel de um produtor cultural. Isto todos reconhecem. O que foi acrescentado pelas mais modernas teorias da comunicação é que, ao ler este livro, um leitor comum também está produzindo cultura. A leitura, enfim, é prática criadora – tão importante quanto o gesto da escritura do livro. Pode-se dizer, ainda, que cada leitor recria o texto original de uma nova maneira – isto de acordo com os seus âmbitos de “competência textual” e com as suas especificidades (inclusive a sua capacidade de comparar o texto com outros que leu, e que podem não ter sido previstos ou sequer conhecidos pelo autor do texto original que está se prestando à leitura). Desta forma, uma prática cultural não é constituída apenas no momento da produção de um texto ou de qualquer outro objeto cultural, ela também se constitui no momento da recepção. Este exemplo, aqui o evocamos com o fito de destacar a complexidade que envolve qualquer prática cultural (e elas são de número indefinido).<br />.<br />Desde já, para aproveitar o exemplo acima discutido, poderemos evocar uma delimitação já moderna de História Cultural elaborada por Georges Duby . Para o historiador francês, este campo historiográfico estudaria dentro de um contexto social os “mecanismos de produção dos objetos culturais” (aqui entendidos como quaisquer objetos culturais, e não apenas as obras-primas oficialmente reconhecidas). O exemplo acima proposto autoriza-nos a acrescentar algo. A História Cultural enfoca não apenas os mecanismos de produção dos objetos culturais, como também os seus mecanismos de recepção (e já vimos que, de um modo ou de outro, a recepção é também uma forma de produção). Estabelecido isto, retomemos a comparação entre os atuais tratamentos historiográficos da Cultura e aqueles que eram tão típicos do século XIX.<br />.<br />Ao ignorar a inevitável complexidade da noção básica que a fundamentava, a História da Cultura tal como era praticada nos tempos antigos era uma história elitizada, tanto nos sujeitos como nos objetos estudados. A noção de “cultura” que a perpassava era uma noção demasiado restrita, que os avanços da reflexão antropológica vieram desautorizar. Não que as produções culturais que as várias épocas reconhecem como “alta cultura”, ou que a produção artística que está hoje sacramentada pela prática museológica tenham perdido interesse para os historiadores. Ao contrário, estuda-se Arte e Literatura do ponto de vista historiográfico muito mais do que nos séculos anteriores ao século XX. Apenas que a estes interesses mais restritos acrescentou-se uma infinidade de outros. Tal parece ter sido a principal contribuição do último século para a História da Cultura. Para além disto, passou-se a avaliar a Cultura também como processo comunicativo, e não como a totalidade dos bens culturais produzidos pelo homem. Este aspecto, para o qual confluíram as contribuições advindas das teorias semióticas da cultura, também representou um passo decisivo.<br />.<br />As noções que se acoplam mais habitualmente à de “cultura” para constituir um universo de abrangência da História Cultural são as de “linguagem” (ou comunicação), “representações”, e de “práticas” (práticas culturais, realizadas por seres humanos em relação uns com os outros e na sua relação com o mundo, o que em última instância inclui tanto as ‘práticas discursivas’ como as ‘práticas não-discursivas’). Para além disto, a tendência nas ciências humanas de hoje é muito mais a de falar em uma ‘pluralidade de culturas’ do que em uma única Cultura tomada de forma generalizada. Em nosso caso, como estamos empregando a História Cultural como um dos enfoques possíveis para o historiador que se depara com uma realidade social a ser decifrada, utilizaremos em algumas ocasiões a expressão empregada no singular como ordenadora desta dimensão complexa da vida humana. Trata-se no entanto de uma dimensão múltipla, plural, complexa, e que pode gerar diversas aproximações diferenciadas.<br />.<br />Os objetos da História Cultural, face à noção complexa de cultura que hoje predomina nos meios da historiografia profissional, são inúmeros. A começar pelos objetos que já faziam parte dos antigos estudos historiográficos da Cultura, continuaremos mencionando o âmbito das Artes, da Literatura e da Ciência – campo já de si multi-diversificado, no qual podem ser observados desde as imagens que o homem produz de si mesmo, da sociedade em que vive e do mundo que o cerca, até as condições sociais de produção e circulação dos objetos de arte e literatura. Fora estes objetos culturais já de há muito reconhecidos, e que de resto sintonizam com a “cultura letrada”, incluiremos todos os objetos da ‘cultura material’ e os materiais (concretos ou não) oriundos da “cultura popular” produzida ao nível da vida cotidiana através de atores de diferentes especificidades sociais.<br />.<br />De igual maneira, uma nova História Cultural interessar-se-á pelos sujeitos produtores e receptores de cultura – o que abarca tanto a função social dos ‘intelectuais’ de todos os tipos (no sentido amplo, conforme veremos adiante), até o público receptor, o leitor comum, ou as massas capturadas modernamente pela chamada “indústria cultural” (esta que, aliás, também pode ser relacionada como uma agência produtora e difusora de cultura). Agências de produção e difusão cultural também se encontram no âmbito institucional: os Sistemas Educativos, a Imprensa, os meios de comunicação, as organizações socioculturais e religiosas.<br />.<br />Para além dos sujeitos e agências que produzem a cultura, estudam-se os meios através dos quais esta se produz e se transmite: as práticas e os processos. Por fim, a ‘matéria-prima’ cultural propriamente dita (os padrões que estão por trás dos objetos culturais produzidos): as “visões de mundo”, os sistemas de valores, os sistemas normativos que constrangem os indivíduos, os ‘modos de vida’ relacionados aos vários grupos sociais, as concepções relativas a estes vários grupos sociais, as idéias disseminadas através de correntes e movimentos de diversos tipos. Com um investimento mais próximo à História das Mentalidades, podem ser estudados ainda os modos de pensar e de sentir tomados coletivamente.<br />.<br />Estes inúmeros objetos da História Cultural – distribuídos ou partilhados entre os cinco eixos fundamentais acima citados (objetos culturais, sujeitos, práticas, processos e padrões) – têm constituído um foco especial de interesses da parte de vários historiadores do século XX. Nos parágrafos que se seguem, procuraremos discutir algumas das várias contribuições basilares que atuaram conjuntamente para a constituição deste campo no decurso do século.<br />.<br /><br />Leia acontinuação deste artigo em: <a href="http://ning.it/gUSXnu">http://ning.it/gUSXnu </a><br /><br /><br /><br />Referência: BARROS, José D'Assunção. “História Cultural – um panorama teórico e historiográfico” in Textos de História (Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UNB). dezembro de 2003, volume 11, nْ.1/2. p.145-171<br /><br />O texto também pode ser encontrado, com algumas adaptações, em um dos capítulos do livro O Campo da História (Petrópolis: Editora Vozes, 2010, 7a edição). Leia também: BARROS, José D'Assunção. "A História Cultural e a Contribuição de Roger Chartier. Diálogos, UEM, 2005. <a href="http://ning.it/eqx6jU">http://ning.it/eqx6jU</a><br />.José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-91553294438179512862011-01-10T23:06:00.001-08:002011-01-10T23:08:26.803-08:00História das Mentalidades, Imaginário e Psico-História(artigo publicado na revista Labirinto,<br />da Universidade Federal de Rondônia)<br /><br /><br />Dentro de uma fascinante profusão de campos intradisciplinares que tem revelado um sensível enriquecimento dos estudos históricos no que se refere ao interesse por novos objetos e por novas abordagens, a historiografia da segunda metade do século XX assistiu à significativa emergência de campos do saber historiográfico que passaram a valorizar o universo mental dos seres humanos em sociedade, os seus modos de sentir, o Imaginário por eles elaborados coletivamente. Às modalidades já tradicionais na historiografia como a História Política, a História Econômica ou a História Social, os novos historiadores propuseram acrescentar a História das Mentalidades, a Psico-História, a História do Imaginário. Teremos aqui campos que com alguma freqüência se interpenetram no que concerne aos seus objetos, às suas fontes privilegiadas, às suas abordagens e aportes teóricos, às suas conexões com outros saberes e aos seus padrões de interdisciplinaridade. Contudo, cada um destes campos conserva singularidades e aspectos que nos permitem separá-los entre si como espaços intradisciplinares bem diferenciados.<br /><br />O objetivo deste artigo será o de clarificar as diferenças e similitudes entre aqueles campos historiográficos que têm atentado mais enfaticamente para o estudo dos padrões mentais, dos modos de sentir e dos imaginários coletivos nos vários períodos históricos, ou, mais particularmente, a História das Mentalidades, a Psico-História e a História do Imaginário.<br /><br /><br />História das Mentalidades<br /><br />Será bastante oportuno iniciar esta discussão crítica com um exame dos aspectos que têm permitido identificar esta modalidade historiográfica que se mostrou polêmica deste os seus primórdios: a História das Mentalidades. Esta nova modalidade da História, que tem precursores já na primeira metade do século XX mas que, rigorosamente, começa a se delinear como um novo espaço de ação para os historiadores na segunda metade do século, propunha-se enfocar a dimensão da sociedade relacionada ao mundo mental e aos modos de sentir, ficando a partir daí sob a rubrica de uma designação que tem dado margem a grandes debates que não poderão ser todos pormenorizados aqui.<br /><br />Terá certamente contribuído para esta polêmica o fato de que os historiadores das mentalidades foram os primeiros a se interessarem por determinados temas não convencionais, desbravando certos domínios da História que os historiadores ainda não haviam pensado em investigar. Assim, Robert Mandrou propôs-se a estudar a longa persistência de certos modos de sentir que motivaram a prática da feitiçaria e sua repressão no livro Magistrados e feiticeiros na França do século XVII (1979); Jean Delumeau impôs a si a tarefa de examinar um complexo de medos de longa duração que haviam estruturado o modo de sentir do homem europeu durante muito tempo, e cuja lenta superação permitiu precisamente a passagem para o mundo moderno (1989), Philippe Ariès (1981) e Michel Vovelle (1982) empenharam-se dedicadamente em analisar historicamente os sentimentos do homem diante da Morte.<br /><br />De certo modo, por força dos novos e imprevisíveis objetos que traziam à tona com bastante audácia – e em virtude de sua tendência a dedicarem anos de um exaustivo trabalho intelectual a temas que deles fizeram verdadeiros especialistas em objetos historiográficos até então considerados insólitos – os historiadores das mentalidades vieram a constituir uma espécie de vanguarda da tendência da Nova História da segunda metade do século XX em se tornar uma espécie de “história em migalhas”, para utilizar aqui a famosa expressão que deu um título ao impactante livro de François Dosse (1994) . sobre a passagem dos Annales para a Nova História Foram eles que primeiro exploraram certos temas que – a princípio recebidos pelos demais historiadores como estranhos ou exóticos – logo encontrariam um curioso lugar editorial entre uma multidão de outros campos temáticos que posteriormente marcariam, através de uma miríade de novas especialidades relativas aos ‘domínios’ históricos, a tendência à fragmentação que parecia deixar definitivamente para trás as antigas ambições braudelianas de realizar uma ‘história total’.<br /><br />Devido à sua exploração ousada de certos temas até então incomuns, a História das Mentalidades produziu no seu nascedouro uma forte estranheza que logo despertaria acirradas polêmicas. Mas é muito importante ter em vista que a História das Mentalidades não pode ser definida essencialmente com base nestes novos domínios historiográficos que ela passou a privilegiar em um primeiro momento. Mesmo porque, posteriormente, estes mesmos domínios também foram retomados por outros campos da história que pouco ou nada têm a ver com a História das Mentalidades.<br /><br />Rigorosamente, qualquer tema pode ser trabalhado a partir dos vários enfoques que classificaremos aqui como relacionados às ‘dimensões’ sociais (a Política, a Economia, a Cultura, as Mentalidades, o Imaginário, e assim por diante) . Assim, uma História da Morte pode ser trabalhada pela História Demográfica, pela História Política, pela História da Cultura Material, e não apenas pela História das Mentalidades. Em contrapartida, temas já tradicionais como o do “nacionalismo” ou o da “religião” podem ser igualmente examinados da perspectiva de uma História das Mentalidades. Não são, portanto, os domínios privilegiados pelos historiadores das mentalidades que definem o tipo de história que fazem, mas sim a dimensão da vida social para a qual os seus olhares se dirigem: o universo mental, os modos de sentir, o âmbito mais espontâneo das representações coletivas e, para alguns, o inconsciente coletivo.<br /><br />A verdadeira polêmica que envolve a história das mentalidades é teórica e metodológica. Apenas para registrar alguns problemas pertinentes a este campo historiográfico que se consolida a partir da década de 1960, mencionaremos aqui as questões fundamentais que devem ser refletidas pelo historiador que ambiciona trilhar estes caminhos de investigação. Existirá efetivamente uma mentalidade coletiva? Será possível identificar uma base comum presente nos “modos de pensar e de sentir” dos homens de determinada sociedade – algo que una “César e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês que cultivava as suas terras, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas”? Estas imagens, extremamente oportunas, foram celebrizadas por Lucien Febvre.<br /><br />Abraçando a perspectiva teórica de que existem de fato mentalidades coletivas, o historiador deve ampliar a sua concepção documental. Conforme assinala François Furet (1991: p.93), se o historiador das mentalidades pretende alcançar níveis médios de comportamento, não pode se satisfazer mais apenas com a literatura tradicional do testemunho histórico, que é inevitavelmente subjetiva, não representativa, ambígua. Assim, como veremos adiante, ocorreu um casamento feliz entre a História das Mentalidades (um campo histórico que se refere a uma ‘dimensão’) e a História Serial (um campo histórico que se refere a uma ‘abordagem’). A revalidação dos estudos de natureza qualitativa, ao lado da abordagem serial, não esteve contudo alheia a outros historiadores das mentalidades –como no caso de Michel Vovelle, historiador marxista das mentalidades que defende em um artigo importante o uso das duas abordagens como igualmente válidos para captar a dimensão mental de uma sociedade (1987: p.31).<br /><br />Para resumir três ordens de tratamentos metodológicos que os historiadores das mentalidades têm empregado na sua ânsia de captar os modos coletivos de pensar e de sentir, poderemos registrar precisamente (1) a abordagem serial, (2) a eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas (uma aldeia, uma prática cultural, uma vida), ou finalmente (3) uma abordagem extensiva de fontes de naturezas diversas. Neste último caso enquadra-se a obra O Homem diante da Morte, de Philippe Ariès. Nesta ambiciosa obra, lança-se mão dos mais diversos tipos de fontes – desde os escritos de todos os tipos (obras literárias, textos hagiográficos, poemas, canções, crônicas oficiais, testemunhos anônimos) até as fontes iconográficas e os objetos da cultura material. Vovelle denomina a esta utilização de um universo de fontes tão heterogêneo, percorrido mais ou menos livremente, de técnica “impressionista” (1987: 51).<br /><br />Ele mesmo já utiliza a segunda ordem de procedimentos a que atrás nos referíamos: de um modo geral, prefere a abordagem serial. Em sua tese sobre a Piedade Barroca e Descristianização (1978), Vovelle examinou com precisão e método milhares de testamentos provençais – sempre de forma maciça e procurando enxergar serialmente padrões e deslocamentos de padrões que denunciassem as variações das atitudes diante da morte na longa duração por ele escolhida. Quando examina fontes iconográficas, afasta-se da abordagem qualitativa livre para avaliar topicamente a recorrência e a ruptura de certos modos de representar, às vezes medindo espaços no interior da representação iconográfica e quantificando elementos figurativos. Se vai às fontes da cultura material, à arquitetura funerária, por exemplo, faz medições das distâncias que separam túmulos e altares. Sua abordagem é portanto sistemática, cuidadosamente preocupada com a homogeneidade das fontes e com o seu lugar preciso dentro da série.<br /><br />A derradeira ordem de tratamentos metodológicos corresponde à já mencionada eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas ou de padrões de sensibilidade. Pode ser um microcosmos localizado ou uma vida, desde que o autor os considere significativos para a percepção de uma mentalidade coletiva mais ampla.<br /><br /><br />Leia a continuação deste artigo em: <a href="http://ning.it/dUS9nC">http://ning.it/dUS9nC</a><br />.José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-52418562680936354882011-01-10T22:47:00.001-08:002011-01-10T23:02:08.447-08:00Relembrando o livro "O Campo da História"<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh9WiuCAPAQhf7t-O05w1UMAJOyNMY8VOF4C7Jgu9OeKud77TEWNcvJVKxOt1QANc9Kfy0vcGLlNYRjZCDvK0Coxh2HGzmIo-zCQWrJO8PhgpfHH_1A5wcwqZaqVVCcQGq7PtcUEgPH5lRL/s1600/El+Campo+da+la+Historia.jpg"></a><br /><br /><div><img style="TEXT-ALIGN: center; MARGIN: 0px auto 10px; WIDTH: 229px; DISPLAY: block; HEIGHT: 320px; CURSOR: hand" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5560817216098569330" border="0" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEipyGCxnujKGpH88pmoXygTt4wMBjYTVhGLbpKDKHuDoewdf9nyzRJKcAI_u5lJTqN7ScVKe8nIMyDXPD2pZU3hyO6AuokUP8yC86xX_Dz67KUp852yBMSQ9cEp_yyiA1JURNzfF2cph6rl/s320/O+Campo+da+Hist%25C3%25B3ria.+capa+frontal.jpg" /><br /><br /><div>O Campo da História”, publicado pela primeira vez em 2004, procura traçar um panorama sobre o que é a História hoje, e sobre suas várias modalidades (História Cultural, História Política, Micro-História, História das Mentalidades, e tantas outras). Procura-se discutir cada uma destas modalidades falando sobre suas fontes, conceitos, temas mais recorrentes, e dando exemplos de historiadores brasileiros e internacionais.<br /><br />As referências são as seguintes:<br /><br />Autor: José D'Assunção Barros<br />Título: O Campo da História<br />Editora: Editora Vozes </div><div>.</div><div></div><div></div><div></div><div>Posteriormente, o livro foi traduzido para o Espanhol. No Brasil, a edição em português chega em 2011 à oitava edição, em seis anos da sua primeira publicação.</div><br /><img style="TEXT-ALIGN: center; MARGIN: 0px auto 10px; WIDTH: 196px; DISPLAY: block; HEIGHT: 320px; CURSOR: hand" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5560817772782326498" border="0" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEijt2UOxsCI7w3xMXKH4hyUKE0sNsb7wBKkwrifkaObOLQSwQjRfdK22Mya2nbyZgSnRq2ZglRHvXjmw8AeNkNlzpzXXVhJhgPOPH4ehDaiM79J-X-fcPZlFHIUNzDsWfBsZHehyphenhyphenO90Gh1W/s320/El+Campo+da+la+Historia.jpg" /><br /><div></div><div>Uma das teses centrais do livro é a de que os diveros trabalhos e pesquisas historiográficas não se localizam nunca inteiramente dentro de uma única modalidade historiográfica (por exemplo, a História Econômica), mas sim em uma conexão estabelecida entre determinadas modalidades (por exemplo, uma determinada pesquisa pode estar constituída em conexão entre História Econômica, História Serial e História do Trabalho, entre outras modalidades).<br /><br />Por exemplo, uma pesquisa sobre a "Música de Protesto no período da Ditadura Militar do Brasil", que esteja trabalhando com a Metodologia de História Oral, pode ter sua identidade reconhecida em uma conexão entre a História Política, a História Cultural, a História da Música, e a História Oral.<br /><br />Outra tese sustentada pelo livro é a de que a maior parte das modalidades historiográficas contemporâneas surgiu a partir de três critérios distintos:<br /><br />1 - As "dimensões" referem-se a modalidades que trazem a primeiro plano instâncias mais amplas (e incontornáveis) do viver humano e social. Por exemplo, a História Política, a História Cultural, a História Econômica, a História Demográfica, a História das Mentalidades. Cada uma destas dimensões refere-se a uma questão fundamental, na sua forma mais irredutível: o Poder (História Política), a Cultura (História Cultural), a Economia (a História Econômica), os modos de pensar e de sentir (a História das Mentalidades), a população (a História Demográfica). Estes são apenas alguns exemplos das modalidades historiográficas que se referem a dimensões.<br /><br />2 - As "abordagens" referem-se a modalidades que remetem a "modos de fazer a história". Este tipo de modalidade historiográfica pode se referir a uma espécie de fonte, a uma maneira de trabalhar com determinadas fontes, a um modo de recortar o seu objeto ou de estabelecer o seu espaço de análise e observação. São modalidades historiográficas definidas pelas "abordagens" a 'História Oral' (que trabalha com um certo tipo de fontes - os depoimentos orais - e uma determinada metodologia), a 'História Serial' (que trabalha com fontes homogêneas constituídas em série e com uma abordagem que busca permanências, variações, padrões, mudanças de padrão na série), ou ainda a 'Micro-História', que trabalha com uma escala reduzida de observação, e que procura enxergar através do micro-recorte (uma trajetória de vida, um circuito familiar, uma vizinhança, um ambiente fabril, uma prática social) algo relacionado a uma questão social de maior alcance. Estes são apenas três exemplos de modalidades historiográficas geradas pelo critério "abordagens".<br /><br />3 - Os domínios temáticos, que na verdade são infinitos. Referem-se a grandes ou pequenos recortes de temas, e geralmente tem uma amplitude que pode ser incluída dentro de uma "dimensão" (ou se situar entre elas). Mesmo quando um domínio temático é bastante amplo, não podemos dizer que ele é uma "dimensão" ou uma instância incontornável do viver humano, como ocorre com as modalidades referentes ao critério das dimensões. Por exemplo, a "História do Direito" e a "História das Religiões" são grandes domínios, bastante antigos e já clássicos. Embora um grande número de sociedades possuam "Direito" e "Religião", podemos perfeitamente imaginar sociedades que não as tenham. Na pré-história, por exemplo, não havia algo como o "Direito". A "História da Música", por exemplo, é um "domínio temático". Embora a maior parte das sociedades que conhecemos apresente alguma forma de música, é perfeitamente imaginável uma sociedade que não tenha Música. Além disso, a "Música", embora constitua um domínio amplo, pode ser perfeitamente incluída em uma 'dimensão' como a da Cultura.<br /><br />Os domínios temáticos são infinitos, e podem ir dos grandes domínios aos domínios menores, mais específicos, que até cabem uns nos outros. Por exemplo, posso pensar uma "História do vestuário", posso pensar uma "História da Censura".<br /><br />A fragmentação do mercado editorial em alguns domínios temáticos mais exóticos - por exemplo, a "História do Canibalismo" ou a "História dos pequenos objetos úteis" - tem merecido críticas de alguns historiadores que alertam para a perda de sentido de totalidade, em alguns casos. Foi o caso, por exemplo, da crítica encaminhada pelo célebre livro "A História em Migalhas" (1987), de François Dosse, que critica a tendência à fragmentação da história levada a cabo por certos setores da Nova História Francesa.<br /><br />____________________________________________<br /><br />Estas são as teses fundamentais desenvolvidas no livro "O Campo da História" (Petrópolis: Vozes, 2011, 8a edição).<br /><br /><br />Uma Resenha sobre o livro, elaborada pela professora Maria Abadia Cardoso, da Universidade Federal de Uberlândia, pode ser encontrada na Revista Fênix (UFU): <a href="http://ning.it/fNBzZF">http://ning.it/fNBzZF</a></div></div>José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-75129334818206849872011-01-10T22:36:00.000-08:002011-01-10T22:43:46.300-08:00A Historiografia Contemporânea e seus diversos campos históricosA História, nos dias de hoje, divide-se em inúmeras modalidades. Ouve-se falar em História Cultural, em História das Mentalidades, em História do Imaginário, em Micro-História, em História Serial, em História Quantitativa ... o que define estes e outros campos? Em uma obra dedicada a este tema - "O Campo da História" (2004) - tivemos por objetivo central precisamente o esclarecimento destas várias modalidades do saber histórico, discutindo suas singularidades, suas interpenetrações umas com as outras, suas relações interdisciplinares, suas fontes e objetos privilegiados (BARROS, 2004).<br /><br />A tese central daquele trabalho é a de que existem três grandes grupos de critérios que presidem a divisão da História em modalidades mais específicas, e a de que muito da confusão sobre o que é uma sub-especialidade ou o que é outra, ou sobre como enquadrar uma dada obra neste complexo caleidoscópio de sub-especialidades que coincide com o campo disciplinar da História, está no fato de que algumas coletâneas de balanceamentos historiográficos misturam inadvertidamente critérios de classificação sem alertar devidamente o leitor, que acaba perdendo a oportunidade de desenvolver uma maior clareza sobre a rede de modalidades que organiza o pensamento historiográfico na atualidade.<br /><br />A chave para compreender estes vários campos da História, conforme a argumentação que desenvolvemos na referida obra, está em distinguir muito claramente as divisões que se referem a dimensões (enfoques), as divisões que se referem a abordagens (ou modos de fazer a História), e as divisões intermináveis que se referem aos domínios (áreas de concentração em torno de certas temáticas e objetos possíveis).<br /><br />Para registrarmos algumas exemplificações, podemos dizer que o primeiro grupo de critérios que gera divisões internas na disciplina histórica e que se refere ao que chamamos de dimensões corresponde àquilo que o historiador traz para primeiro plano no seu exame de uma determinada sociedade: a Política, a Cultura, a Economia, a Demografia, e assim por diante. Desta maneira, teríamos na História Econômica, na História Política, na História Cultural ou na História das Mentalidades campos do saber histórico relativos às dimensões ou aos enfoques do historiador. Um historiador cultural, por exemplo, estuda os fatos da cultura; um historiador político estuda o poder nas suas múltiplas formas; um historiador demográfico orienta o seu trabalho em torno da noção que lhe é central de “população”.<br /><br />Um segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é o que chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História, aos tipos de fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o historiador. São divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História Serial, a Micro-História e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes orais e depende de técnicas como a das entrevistas; a História Serial trabalha com fontes seriadas – documentação que apresente um determinado tipo de homogeneidade e que possa ser analisada sistematicamente pelo historiador. A Micro-História refere-se a abordagens que reduzem a escala de observação do historiador, procurando captar em uma sociedade aquilo que habitualmente escapa aos historiadores que trabalham com um ponto de vista mais panorâmico, mais generalista ou mais distanciado.<br /><br />Por fim, podemos pensar divisões da História que chamaremos de 'domínios', e que se referem a campos temáticos privilegiados pelos historiadores. Os domínios temáticos constantemente surgem e desaparecem no horizonte de saber desta complexa disciplina que é a História, embora já existam inúmeros domínios já clássicos e muito antigos na historiografia, como a História da Música, a História das Religiões, a História do Direito. Estamos falando também de 'domínios' quando nos referimos a uma História da Mulher, a uma História da Educação, a uma História de Sexualidade, a uma História Rural, ou a uma História da Vida Privada.<br /><br /><br />Leia a continuação deste artigo em <a href="http://ning.it/gvlw2T">http://ning.it/gvlw2T</a>José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-29151506080852803892011-01-10T22:09:00.001-08:002011-01-11T19:37:48.359-08:00Campo HistóricoNo próximo bloco de textos, introduziremos um novo conceito - o de "campo histórico". Em momentos anteriores, vimos que existem alguns conceitos da Teoria da História que ajudam a apreender a identidade historiográfica dos diversos historiadores. Um historiador pode, embora não necessariamente, relacionar-se com um paradigma teórico (como o Historicismo, o Positivismo, o Materialismo Histórico,entre outros) ou com correntes teóricas mais específicas; pode também se agrupar a outros historiadores em "Escolas" (a Escola dos Analles, a Micro-História Italiana, a Escola Inglesa do Marxismo foram exemplos de escolas historiográficas).<br /><br />Não é obrigatório que um historiador se autodefina a partir de um paradigma, nem que se filie a alguma Escola Historiográfica. Apesar disso, estes conceitos - o de "paradigma" e o de "escola histórica" - têm sido importantes para dar à Historiografia instrumentos teóricos para analisar os grandes historiadores do passado e do presente, embora aqueles conceitos nem sempre sejam suficientes, e muitas vezes não se adaptem a alguns historiadores. De todo modo, avançaremos agora na compreensão de que Identidade Historiográfica de cada historiador também se constrói através de diversos outros aspectos, como por exemplo o seu estilo, o gênero historiográfico ou as influências que recebe.<br /><br />A partir deste ponto, veremos que a grande comunidade dos historiadores profissionais, desde que a História começou a se autopostular como conhecimento científico, também tem construído as suas diversas identidades internas através das inúmeras modalidades historiográficas que foram surgindo no interior da História como campo de conhecimento mais amplo. Chamaremos a estas modalidades de "campos históricos".<br /><br />Podemos pensar nos campos históricos - a exemplo da História Econômica, da História Cultural, da Micro-História, entre inúmeros outros - como especializações que foram surgindo no interior da História, sobretudo a partir do século XX, tal como foi ocorrendo no interior de diversos saberes científicos para além da História. Mas é importante ter em vista que, no caso da História, o historiador não se especializa de fato em um campo único. Isso porque, conforme veremos no próximo texto, o que o historiador faz é trabalhar, em determinado momento, e diante de certo objeto historiográfico, com determinada conexão de campos ou modalidades historiográficas. Podemos pensar, por exemplo, em um historiador que, ao examinar a história da MPB durante o regime militar no Brasil, esteja evocando uma conexão entre a História Cultural, a História Oral e a História da Música.<br /><br />Os historiadores, enfim, podem, a qualquer momento de suas trajetórias profissionais, trabalhar com os diversos campos históricos disponíveis (já explicitaremos melhor o que são estes campos), e, a cada novo trabalho, podem estabelecer uma nova conexão, uma nova combinação de campos. Claro, pode ocorrer que um historiador tenha preferência por certos campos ou conexões de campos, mas isso é uma alternativa, não uma necessidade. Por exemplo, como a História Econômica requer certas competências teóricas e metodológicas, que devem ser aprendidas pelo historiador que se propuser a atuar com este campo, pode ocorrer de fato que um historiador deseje se beneficiar de uma competência que já adquiriu a certo custo, e que ele se sinta bem à vontade em atuar no âmbito da História Econômica por diversos e diversos trabalhos. Isto pode ocorrer, e nesse caso é como se o historiador em questão tendesse a se especializar em certa modalidade(s) históricas. Mas frisamos que o "especialismo" é uma alternativa, e não uma obrigação para o historiador.<br /><br />Nosso próximo passo será refletir sobre como os campos históricos podem ajudar a compreender melhor a identidade dos diversos historiadores. Em um dos textos que se seguirão a este, discorreremos sobre o momento em que a historiografia começou a se diversificar em um número cada vez maior de campos internos, e tentaremos propor alguns critérios para compreender estas várias modalidades da História que foram surgindo.<br /><br />Discorri mais sistematicamente sobre a diversidade de 'campos históricos' em um livro específico - "O Campo da História" (Petrópolis: Editora Vozes, 82011, a edição). Os textos que se seguirão ou foram tirados deste livro, ou foram adaptados de artigos sobre campos históricos específicos, que publiquei durante alguns anos, quando me ocupei em fazer um levantamento das diversas modalidades historiográficas nas quais tem se organizado a historiografia contemporânea.<br /><br />.José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-87351577629593579712011-01-08T19:21:00.000-08:002011-02-15T21:22:36.608-08:00Fonte Histórica (6). Analisando Fontes DialógicasEntenderemos como ‘fontes dialógicas’ aquelas que envolvem, ou circunscrevem dentro de si, vozes sociais diversas. O dialogismo de uma fonte é ao mesmo tempo um limite e uma riqueza: o historiador deve aprender a lidar com isto. No limite, é claro, toda fonte – como todo texto – comporta uma margem de dialogismo, pois se acompanharmos as reflexões de Mikhail Bakhtin, em seu ensaio 'Estética e Criação Verbal', não há rigorosamente falando textos que não estejam mergulhados em uma rede de intertextualidades, isto é, em um diálogo com outros textos. O ato mesmo de analisar um texto, assevera-nos Eliseo Verón em seu livro A Produção do Sentido, já introduz algum tipo de dialogismo: pois não é possível analisar um texto em si mesmo, e mesmo que sem perceber o analista está comparando sempre o texto de sua análise com outro texto. Mas não é deste tipo de dialogismo que estaremos falando neste momento, e sim das fontes históricas que apresentam uma forma mais intensa de dialogismo em decorrência da própria maneira como estão estruturadas, ou em função dos próprios objetivos que as materializaram.<br />
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Fontes Dialógicas por excelência, entre várias outras, são os processos criminais e processos inquisitoriais – que envolvem depoimentos de réus, testemunhas e acusadores, mas também a figura destes mediadores que são os delegados de polícia e os inquisidores, e também os advogados para o caso dos processos jurídicos modernos. Também são fontes, além de dialógicas, “intensivas” – fontes que buscam apreender e dar a perceber muitos detalhes, particularmente os que passariam despercebidos ou aos quais em outra situação não se dá importância (lembremos os investigadores criminais vasculhando as latas de lixo). Também os processos apresentam um esforço de compreender a fala de um outro, de dar a compreender esta fala, embora também envolvam a manipulação da fala.<br />
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Para o Brasil do período colonial, constituem fontes dialógicas de grande porte os Livros de Devassas, produzidos pelas Visitações do Santo Ofício da Inquisição. Alguns historiadores brasileiros os utilizaram amplamente, tal como Laura de Melo e Souza, em sua investigação historiográfica intitulada 'O Diabo e a Terra de Santa Cruz' (1994). Tal como veremos oportunamente, fontes como estas – dada a sua intensividade, ou a sua capacidade de apreender e expor ao pesquisador um grande número de detalhes e de relações dialógicas inter-individuais em um contexto intensificado – proporcionam a rara possibilidade de se empreender um apurado rastreamento do cotidiano, do imaginário e dos ambientes de sociabilidade relativos. Da mais recôndita intimidade do lar e das secretas conversas das alcovas à exposição da agitada vida humana que transita nas ruas, a leitura de processos como estes pode ir aos poucos descortinando os ambientes de sociabilidade, e ir revelando não apenas a vida concreta e cotidiana – com seus modos de alimentação, indumentária, cultura material, hábitos e fórmulas de comunicação – mas também a vida imaginária e as formas de sensibilidade: os medos, crenças, esperanças, invejas, desalentos e desesperos.<br />
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O mesmo ocorre para os processos criminais do período moderno. Importante se ter em vista que, nestes casos, é de menor importância chegar a conclusões sobre as razões de um crime ou a culpabilidade do réu. A função do historiador não é a de desvendar crimes – tarefa do delegado de polícia – nem tampouco emitir julgamentos sobre o mesmo. Um processo, como uma devassa inquisitorial, permite rastrear a vida de testemunhas, vítimas e réus. Através do registro intensivo deste tipo de fontes, o historiador pode recuperar o dia-a-dia de anônimos do passado aos quais não teria acesso por outros meios. Em seu texto “O Dia da Caça”, um dos pioneiros do Brasil no que se refere a esta abordagem, o sociólogo José de Souza Martins se põe a acompanhar os passos do réu no seu dia-a-dia, seguindo ele mesmo os passos do delegado que tenta recuperar “o percurso trágico do criminoso, nos dias e horas que antecederam o crime” (MARTINS, 1992, p.301). De nossa parte, podemos acompanhá-lo, como leitores, na sua paciente montagem de um mapa que revela os vários trajetos diários do operário que é acusado do crime. É esta instigante interposição de mediadores – leitor, autor, delegado, depoentes, personagens da cena-crime – cada um seguindo os passos do outro em uma autêntica arqueologia de textos que se recobrem uns aos outros, o que traz a estas fontes uma espécie de ‘dialogismo transversal’. Mas é também na multiplicação das vozes no plano sincrônico – correspondente no contexto mais imediato do próprio crime à contraposição das vozes do réu, das testemunhas, das vítimas – que iremos encontrar o dialogismo final, constituinte da trama que corresponde à última camada arqueológica que o processo criminal nos oferece.<br />
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O dialogismo presente nas fontes processuais, as diferentes versões que através delas se conflituam, as visões de mundo que os atores sociais encaminham uns contra os outros, as redes de rivalidades e solidariedades que daí emergem, as identidades e preconceitos, é todo este vasto e dialógico universo – não apenas capaz de elucidar as relações inter-individuais, como também de esclarecer a respeito das relações de classe – o que se mostra como principal objeto de investigação para a análise micro-historiográfica que se torna possível a partir deste tipo de fontes .<br />
Além dos processos criminais, jurídicos e inquisitoriais, há vários outros tipos de fontes dialógicas. Existem inclusive as fontes de ‘dialogismo implícito’, aquelas que dão voz a indivíduos ou grupos sociais pelas suas margens, pelos seus contracantos, ou mesmo através dos seus silêncios e exclusões. Assim, por exemplo, o período do escravismo colonial no Brasil conhece a prática do estabelecimento de “irmandades” (de homens negros, pardos, brancos, escravos ou libertos, de portugueses ou brasileiros). Análogas às confrarias medievais no que se refere ao fato de que acomodavam dentro de si grupos de indivíduos em quadros auxiliares de sociabilidade e solidariedade, elas cortavam a sociedade a partir de um novo padrão. O que nos interessa para falar do dialogismo implícito são as suas cartas de compromisso, as suas atas, os documentos que revelam seus procedimentos de inclusão e de exclusão. No interior da população africana ou afro-descendente que havia sido escravizada, elas deixam entrever os diversos grupos identitários que se escondem sob o rótulo do “negro”.<br />
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João José Reis, que as estudou em detalhe, observa o estabelecimento de uma discreta arena de disputas inter-étnicas na Irmandade do Rosário dos Pretos da Igreja da Conceição da Praia, na Bahia de 1686. Dela participavam irmãos e irmãs angolanos e crioulos (negros nascidos no Brasil) na época de seu primeiro compromisso. “Embora sem explicitar isto, previa-se a entrada de gente de outras origens, inclusive os brancos e mulatos, mas só crioulos e angolas eram elegíveis, em números iguais, a cargos de direção” (REIS, 1996, p.14). Já na Irmandade do Rosário da Rua de João Pereira, a associação se estabelecia entre benguelas e jejes. O que nos revelam estas fontes em termos de vozes sociais? Através delas, dos seus termos de compromisso e documentação corrente, os grupos sociais e as identidades são postas a falar, mesmo as que são silenciadas através da exclusão. O poder é partilhado por grupos específicos dentro da escravaria mais ampla. Algumas outras identidades são aceitas, mas em um segundo plano; outras são excluídas. As redes de solidariedade e as rivalidades terminam por falar. Mesmo quando silenciados através da exclusão, alguns grupos deixam soar a sua voz, nem que seja para dar a entender que são odiados, temidos, desprezados, ou que, de sua parte, também odeiam e desprezam. O grupo social aparentemente unificado pela cor, como queria o branco colonizador, revela através do dialogismo implícito a sua pluralidade de vozes internas.<br />
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Vamos nos referir em seguida à fontes de ‘dialogismo explícito’, como é o caso daquelas fontes nas quais um determinado agente ocupou-se de pôr por escrito as falas de outros. Elas são dialógicas não apenas porque são várias estas “falas de outros”, mas também porque o mediador, o compilador da fonte ou o agente discursivo que elabora um texto sobre o texto, representa ele mesmo também uma voz (quando não um complexo de várias vozes, já que através do mediador pode estar falando também uma instituição, uma prática estabelecida, uma comunidade profissional, para além de sua própria fala pessoal). Com base nestes aspectos, podemos definir as fontes relativas ao “dialogismo explícito” como aquelas que são atravessadas de maneira mais contundente por um mediador que tem a consciência de estar situado diante de uma alteridade, diante da necessidade de uma mediação, de uma ‘tradução do outro’ que precisará ser feita em si mesmo e depois, possivelmente, oferecida a novos leitores.<br />
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Os relatos de viagem, por exemplo, comportam a sua margem de dialogismo. Pensemos naqueles viajantes europeus que estiveram percorrendo a África, a América do Sul e particularmente o Brasil – pois essa era uma nova moda romântica bastante em voga no século XIX. Estes viajantes entram em contato com culturas que lhes são totalmente estranhas, e fazem um esforço sincero de transmitir a um leitor – que eles idealizam sentado confortavelmente em uma residência européia – as estranhezas que presenciaram, as bravatas e desafios que tiveram de enfrentar por serem europeus aventureiros em terras tropicais e selvagens, ou em cidades rústicas, habitadas por novos tipos sociais tão desconhecidos deles como de seus leitores. Marco Pólo, no seu Livro das Maravilhas, escrito no século XIII, já trazia à literatura o seu próprio relato de viagens, nos quais descortinava aos seus leitores europeus um mundo completamente distinto de tudo o que eles até então haviam visto. A China e outras terras do oriente surge nos seus relatos com toda a sua imponência dialógica, beneficiando os europeus de sua época de um choque de alteridade que mais tarde lhes seria muito útil, quando precisaram submeter as populações incas, maias e astecas nas Américas do século XVI.<br />
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Exemplos particularmente interessantes de fontes dialógicas, de que não trataremos neste momento, são as organizações mediadas de “falas dos vencidos”. É o caso dos depoimentos de astecas que sofreram impactos da Conquista da América, no século XVI, e que foram elaborados pelos próprios astecas sob a orientação do padre jesuíta Sahagún. Estas fontes, habitualmente conhecidas como “os informantes de Sahagún’, pretendem dar voz aos astecas que foram vencidos e massacrados pelos conquistadores espanhóis liderados por Hernán Cortez, no século XVI. Ao serem elaboradas tanto no idioma nativo como em espanhol, estas fontes não apenas procuram dar voz a uma cultura, mas também superpõem-lhe um outro texto, uma outra cultura e uma outra visão de mundo: a do padre jesuíta que, por mais bem intencionado que estivesse em dar voz aos vencidos, não tem como extrair-se, a si mesmo, do discurso dos astecas a cujas falas ele traz uma organização.<br />
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Antes de prosseguirmos, podemos nos perguntar: o que se precisa ou pode-se aprender com estes tipos de fontes que são as ‘fontes dialógicas’. Diremos inicialmente que aqui será necessário um novo talento: o “talento arqueológico”. Não nos referimos porém à capacidade de lidar com as diferentes camadas de terra, mas a algo ainda mais sutil: a habilidade de decifrar diferentes camadas de filtragens. O talento de perceber uma coisa a partir da outra é desde já, de alguma maneira, uma habilidade polifônica (a mesma que se torna necessária ao ouvinte de música que se põe a escutar composições musicais constituídas por várias vozes que avançam paralelamente, uma por sobre a outra, como nas composições de Johan Sebastian Bach).<br />
As fontes produzidas por missionários, como o padre jesuíta Sahagún, sempre colocam em pauta o dialogismo, e este também será o caso das fontes que foram trabalhadas pelo etno-historiador Richard Price em seu livro Alabi’s World (1990), um texto que recebeu de Eric Hobsbawm alguns interessantes comentários críticos sobre o uso de fontes históricas – particularmente sobre as fontes dialógicas – no texto intitulado “Pós-Modernismo na Floresta”. Vale a pena refletir sobre este texto, e também sobre os comentários de Hobsbawm, pois ele nos servirão como ponto de partida para elucidar alguns cuidados e potencialidades metodológicas envolvidos no trabalho com as fontes dialógicas.<br />
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O estudo de Richard Price no ensaio em questão dirige-se às sociedades saramakas, que foram constituídas no Suriname nos séculos XVIII e XIX a partir de quilombolas que conseguiram se apartar do Sistema Escravista e construir uma sociedade em novas bases no interior daquela região sul-americana. Os suramakas, os “negros da mata” do Suriname, não eram cristãos na sua maioria; mas com eles tiveram de interagir os missionários Morávios, nas suas tentativas de evangelização. Estes últimos produziram extensa documentação a respeito da sociedade saramaka da qual se utilizou Richard Price, com vistas à elaboração de sua pesquisa e análise. Dois problemas surgem, e aqui o tomaremos como exemplificação acerca de problemas a serem enfrentados pelos historiadores de hoje no trato com as suas fontes. Os irmãos morávios, conservadores e ultra-religiosos, deixam inevitavelmente transparecer nas fontes o seu fracasso em compreender aquela estranha sociedade saramaka que pretendiam catequizar. Eles enxergam o mundo saramaka a partir do seu próprio filtro, da sua própria visão de mundo, e, ainda que sinceros no seu esforço de compreender a alteridade com a qual se defrontam, enfrentam a óbvia dificuldade de estarem presos a horizontes mentais que não lhes permitem compreender adequadamente certos aspectos da sociedade saramaka.<br />
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Por outro lado, um outro filtro deve ser enfrentado pelo historiador que hoje toma as correspondências dos missionários morávios como fontes para compreender as sociedades saramakas do Suriname da segunda metade do século XVIII. Tal como Hobsbawm assinala, e colocaremos suas palavras entre aspas, para os pesquisadores modernos “a visão de mundo de fanáticos carolas como os morávios, com seu culto sensual e quase erótico das chagas de Cristo, é certamente menos compreensível que a visão de mundo dos ex-escravos” (HOBSBAWM, 1990, p.47-48). Desta maneira, e apenas destacamos esta obra a título de exemplificação, o problema historiográfico de análise das fontes assim se coloca em um dos aspectos para o qual mais devem estar atentos os historiadores de hoje: lidar com uma Fonte (ou constituí-la) implica em lidar com filtros, com mediações, inclusive as que fazem parte da própria subjetividade e condições culturais do pesquisador que examina o outro, a partir do outro.<br />
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Considerações análogas são desenvolvidas por Carlo Ginzburg em seu famoso texto “O Historiador como Antropólogo”, escrito em 1989. Toma-se como ponto de partida o mesmo problema metodológico enfrentado por Richard Price na obra citada anteriormente: trata-se de dar um uso historiográfico a registros escritos de produções orais – no caso específico de Carlo Ginzburg, as fontes inquisitoriais do início da Idade Moderna. As fontes inquisitoriais – que nos trabalhos de Ginzburg adquirem um novo sentido ao se ultrapassar o antigo enfoque nas “perseguições” em favor do enfoque no discurso – apresentam precisamente a especificidade de serem mediadas pelos “inquisidores”. Ou seja, para se chegar ao mundo dos acusados, é preciso atravessar esse filtro que é ponto de vista do inquisidor do século XVI; é necessário empreender o esforço de compreender um mundo através de outro, de modo que temos aqui três pólos dialógicos a serem considerados: o historiador, o “inquisidor-antropólogo”, o réu acusado de práticas de feitiçaria.<br />
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O limite da fonte – o desafio a ser enfrentado – é o fato de que o historiador deverá lidar com a “contaminação de estereótipos”. Mas uma riqueza da mesma documentação é a forma de registro intensivo que é trazida pelas fontes inquisitoriais – uma documentação atenta aos detalhes, às margens do discurso, e fundada sobre um olhar microscópico – isto, para além do forte dialogismo presente, seja de forma explícita ou implícita. Quanto à estratégia metodológica que aproxima inquisidores do século XVI e antropólogos modernos, a que dá o título ao artigo, é exatamente a de traduzir uma cultura diferente por um código mais claro ou familiar (GINZBURG, 1994, p.212).<br />
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O que nos ensina Ginzburg com o seu trabalho historiográfico sobre estas fontes, e com suas reflexões teóricas sobre as mesmas? Antes do mais, fica claro que o historiador deve formular indagações sobre os seus mediadores, para compreender tanto os seus “filtros” como para fazer a crítica de autenticidade e veracidade relacionada à sua mediação dos depoimentos dos réus. Fica claro para o autor, e esta é já uma resposta à indagação inicial, que existe no inquisidor uma vontade real de compreender, o que o leva a inquirir o detalhe e a dar efetiva voz ao acusado. Ao mesmo tempo, a este inquisidor – em que pese o seu desejo de apreender o ponto de vista do réu – nada resta senão tentar entender os depoimentos ou a cultura investigada adaptando-os às suas próprias chaves e estereótipos. A fonte inquisitorial, por estes dois fatores, torna-se intensamente dialógica (isto é: ela envolve o diálogo entre muitas vozes sociais).<br />
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O texto “O Inquisidor como Antropólogo” (1989) inicia-se com um pequeno balanço de Carlo Ginzburg sobre a apropriação historiográfica das fontes da Inquisição. Um historiador, ao aproximar-se de suas fontes, não se obriga necessariamente a historiar o uso historiográfico que até aquele momento foi feito de suas fontes, mas em todo o caso esta poderia ser uma boa recomendação metodológica. Estender um olhar sobre a historiografia que precede o próprio historiador com relação ao seu tema e ao uso historiográfico de suas fontes, permite que o historiador aprofunde a consciência histórica sobre si mesmo: saber em que ponto situa-se o seu trabalho, ao lado e contra que campos de possibilidades, diante de que redes intertextuais e inter-historiográficas. Os modos como pretende se aproximar de suas fontes repete experiências anteriores, aprimora-as, inverte-as, recusa-as em favor de novas direções?<br />
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O Quadro 3 propõe-se a sugerir um roteiro para o tratamento de fontes dialógicas. Os itens indicados não necessariamente precisam ser percorridos como etapas, e não apresentam uma ordem fixa; alguns são mesmo opcionais. O primeiro item que comentaremos é um destes que apresentamos como alternativo, mas de todo modo o deixaremos como sugestão. Trata-se de traçar, tão dedicadamente quanto possível, um pequeno histórico do tratamento historiográfico até então dispensado às fontes que agora tomamos como nosso corpus documental. As perguntas colocadas acima, em nosso entender, trazem maior consciência historiográfica sobre o tema. Ela são colocadas para a historiografia, e não para as próprias fontes ou para a realidade vivida a que se referem as fontes – o que será feito em outros itens.<br />
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Vamos retomar um pouco o texto de Ginzburg, no sentido de aprender um pouco com este micro-historiador italiano. Ele nos conta logo no início do artigo que é (surpreendentemente) tardia a descoberta dos arquivos da Inquisição para finalidades historiográficas (1994, p.203). Os primeiros historiadores da Inquisição se aproximaram da temática da Inquisição de uma perspectiva da ‘história da repressão inquisitorial’; e foi sob a limitação imposta por este horizonte de expectativas que buscaram apreender as fontes que poderiam ser constituídas pelos processos da Inquisição – dezenas de milhares na Itália, e cerca de dois mil processos de julgamentos inquisitoriais só no Friuli, que foi o universo investigado por Ginzburg. Eram de um lado historiadores protestantes de período posterior, que desejavam iluminar o heroísmo de seus antecessores frente à perseguição católica; ou que estavam interessados em revelar traços da crueldade dos repressores que pertenciam à tradição adversária. De outro lado, os historiadores que assumiam a perspectiva de uma História da Igreja Católica eram compreensivamente relutantes em se aproximar historiograficamente daqueles processos, tanto porque lhes era algo penoso descortinar o papel de seus irmãos de fé como torturadores, ainda que de hereges, como porque tendiam ou pretendiam “minimizar o Impacto da Reforma”, para aqui retomar uma observação do próprio Carlo Ginzburg (1994, p.204). Por fim, os historiadores liberais, que não se posicionavam religiosamente ou eclesiasticamente, também não se interessavam pelos processos de inquisição. Ginzburg nos explica por que:<br />
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“Sempre se considerou que as provas de bruxaria, fornecidas pelos julgamentos, eram um misto de extravagâncias teológicas e superstições populares. Estas eram, por definição, irrelevantes; aquelas podiam ser mais facilmente encaradas nos tratados demonológicos. Para os estudiosos que pensavam que o único tema histórico ‘válido’ era a perseguição, e não o seu objeto, percorrer as longas e muito provavelmente repetitivas confissões dos homens e das mulheres acusados de feitiçaria era, de fato, uma tarefa fastidiosa e inútil” (GINZBURG, 1994, p.204)<br />
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Ginzburg coloca com particular clareza o problema, neste pequeno balanço inicial da ‘história da apropriação historiográfica das fontes inquisitoriais’. Esta história – paralela a história de como a bruxaria “passou da periferia para o centro das questões históricas ‘válidas’” (GINZBURG, 1994, p.205) – mostra-nos nos seus primeiros momentos um interesse meramente eclesiástico (a favor ou contra a Reforma). Trata-se de uma apropriação historiográfica das fontes que é realizada ainda da perspectiva de uma história eclesial – de uma História da Igreja, examinada por um lado ou pelo outro – e não ainda da perspectiva de uma história religiosa, de uma história da religiosidade, e muito menos de uma ‘história do discurso religioso’, para não falar das possibilidades de uma ‘história cultural’ que toma estas fontes inquisitoriais como um caminho interessante para indagar sobre muitas outras coisas para além da religião ou das práticas religiosas em si mesmas.<br />
O que nos mostra Ginzburg no seu balanço é que uma nova pergunta ou uma nova ênfase podem abrir significativos e inusitados caminhos para a exploração de novas potencialidades em uma Fonte ou tipo de fonte. Na história da apropriação historiográfica das fontes inquisitoriais, a estagnação ou o desinteresse dos primeiros tempos só puderam ser efetivamente superados com o deslocamento do enfoque na ‘perseguição eclesiástica’ para o enfoque no discurso, no cotidiano, nas práticas culturais, bem como nos novos agentes históricos (os que entretecem uma história vista de baixo) – enfim, toda uma série de novas perspectivas que motivava a fazer com que o olhar historiográfico fosse deslocado da perseguição para o depoimento dos acusados. Nesta virada para um novo enfoque se insere o seu próprio trabalho.<br />
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Um balanço como o realizado acima – que de resto recomendamos como procedimento útil para o trabalho com qualquer tipo de fonte historiográfica, e não apenas para as dialógicas – permite que um historiador adentre o seu tema em maior nível de consciência historiográfica. Por vezes uma leitura como esta sobre a produção historiográfica anterior voltada para o tema, ou em torno das fontes escolhidas, permite que se tenha uma maior clareza sobre o que se ganha e o que se perde com a adoção de uma ou outra perspectiva. Colocar-se diante (e dentro) da história de uma produção historiográfica ajuda a escolher o caminho adequado, com plenos benefícios para a pesquisa. Por isto indicamos este procedimento como um item alternativo, mas a nosso ver importante.<br />
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O segundo item recomendado em nosso roteiro, no topo do hemisfério superior do esquema proposto, e que na verdade é o ponto de partida dos itens obrigatórios, corresponde à ‘descrição das fontes’. Sua forma textual, seu suporte material, o idioma, o tipo de vocabulário, o padrão de conteúdo, trata-se aqui de se aproximar de uma compreensão o mais abrangente e complexa quanto possível das próprias fontes, o que de resto prosseguirá nos itens seguintes. Se tratamos com processos inquisitoriais do século XVI, teremos que nos familiarizar com a estrutura do processo inquisitorial, compreender seu dialogismo, sua dinâmica interna, os tipos obrigatórios que o articulam (acusadores, investigadores, réus, testemunhas), e ainda as práticas que o estabelecem (investigação, inquérito, eventualmente a tortura). Se utilizamos como fontes historiográficas os relatos de viagem, será preciso compreender o que são os ‘relatos de viagem’ como gênero literário realista, e também compreender especificamente estes relatos de viagem específicos que tomamos para nossas fontes. Quem é o emissor desta fonte, e de outros tipos de fontes? Genericamente, quem é o ‘viajante’, e especificamente quem é este viajante? A que público se destina um relato como este? A que práticas culturais este gênero de texto atende? Se é um processo – embora isto seja óbvio – que finalidade ele cumpre?<br />
Questões como as envolvidas na ‘descrição das fontes’, remetem ao que já discutimos sobre a necessidade ou possibilidade de alguns textos serem examinados como “processos comunicativos”, o que envolve as figuras do emissor e do receptor, a existência de uma mensagem, os objetivos desta (comover, divertir, manipular, seduzir, persuadir, impor, esclarecer, mover, paralisar). Em se tratando de processos criminais ou inquisitoriais, documentação complexa que se articula em diversos tipos de texto e em diversos níveis, não se trata de compreender as instâncias de um processo comunicativo, mas sim compreender o papel de cada um dos seus agentes discursivos, e de perceber não propriamente uma mensagem, mas uma finalidade do processo como um todo pra depois, talvez por dentro, retornarmos as mensagens através dos depoimentos que instauram discursos específicos.<br />
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O terceiro item recomendado em nosso roteiro, logo em seguida a este, refere-se ao ‘contexto das fontes’. Para o caso das fontes de Richard Price sobre os saramakas, seria o caso de dar a si mesmo as adequadas possibilidades de entender as ‘condições de produção’ daquelas correspondências pessoais dos missionários morávios que foram tomadas pelo historiador americano como documentação central em seu trabalho. Se possível, é interessante levantar não apenas o contexto mais imediato das fontes, mas também a sua história como fonte: o contexto que as precede (uma prática dos missionários morávios de registrar relatos e se comunicar com suas bases através de correspondências deste tipo) e também a história posterior: como estas fontes chegaram até nós, que caminhos percorreram até encontrarem seu pouso mais estável em algum arquivo? Para o caso dos “Informantes do Sahagún”, seria o caso de nos aproximarmos da história de uma prática jesuítica, de verificar casos que precederam a experiência do jesuíta Sahagún junto aos astecas submetidos pelos conquistadores espanhóis. Se isto for possível, claro. Depois, verificar como estas fontes chegam até nós, historiadores atuais.<br />
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Há ainda o ‘contexto’ não da produção da fonte, mas dos fatos ou processos a que ela remete ou se refere. Se trata-se de um processo, teremos de esclarecer os aspectos que envolvem o crime ou a acusação de heresia: especificamente este crime ou esta acusação de heresia com a qual estamos lidando. Quem são os personagens envolvidos na trama? Que posição ocupam, uns em relação aos outros? Que relações de solidariedade e rivalidade emergem destas relações? Algumas destas perguntas serão preenchidas aos poucos, no decorrer da investigação historiográfica e da análise das fontes, mas apenas as situamos aqui como possibilidades para a constituição do contexto. Mais ainda, e mais importante, qual será o grande contexto? O que embasa esta sociedade e o que define os seus grandes horizontes, dos quais nenhum dos atores envolvidos pode escapar, por serem estes os horizontes intransponíveis de sua sociedade e de sua época? Começamos a lançar aqui as bases para entretecer uma história. Se há vários personagens envolvidos, talvez seja mesmo útil construir o contexto de cada um deles, se não aqui, ao menos no momento da investigação em que isto de fizer necessário.<br />
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De igual maneira, quando o que investigamos são as práticas ou as repercussões de uma prática, é preciso delinear também o contexto desta prática específica, e não apenas o dos atores sociais que estão com ela envolvidos, ou o contexto dos acontecimentos que tomaram forma através destas relações. A própria prática herdada de outras culturas, quando deslocada para uma nova sociedade, torna-se uma outra coisa, e precisa ser recontextualizada. Pensemos nas heranças medievais e modernas de práticas pagãs, nas sobrevivências das práticas mágicas e da alquimia no século XVIII. Ser um alquimista na era de Newton (e o próprio Newton tinha o seu lado alquimista), é algo bem distinto de ser um alquimista nos tempos medievais de Nicolas Flamel (1330-1418). Uma prática deslocada precisa ser recontextualizada, reinserida em seu “contexto total”.<br />
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A construção do “Contexto”, e eventualmente o que poderá ser entendido como uma “Recontextualização”, constitui uma etapa extremamente importante para qualquer tipo de fontes (e não apenas para as dialógicas). Em um artigo que será comentado mais adiante, Edward Palmer Thompson (1924-1993) chama enfaticamente atenção para a necessidade de reinserir as evidências, os discursos, as práticas ou os processos examinados em seu “contexto total”. Seu mote para a discussão desta questão, do qual mais adiante nos aproximaremos em maior nível de profundidade, é a crítica da sempre incorreta análise descontextualizada dos folcloristas que examinam rituais e práticas culturais como meras permanências de tradições anteriores, e a necessidade que deve ser perseguida pelos historiadores culturais de compreender estes mesmos rituais e práticas à luz das novas funções e usos correntes que estas práticas assumem em outras sociedades (THOMPSON, 2001, p.231). Um antigo ritual pagão deslocado para uma sociedade cristã industrial e para um ambiente urbano é já uma outra coisa, que não mais o que era nos seus tempos romanos. Com relação a esta preocupação historiográfica fundamental a que chamaremos de “recontextualização”, mais do que de uma “contextualização” – pois neste caso específico tratam-se de práticas que foram produzidas em uma configuração social mas deslocadas para outra – poderemos tomar emprestadas as irretocáveis palavras de Edward Thompson:<br />
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“O significado de um ritual só pode ser interpretado quando as fontes (algumas delas coletadas por folcloristas) deixam de ser olhadas como fragmento folclórico,uma ‘sobrevivência’, e são reinseridas no seu contexto total” (THOMPSON, 2001, p.238)<br />
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Retomado o nosso esquema de crítica documental, os próximos procedimentos referem-se já especificamente às fontes dialógicas. Enquanto os quatro procedimentos até aqui propostos referem-se a todos os tipos de fontes (e não apenas às narrativas, como também às seriais e informativas) – isto no sentido de que para toda fonte será útil recuperar a rede historiográfica que já a abordou, empreender a sua descrição tão complexa quanto possível, e adentrar os contextos tanto da própria produção da fonte como do processo a que ela se refere – já os procedimentos seguintes são especificamente voltados para o trabalho sobre as fontes dialógicas.<br />
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O quinto empreendimento que indicamos, refere-se à identificação e descrição da ‘polifonia interna das fontes’. Trata-se de identificar as várias vozes que compõem esta trama polifônica, situá-las em seus níveis arqueológicos (para utilizar a metáfora de Michel Foucault). Trata-se de compreender cada uma delas em um nível que se aproxima ou se afasta mais do historiador, perceber as mediações que lhes são interpostas. Trata-se ainda de entrever os seus diálogos, perceber como se situam umas em relação às outras não apenas nos termos da espacialidade arqueológica do discurso (os níveis de mediação), mas também como as diversas vozes interagem na polifonia textual. Lembraremos aqui o que é uma “polifonia” na teoria musical, campo do qual tomamos emprestada esta metáfora. A Polifonia é a modalidade de música, o método de apresentação musical, no qual diversas vozes soam juntas, sem que uma tenha precedência sobre as demais. Exemplos conhecidos são as fugas ou os corais de Johan Sebastian Bach e outros compositores barrocos e renascentistas, em cuja música há baixos, tenores, sopranos e contraltos, ou ainda nas composições em que diversificados instrumentos entoam melodias distintas. Uma fonte histórica ‘polifônica’ será aquela na qual se expressam efetivamente diversas vozes – por vezes explicitamente, através de um espaço que lhes é concedido para a fala; por vezes implicitamente, através do discurso de um outro que mesmo sem querer termina por permitir que outras vozes falem no interior de seu discurso. Trata-se de uma situação análoga à da jovem adolescente que vai ao psicanalista e na sua fala deixa escapar, diretamente ou através de atos falhos, a voz do pai, do irmão, da mãe, do namorado que a traiu, do professor por quem nutre paixões secretas.<br />
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Perceber polifonias no discurso requer sensibilidade, mais ainda do historiador, já que ele lida com planos polifônicos envolvendo várias épocas. Entre as várias vozes com as quais irá lidar está a sua mesma. É preciso não deixar que esta sufoque as vozes históricas sobre as quais tem a responsabilidade de trazer à vida, de recuperar a dimensão exata da sua música. É preciso evitar que a sua voz, com sua especificidade e seus limites, contamine as demais. Isso seria o “anacronismo” – o pecado máximo do historiador, segundo Lucien Febvre –, que corresponde a deixar inadvertidamente que a melodia específica da temporalidade presente tome o lugar das demais com seus ritmos e soluções melódicas específicas. Temos aqui a historiadora feminista que enxerga em Safo reivindicações que são apenas suas, ou o historiador revolucionário que quer enxergar em John Ball, ou ainda o historiador protestante que convoca para a sua causa reformista todos os hereges queimados pela Inquisição. Mas a voz do historiador existe; é preciso lidar com ela, deixar que também se expresse, para que não se caia na ilusão positivista que deslocava a melodia do historiador para a austera posição de um maestro protegido pela neutralidade científica.<br />
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Recomenda-se refletir, para as fontes dialógicas, sobre as várias vozes que adquirem vida através da investigação. Depois, agrupá-las segundo as afinidades, consoante critérios que só poderão ser definidos pelo problema histórico que está orientando a pesquisa e a reflexão historiográfica. Poderemos agrupar as vozes por classes sociais, mas também por relações de solidariedade, rivalidade ou preconceito em relação ao acusado que se senta no banco dos réus. Poderemos partilhá-los por gerações ou por gêneros, se o problema da pesquisa apontar para uma coisa ou outra. Poderemos criar critérios que combinem o gênero e as categorias profissionais, de modo a distinguir as mulheres operárias das que trabalham no comércio a varejo. Poderemos até mesmo criar um recurso para clarear o timbre de cada uma das vozes envolvidas, como fez Richard Price ao escolher um padrão tipográfico para cada um dos atores sociais que é posto a falar em seu livro Alibi’s Word (1990).<br />
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Uma tarefa mais difícil do historiador dialógico é a busca de dialogismos implícitos (item 6). Pela sua própria estrutura, um texto pode registrar explicitamente a voz do outro, como é o caso dos processos criminais e inquisitoriais. O padrão de pergunta e resposta não deixa dúvidas com relação à estrutura dialógica de uma situação, embora também tenhamos os clássicos exemplos dos Diálogos de Platão, mais monólogos disfarçados em estrutura dialógica do que qualquer outra coisa. Exceção feita ao Banquete – obra dialógica por excelência – a maior parte dos diálogos platônicos apenas forja uma estrutura de oposição interativa. Isto também podia ocorrer, é preciso ressalvar, mesmo no dialogismo inquisitorial, nas ocasiões em que “as respostas dos réus não eram mais do que o eco das perguntas dos inquisidores ‘ (GINZBURG, 1994, p.208). Tanto a percepção do “monódico” que se esconde sob a aparência polifônica (ou do monólogo que se esconde na estrutura de diálogo), como a percepção do ‘dialogismo implícito’ (item 7), eis aqui algo que requer um nível maior de sensibilidade do historiador. Com relação a este último aspecto, Ginzburg cita (dialogicamente) um texto de Roman Jakobson (1896-1982), o grande lingüista russo que foi pioneiro da análise estrutural da linguagem. Jakobson antecipa Bakhtin na sua percepção radical do dialogismo humano, e nos diz que “o discurso interior é na sua essência um diálogo, e todo discurso indireto é uma apropriação e uma remodelação por parte daquele que cita, quer se trate da citação de um alter ou de uma fase anterior do ego” (JAKOBSON, 1964, p.273). O dialogismo, enfim, pode se esconder mesmo no interior do discurso do “Eu”.<br />
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Ao sexto item de nosso quadro dialógico chamaremos de ‘crítica de veracidade dos mediadores’. Para entender este item, retornaremos agora ao texto “O Inquisidor como Antropólogo”, de Carlo Ginzburg (1989), no sentido de avançar na compreensão de certos aspectos relativos às fontes dialógicas e extrair mais sugestões de procedimentos a serem incorporadas ao nosso roteiro.<br />
Quando lidamos com fontes dialógicas, e particularmente com fontes processuais, devemos tentar entender em um primeiro momento o nosso “filtro”, os mediadores que se interpõem entre nós e os acusados, testemunhas, e outros agentes emissores dos discursos que nos interessam em última instância (isto, é claro, quando não estamos diretamente interessados no discurso destes mediadores: compreender o discurso emitido pelo próprio juiz, inquisidor ou delegado que conduz a investigação criminal).<br />
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Admitindo que nosso objetivo é atingir a outra camada arqueológica – a dos acusados da Inquisição, a dos astecas resgatados pelo padre Sahagún, a dos saramakas catequizados pelos missionários morávios, a dos chineses relatados por Marco Pólo, a dos nativos retratados por Debret – teremos que passar obrigatoriamente pela camada mais próxima. Estes mediadores é que nos entregam os discursos dos outros, dos vários atores cujas falas constituirão a base de nosso trabalho. É preciso indagar, antes de mais nada, pelo seu interesse – destes mediadores – em relatar com veracidade o que viram, em registrar com maior ou menor rigor os depoimentos que recolheram, em dar voz aos seus protegidos, aos seus reprimidos, aos seus vencidos. Mais do que isto, será preciso indagar não apenas se eles possuem interesse em agir no plano da veracidade, mas também se eles são capazes de agir neste plano, se estão dotados para tal da necessária “utensilhagem mental”, para retomar aqui a antiga expressão de Lucien Febvre.<br />
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Vimos no exemplo de Richard Price, ao menos se levarmos em consideração as críticas que Eric Hobsbawm dirige ao seu trabalho, que os missionários morávios não estavam em grandes condições de compreender o estranho mundo dos saramakas. Compreender a capacidade do ‘mediador’ em se aproximar compreensivamente ou não de uma cultura ou prática cultural que lhe é estranha, ou ao menos lançar uma indagação sobre os níveis possíveis ou os limites desta compreensão, é fundamental para não naufragarmos em nossa viagem de exploração. Como vimos nos comentários de Hobsbawm sobre o ensaio de Price, trata-se de uma dupla compreensão: é preciso que nós compreendamos os nossos mediadores, e que em seguida compreendamos a compreensão que lhes foi possível sobre os seus inquiridos, os seus nativos protegidos, os seus saramakas, os seus “outros” de vários tipos. Sobre seus próprios mediadores – os inquisidores do século XVI – Ginzburg tem algo a dizer:<br />
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“Foi a ânsia de verdade por parte do inquisidor (a sua verdade, claro) que permitiu que chegasse até nós essa documentação, extraordinariamente rica, embora profundamente deturpada pela pressão psicológica e física a que os acusados estavam sujeitos. Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais que evidentes ao sabat das bruxas – que era, segundo os demonologistas, o verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais ou menos espontaneamente os estereótipos inquisitoriais então divulgados na Europa pela boca dos pregadores, teólogos, juristas, etc” (GINZBURG, 1994, p.206).<br />
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Ginzburg expõe alguns problemas nesta interessante passagem. Fala-nos por exemplo da “contaminação”. Ainda que reconheça a ‘veracidade’ (ou a intenção de veracidade) dos seus mediadores – aspectos que já comentaremos – observa um limite a ser considerado pelo analista historiador. As perguntas por vezes, já comportam respostas, ou se abrem a certos padrões de respostas e não a outros. Um certo vocabulário que se utiliza na pergunta, já pode contaminar de alguma maneira a resposta; um certo imaginário pode passar daquele que indaga àquele que responde. Este aspecto é um limite, mas também é uma riqueza. O próprio inquisidor que indaga, talvez ele mesmo já tenha sido contaminado pelos demonologistas, teólogos e pregadores de sua época. Mesmo que não fosse, ainda assim o próprio réu pode já ter sentado no banco da inquisição com conhecimento de certas imagens que fazem parte do outro campo cultural. Quando se estabelece o espaço da não-comunicação, quando ele se vê incapaz de transmitir uma imagem ou sensibilidade que é só sua, e que não existe no sistema cultural ou vocabular dos seus inquisidores, tentará romper o espaço de não-comunicação – que de todo modo é extremamente perigoso para quem está sob a ameaça de tortura – e talvez tente encontrar junto aos seus inquiridores uma linguagem ou repertório de sensibilidades em comum, algo que percebeu no seu horizonte de expectativas ou, de modo diverso, algo que escutou no mundo externo, e que supõe ser compreensível ao inquisidor. No caso do réu, por vezes ele quer escapar dali, nem que seja para a fogueira. Seu desejo é restabelecer um espaço de comunicação. O silêncio é perigoso, e pode ser mesmo doloroso.<br />
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Não é apenas sob pressão que a contaminação ocorre. Quantas concessões culturais tiveram de ser feitas pelos astecas a quem o padre jesuíta Sahagún pretendeu dar alguma voz, quando percebiam que seu protetor não conseguia penetrar no seu mundo? As palavras também são mediadores, como as imagens. Quantas aproximações deverão ter experimentado para estabelecer uma ligação entre dois mundos tão distintos como o dos europeus e o dos astecas no século XVI. Alguns destes tateamentos para preencher um espaço de não-comunicação, com vistas a restabelecer a comunicação solidária entre o jesuíta e os nativos oprimidos, devem certamente ter ficado registrados nos depoimentos que hoje constituem a chamada documentação do “Informantes de Sahagún”. Quantas manobras discursivas, torcendo e retorcendo padrões de sensibilidade, não terão sido feitas pelos quilombolas saramakas aos missionários morávios que tentavam catequizá-los, mas que se mostravam tão ineptos para a função de mediação que neles deveria ser perseguida como a principal virtude, se queriam mesmo trazer os saramakas para o seu mundo religioso. Como confiar diretamente no missionário morávio, tomando por base a correspondência que trocava com outro indivíduo de sua mesma espécie?<br />
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Para o seu universo dialógico, Ginzburg reconhece a ‘ânsia de verdade’ dos seus inquisidores. Existe outra passagem em seu artigo que é uma das mais brilhantes formas de descrever um dialogismo que também atinge o próprio historiador.<br />
“O que os juízes da inquisição tentavam extorquir às suas vítimas não é, afinal, tão diferente daquilo que nós mesmos procuramos – diferentes sim eram os meios que usavam e os fins que tinham em vista. Quando eu estava a ler processos dos tribunais da Inquisição, muitas vezes dava por mim a espreitar por cima do ombro do inquisidor, seguindo os seus passos, na esperança que também ele teria, de que o réu confessasse as suas crenças – por sua conta e risco, claro. Esta contigüidade com a posição dos inquisidores não deixa de entrar em contradição com a minha identificação com os réus. Mas não gostaria de insistir neste ponto” (GINZBURG, 1994, p.206)<br />
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Claro. Ginzburg também está dialogando com o politicamente correto de nosso ponto. Não fica bem espreitar por cima dos ombros do inquisidor para escutar a sofrida voz do réu, embora seja exatamente isto que o historiador acaba tendo de fazer. Mas, de todo modo, ao confessar a identificação com a ânsia de verdade do inquisidor, com o seu desejo de dar voz ao outro mesmo que para finalidades que o historiador reprovaria, é preciso também contrabalançar com a declaração de identificação com o réu. Não é possível aprovar nem os meios inquisitoriais nem os fins que se tinha em vista. Com esta frase, Carlo Ginzburg dialoga com os leitores de seus livros. Também é dialógica esta relação entre um autor e seus leitores. Mas, enfim, também não há muito que insistir sobre este ponto.<br />
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Deve-se atentar ainda, e registraremos como um sétimo item a ser considerado para a abordagem das fontes dialógicas, a identificação e análise dos ‘instrumentos e procedimentos de mediação’. A “tortura” em contexto como o da Inquisição ou das Ditaduras Militares, é um procedimento óbvio para os modelos de interrogatório violentos, e está relacionado à “assimetria entre as vozes”, da qual falaremos no próximo item. Mas há também inúmeros outros instrumentos de mediação ou intervenção que podem alterar o conteúdo ou o registro das vozes. Na documentação policial, como por exemplo nas “ocorrências”, deve-se considerar a intervenção do escrivão que anota os depoimentos, mas que nesta operação já os altera eventualmente; e mesmo um certo padrão prévio de maneiras de redigir pode estar entre os elementos capazes de distorcer as vozes, menos ou mais levemente.<br />
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Uma recomendação final é recuperar a rede de poderes, e eventualmente de micro-poderes, que se integra ao dialogismo das fontes (item 8). Tal como nos mostra Carlo Ginzburg (1994, p.208), o Inquisidor e seu Réu – embora se situem no plano do discurso como duas vozes de igual ressonância para o historiador – estão em situação de desigualdade, o mesmo ocorrendo com o antropólogo e os seus nativos ou outros informadores.Aqui aparecem situações que envolvem poderes reais e poderes simbólicos, mas que em todo o caso expõem uma assimetria entre as vozes examinadas. Há também uma assimetria entre os quilombolas saramakas e os missionários morávios estudados por Richard Price, embora seja difícil dizer quem está em posição mais confortável perante o outro. São assimetrias em que um poder não se impõe sobre a voz oprimida, tal como é o caso óbvio da Inquisição ou do poder simbólico que exerce o jesuíta Sahagún sobre os astecas já sobreviventes de uma sociedade destroçada pelos espanhóis. Entre os saramakas e os missionários morávios temos poderes e micro-poderes que se confrontam. O primeiro grupo se esquiva do segundo; este, por sua vez, acredita ter exercido algum poder simbólico, quando na verdade apenas foi empurrado para o mundo da não-comunicação. Não há poder mais sutil que o de enganar o antropólogo ou o missionário.<br />
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Leia o artigo completo no qual este texto encontra-se inserido: <a href="http://ning.it/hhjbtC">http://ning.it/hhjbtC</a><br />
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BARROS, José D'Assunção. “Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos” in Revista Albuquerque. Vol.3, n°1, 2010. <a href="http://ning.it/hhjbtC">http://ning.it/hhjbtC</a><br />
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Referências:<br />
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CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.<br />
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GINZBURG, Carlo. “Raízes de um Paradigma Indiciário” In Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 143-179 [original: 1986].<br />
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GINZBURG, Carlo. “Provas e Possibilidades” In A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991. 179-202.<br />
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GINZBURG, Carlo. “O Inquisidor como Antropólogo” In A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1994 [original: The Inquisitor as Anthropologist: an Analogy and its implications” in Class, Myths and the Historical Method. Baltimore: John Hopkins University Press, 1989].<br />
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MARTINS, José de Souza Subúrbio. São Paulo: HUCITEC, 1992.<br />
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PRICE, Richard. Alabi’s World. Baltimore: John Hopkins University Press, 1990.<br />
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REIS, José Carlos. “Os Annales: a Renovação Teórico-Metodológica e ‘Utópica’ da História pela Reconstrução do Tempo Histórico” In SAVIANI, Dermeval, LOMBARDI, José Claudinei e SANFELICE, José Luís (orgs.). História e História da Educação – o Debate Teórico-Metodológico Atual. Campinas: Editora Autores Associados, 1998.<br />
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SOUZA, Laura de Melo. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.<br />
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THOMPSON, Edward P. “Folclore, Antropologia e História Social” In As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, São Paulo: UNICAMP, 2001. p.254-255].José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-848621442180844242011-01-08T14:42:00.001-08:002011-02-09T16:15:45.786-08:00Fonte Histórica (5). Abordagem Serial e recortes na FonteDizíamos em momento anterior que os historiadores lidam habitualmente com um recorte tridimensional de seu tema: Tempo, espaço e Problema. Vamos considerar, neste momento, um outro tipo de recorte possível para os historiadores de hoje: o ‘recorte serial’.<br />
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Neste caso, recorta-se o objeto não propriamente em função de uma determinada realidade histórico-social concernente a uma delimitação espaço-temporal preestabelecida, mas mais precisamente em função de uma determinada série de fontes ou de materiais que é constituída precisamente pelo historiador. Este tipo de caminho historiográfico começou a emergir a partir de meados do século XX, tendo como marco a já mencionada obra de Pierre Chaunu sobre 'Sevilha e o Atlântico' (1954).<br />
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Na chamada ‘História Serial’ o historiador estabelece uma “série”, e é esta série que particularmente o interessa. François Furet, em seu 'Atelier do Historiador' (1982), define a História Serial em termos da constituição do fato histórico em séries homogêneas e comparáveis. Dito de outra forma, trata-se de “serializar” o fato histórico, para medi-lo em sua repetição e variação através de um período que muitas vezes é o da longa duração. Na verdade a duração longa, ou pelo menos a média duração (relativa às conjunturas), foram as que predominaram nos primeiros trabalhos de História Serial – muito voltados, nesta primeira época, para a História Econômica e para a História Demográfica, ao mesmo tempo que combinados com a perspectiva de uma História Quantitativa. Todavia, pode-se proceder a uma serialização relacionada também a um período relativamente curto, desde que o conjunto documental estabelecido seja suficientemente denso.<br />
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De certo modo, as possibilidades de tratamento serial permitiram uma sensível ampliação de alternativas em termos de recorte historiográfico, uma vez que as séries singulares a serem construídas por cada historiador já não se enquadrariam nas periodizações tradicionalmente preestabelecidas. Criar uma série é, em certa medida, recriar o tempo – assumi-lo como ‘tempo construído’, e não como ‘tempo vivido’ a ser reconstituído.<br />
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Por outro lado, optar pelo caminho serial pressupõe necessariamente escolher ou construir um problema condutor muito específico – problema este que é fator fundamental na constituição da própria série. A História Serial veio assim diretamente ao encontro de uma História Problema, como as demais modalidades historiográficas que passaram a predominar na historiografia profissional do século XX.<br />
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Com relação a este aspecto, e em se tratando de uma série documental homogênea, não teria sentido examinar esta série evasivamente, de modo meramente impressionista. A História Serial constitui-se necessariamente de uma leitura da realidade social através da série que foi construída pelo historiador em função de um certo problema*. Não se trata, assim, de optar inicialmente pelo estudo de uma determinada sociedade para só depois buscar as fontes que permitirão este estudo ou o acesso a esta sociedade, como poderia se dar em outros caminhos historiográficos. O que o historiador serial estuda é precisamente a série: este é basicamente o seu recorte e a essência de seu objeto. E pode-se compreender como uma “série” tanto os fatos repetitivos que permitem ser avaliados comparativamente, como uma determinada documentação homogênea.<br />
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No primeiro sentido, François Furet fala em termos de uma serialização de fatos históricos que trazem entre si um padrão de repetitividade (fatos históricos que serão obviamente de um novo tipo, não mais se reduzindo aos acontecimentos políticos). No segundo sentido, ao examinar os novos paradigmas historiográficos surgidos no século XX, Michel Foucault assinala que “a história serial define seu objeto a partir de um conjunto de documentos dos quais ela dispõe” . Isto abre naturalmente um grande leque de novas possibilidades:<br />
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“Assim, talvez pela primeira vez, há a possibilidade de analisar como objeto um conjunto de materiais que foram depositados no decorrer dos tempos sob a forma de signos, de traços, de instituições, de práticas, de obras, etc ...” (FURET, 1982]<br />
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Portanto, em que pese que fontes administrativas, estatísticas, testamentárias, policiais e cartoriais se prestem admiravelmente a um trabalho de História Serial, é possível também constituir em série documentação literária, iconográfica, ou mesmo práticas perceptíveis a partir de fontes orais. É mesmo possível constituir séries às quais não se pretenda necessariamente aplicar um tratamento quantitativo propriamente dito, mas sim uma abordagem mais tendente ao qualitativo – interessada ainda em perceber tendências, repetições, variações, padrões recorrentes e em discutir o documento integrado em uma série mais ampla, mas sem tomar como abordagem principal a referência numérica.<br />
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Uma das obras de Gilberto Freyre, por exemplo, constitui como série documental para o estudo da Escravidão no Nordeste os anúncios presentes em jornais da época – onde os grandes senhores anunciavam a fuga de escravos fornecendo descrições detalhadas dos mesmos, inclusive sinais corporais que falavam eloqüentemente das práticas inerentes à dominação escravocrata . Não é propriamente o Escravo que é o seu objeto, mas “o Escravo nos anúncios de jornal”, como o próprio título indica. Ou seja, busca-se recuperar um discurso sobre o Escravo a partir de uma série que coincide com os periódicos examinados pelo autor; procura-se dentro desta série perceber uma recorrência de padrões de representação, mas também as singularidades e variações, e por trás destes padrões de representação os padrões de relações sociais que os geraram.<br />
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Quantitativos ou qualitativos, os caminhos historiográficos marcados pela ultrapassagem do documento isolado passaram a se integrar definitivamente ao repertório de possibilidades disponíveis para o historiador. Interessa-nos dar a perceber aqui que o recorte documental mostra-se como uma outra possibilidade para o historiador delimitar o seu tema. Definido este recorte, surgirá então uma delimitação temporal específica, que será válida para aquele recorte problemático e documental na sua singularidade, e não para outros. Dito de outra forma, em alguns destes casos é uma documentação que impõe um recorte de tempo, a partir dos seus próprios limites e das aberturas metodológicas que ela oferece.<br />
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Será bastante buscar uma exemplificação final com o próprio estudo pioneiro de Pierre Chaunu. O recorte de sua tese, estabelecido entre 1504 e 1650, é criado a partir de uma primeira data em que a documentação da ‘Casa de Contratação de Sevilha’ lhe permite uma construção estatística, e extingue-se no marco de uma segunda data quando a documentação já não permite uma avaliação quantitativa dos fatos (precisamente uma data relativa ao momento em que o comércio atlântico deixa de trazer a marca do predomínio espanhol e em que, consequentemente, a documentação de Sevilha se dilui como definidora de uma totalidade atlântica). O recorte documental problematizado, enfim, organizou o tempo do historiador.<br />
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O recorte serial é em boa parte dos casos um ‘recorte na fonte’. Mas existem, para além disto, outras possibilidades de recortar o tema de acordo com a fonte. Pode ser que o historiador pretenda examinar uma obra singularizada – ou para identificar o pensamento de um autor, ou para analisar a sua inserção nos limites da época – como se faz muito habitualmente nos campos da História das Idéias e da História Social das Idéias. Pode ser que o interesse seja examinar uma determinada produção cultural, e que uma crônica, um cancioneiro ou uma seqüência iconográfica surjam como objetos de interesse de uma História Cultural ou de uma História Social da Cultura. Um mito ou um conjunto de mitos pode se constituir simultaneamente nas fontes e objetos de um trabalho de Antropologia Histórica. As possibilidades de empreender ‘recortes na fonte’, conforme se vê, são inúmeras.<br />
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[O presente texto foi extraído do livro "O Projeto de Pesquisa em História"]<br />
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[BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição. p.47-51]<br />
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Referências:<br />
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BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição.<br />
CHAUNU, Pierre e CHAUNU, Huguette. Séville et l’Atlantique. Paris: S.E.V.P.E.N., 1955-1956.<br />
FREYRE, Gilberto. O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo: Brasiliana, 1988.<br />
FURET, François. A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1991. v. I.José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-57519865474227255752011-01-08T14:41:00.000-08:002011-01-29T07:28:05.617-08:00Fonte Histórica (4). Aspectos a serem observados em uma FonteTentemos uma síntese. Tomaremos como ponto de partida o texto autoral, isto é, o texto que apresenta um autor definido (mesmo que anônimo), ao contrário do documento que é produzido institucionalmente como massa de dados (uma lista censitária, ou os documentos do fisco), ou que se produz involuntariamente, tal como os objetos que se perdem e depois são reencontrados na pesquisas arqueológicas.<br />
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Quando o historiador está diante de um texto que foi produzido por alguém, a primeira pergunta que costuma vir à sua cabeça é a que busca o autor. Quem escreveu este texto? O que pensava? Que intenções tinha no momento em que o escreveu? Fez de livre ou espontânea vontade, ou sob pressão? A quem visava?<br />
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Organizemos isso. Quando perguntamos "quem é o autor", podemos pensar em um indivíduo específico. Contudo, cedo aprendem os historiadores em formação que os indivíduos não se encontram soltos no tempo, desgarrados de uma sociedade, independentes dela. Se podemos nos perguntar pela (1) 'Autoria', logo também deveremos nos perguntar pelo (2) 'Contexto' que constrange ou libere esta autoria.<br />
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O Contexto corresponde a uma época, e também a uma sociedade que envolve um autor. Dificilmente um homem pode escapar aos limites impostos pelo seu tempo, e aos horizontes de percepção que lhe são franqueados a partir de sua época e da sociedade em que vive. Muitos dirão que, em hipótese alguma, um autor não pode escapar ao seu tempo. De um modo ou de outro, é nas águas de um Contexto que um Autor emerge: nelas ele se apoia, e contra elas ele se debate.<br />
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A pergunta pelo contexto autoral é uma pergunta que busca prescrutar também a sociedade no qual o indivíduo autoral está inserido. Perguntamo-nos, quando tentamos relacionar um Autor a uma Sociedade, pela 'posição social' que ocupa, pela 'profissão' que exerce, pelas 'instituições' que o enquadram.<br />
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Devemos também entender que um Autor, como todo indivíduo, possui uma história. Um texto foi escrito em determinado momento desta história. Podemos nos perguntar, portanto, pelas 'circunstâncias autorais'. Maquiavel, que foi eminência parda da política florentina em determinados momentos de sua história, escreveu sua obra mais conhecida - "O Príncipe" - alijado do poder. Essas circunstâncias autorais não podem deixar de interferir em sua obra. Adolf Hitler escreveu o primeiro volume do livro "Mein Kampf" na prisão, para a qual foi enviado após o fracassado "Putsch da Cervejaria" (1923). Além das circunstâncias da prisão, escreve-o no contexto que o alçou à liderança dos nazistas. Como estas circunstâncias - aquelas em que Maquiavel escreveu "O Príncipe", ou aquelas em que Hitler escreveu "Mein Kampf" - interferem ou ajudam a formatar cada um destes textos?<br />
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Na maior parte dos casos, senão sempre, um texto também é escrito visando um (4) Receptor. Escreve-se para comover alguém, para intimidá-lo, para informá-lo, para motivá-lo, para provocar-lhe reações.A Recepção, já discutimos isto anteriomente, termina por se inscrever também na Produção de um texto, uma vez que um autor também escreve o seu texto pensando naqueles que irão recebê-lo.<br />
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Todo texto lida com um (5) Vocabulário. Mesmo que o autor não pense nisso ou não deseje isto, um Vocabulário nos diz muitas coisas acerca deste autor - inclusive as que ele não pretendia dizer. Também diz muitas coisas acerca daqueles que lerão o texto. O texto, conforme já dissemos, é um ato de comunicação. O Vocabulário de um texto fala-nos de seu autor e de seus leitores.<br />
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Um texto pertence a algum (6) Gênero Textual. Ele pode ser um poema, uma carta, um edito régio, um ensaio científico, umdiscurso político, afora inúmers outras possibilidades, Há implicações quando estamos diante de um gênero ou de outro. O historiador, ao analisar o texto como fonte histórica, precisa se avizinhar deste aspecto. De igual maneira, todo texto possui uma (7) Forma, que corresponde à maneira como o discurso é organizado no texto. esta forma deve ser, igualmente, objeto de análise do historiador.<br />
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Já discutimos que todo texto está em (8) Intertextualidade. Ou seja,ele dialoga com outros textos: explicitamente ou implicitamente, voluntariamente ou involuntariamente. Recuperar a rede intertextual na qual se insere um texto é um passo importante da operação historiográfica de análise textual.<br />
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É claro, todo texto possui um (9) Conteúdo, embora seja muitas vezes difícil separar forma e conteúdo. O texto se apresenta como mensagem, como 'objeto de comunicação' que, é quase um truísmo dizer, pretende comunicar algo. O que o texto pretende dizer? O que ele não diz. É preciso analisar também, nesta mesma operação, os seus Silêncios (10).<br />
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Nem todo documento é autoral. Mas também podemos substituir algumas categorias. Se um documento do Censo não visa um Receptor, de todo modo, ele visa uma Finalidade. Os registros do Censo foram pruduzidos por algum motivo, ou para atender a determinadas finalidades. O que foi dito para o "texto", também pode ser pensado eventualmente para outros registros, como a 'imagem' ou a 'oralidade', embora cada tipo de suporte também apresente as suas singularidades.<br />
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Estes, e outros aspectos, devem ser considerados pelo historiador quando está diante de sua fonte.José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-65387690867504827242011-01-08T14:07:00.000-08:002011-01-09T18:47:06.892-08:00Fonte Histórica (3) Dimensões envolvidas na análise qualitativa do texto[o presente texto foi extraído do livro "O Campo da História"]<br /><br /><br />No último texto, vimos que, nos dias de hoje, tudo pode ser fonte histórica. Para muito além da documentação escrita, os historiadores contemporâneos aprenderam a lidar com fontes imagéticas, fontes materiais, fontes imateriais, fontes orais, ou mais o que s possa imaginar para além do suporte escrito.<br /><br />Isso não quer dizer,todavia, que tenha decrescido o uso de fontes escritas pelos historiadores. Se outros suportes que não o escrito passaram a ser considerados pelos historiadores como fontes diretas para os seus estudos, o fato é que ainda hoje o historiador vê se ampliarem cada vez mais as oportunidades para trabalhar com os ‘textos escritos’. Ou seja, se a historiografia do século XX ampliou o seu conceito de fonte histórica para um mundo não-textual de possibilidades, também ampliou extraordinariamente os tipos de documentação escrita com as quais irá lidar. Não mais apenas as fontes institucionais e diplomáticas ou as crônicas oficiais que praticamente ocupavam todas as expectativas do historiadores do século XIX; hoje qualquer texto pode ser constituído pelo historiador como fonte: o diário de uma jovem desconhecida, uma obra da alta literatura ou da literatura de cordel, as atas de reunião de um clube, as notícias de jornal, as propagandas de uma revista, as letras de música, ou até mesmo uma simples receita de bolo. Não há mais limites para os tipos de textos que podem servir como materiais para o historiador.<br /><br />Houve uma mudança na postura do historiador para com estes textos. Se antes os textos eram quase que exclusivamente utilizados como ‘testemunhos’ dos quais os historiadores do século XIX procuravam extrair informações mais ou menos diretas (na maior parte dos casos de uma maneira ingênua que associava o documento histórico à idéia de “prova”), hoje as fontes textuais são também utilizadas como ‘discursos’ a serem decifrados em si mesmos. Relembrar, ainda uma vez, o que vem a ser a ‘fonte histórica’, pode ajudar a iluminar melhor esta distinção entre “testemunho” e “discurso”.<br /><br />A fonte histórica, já o dissemos, é aquilo que coloca o historiador diretamente em contato com o seu problema. Ela é precisamente o material através do qual o historiador examina ou analisa uma sociedade humana no tempo, ou um processo histórico na dinâmica do seu devir. Uma fonte pode preencher uma das duas funções acima explicitadas: ou ela é o meio de acesso àqueles fatos históricos que o historiador deverá reconstruir e interpretar (fonte histórica = fonte de informações sobre o passado), ou ela mesma ... é o próprio fato histórico. Vale dizer, neste último caso considera-se que o texto que se está tomando naquele momento como fonte é já aquilo que deve ser analisado, enquanto discurso de época a ser decifrado, a ser compreendido, a ser questionado. É neste sentido que diremos que a fonte pode ser vista como ‘testemunho’ de uma época e como ‘discurso’ produzido em uma época.<br /><br />A historiografia, ao superar o positivismo ingênuo do século XIX, foi tendendo a valorizar cada vez mais esta dimensão da fonte histórica textual como ‘discurso’. Hoje, poderíamos dizer que a maior parte das práticas historiográficas insere-se em uma História do Discurso (ou, se quisermos, uma História Textual). Um discurso qualquer pode ser analisado tanto a partir de uma ‘abordagem qualitativa’ como a partir de abordagens 'quantitativas’, 'topológicas', ‘seriais’, considerandoque estas últimas examinam documentos reunidos em série. Falaremos das abordagens ‘serial’ e ‘quantitativa’ em outra oportunidade. Por ora, reflitamos sobre as possibilidades qualitativas de um texto.<br /><br />Um texto pode ser abordado qualitativamente de muitas maneiras. Os historiadores, os críticos literários, os lingüistas, os psicanalistas, e quaisquer outros profissionais que dependam da interpretação de textos para o seu ofício (como é o caso também dos advogados e dos investigadores de polícia) não cessam de inventar novos modos de trabalhar sobre o texto, avançando para muito além daquilo que se encontra aparentemente exposto em sua superfície. As abordagens semióticas, por exemplo, hoje utilizadas por vários historiadores, enriqueceram muito as possibilidades de fazer um texto falar sobre coisas que o próprio autor do texto não pretendia dizer. Quando alguém utiliza determinadas expressões e palavras, já está dizendo algo ao bom analista de textos, independente dos sentidos que ele pretenda atribuir às palavras. A presença de certas imagens em um discurso, a recorrência de determinadas palavras, a maneira de organizar uma narrativa, as referências intertextuais (a outros textos) - sejam estas voluntárias, explícitas, implícitas ou involuntárias - tudo isto fala por si mesmo independente do ser falante que pronuncia o discurso.<br /> <br />Isto, sem levar em consideração a possibilidade de contrapor textos diferenciados, de pôr as várias versões a respeito de um acontecimento a se iluminarem ou a se contradizerem reciprocamente. Estas contradições, veremos mais adiante, podem ser de grande valia para um historiador. Sem contar que as contradições existem internamente a um mesmo texto, trazendo à tona o caráter polifônico de certos discursos.<br /><br />A riqueza de qualquer texto está no fato de que ele é simultaneamente um ‘objeto de significação’ e um ‘objeto de comunicação cultural entre sujeitos’. Estes dois aspectos na verdade se complementam: se por um lado o texto pode ser definido pela organização ou estruturação que faz dele uma “totalidade de sentido”, por outro lado ele pode ser definido como um objeto de comunicação que se estabelece entre um destinador e um destinatário (ou entre um destinador e muitos destinatários).<br /><br />A tentativa de avaliar o texto na sua primeira dimensão, a de ‘objeto de significação’, gera a análise interna ou estrutural do texto (que pode ser empreendida por aportes teóricos e metodológicos diferenciados, sendo a semiótica uma destas possibilidades). Já a avaliação do texto como ‘objeto de comunicação’ implica na análise do contexto histórico-social que o envolve e que, de alguma maneira, atribui-lhe sentido. Neste caso, empreende-se a análise externa do texto, que também pode ser concretizada através de diferenciados aportes teóricos e metodológicos. Ainda com relação à sua análise externa, o texto também pode ser exa-minado do ponto de vista das intenções ou das motivações pessoais do autor que o produziu, ou daqueles que dele se apropriam imputando-lhe novos sentidos. A perspectiva mais útil para a História é considerar mesmo o texto a partir da dualidade que o define enquanto ‘objeto de significação’ e ‘objeto de comunicação’.<br /><br />De acordo com esta visão complexa e multidimensional do texto, que postularemos ser a mais adequada para o historiador, pode-se dizer que a análise de um discurso deve contemplar simultaneamente três dimensões fundamentais: o intratexto, o intertexto e o contexto. O ‘intratexto’ corresponde aos aspectos internos do texto e implica exclusivamente na avaliação do texto como objeto de significação; o ‘intertexto’ refere-se ao relacionamento de um texto com outros textos; e o contexto corresponde à relação do texto com a realidade que o produziu e que o envolve. São precisamente estas duas últimas dimensões que exigem que o texto, além de ser tratado como um objeto de significação em si mesmo, seja considerado também como objeto de comunicação.<br /><br />A visão do texto a partir da tríplice abordagem do intratexto, do intertexto e do contexto é inegavelmente a mais rica para um historiador que pretende utilizar o discurso textual como fonte. Por outro lado, autores como Roland Barthes consideram o texto como um sistema auto-suficiente de signos cujo significado provém de suas interrelações, e não de fatores externos como a ‘intenção do autor’ ou o seu ‘contexto de produção’. Assim, para a perspectiva estruturalista de Roland Barthes as palavras, símbolos e imagens em interação criam sistemas de significados que repetem a estrutura da linguagem e refletem as funções sociais da mitologia. O resultado disto é que o texto poderia ser analisado sem um recolocação na sociedade que o produziu ou que o consome. Ou, dito de outra forma, a análise restringe-se neste caso apenas ao plano do intratexto.<br /><br />Em que pesem as contribuições que o historiador possa extrair deste tipo de semiótica estruturalista que procura examinar o texto em si mesmo, desprezando as referências externas, a verdade é que sempre será muito importante para um historiador “contextualizar” o texto com o qual está trabalhando. Todo texto é produzido em um lugar que é definido não apenas por um autor, pelo seu estilo e pela história de vida deste autor, mas principalmente por uma sociedade que o envolve, pelas dimensões desta sociedade que penetram no autor, e através dele no texto, sem que disto ele se aperceba. Uma época, uma sociedade, um ambiente social (rural, urbano), uma Instituição, uma rede de outros textos às quais o autor deverá se conformar, as regras de uma determinada prática discursiva ou literária, as características do gênero literário em que se inscreve o texto: tudo isto constrange o autor que escreve o texto, deixando nele suas marcas a princípio indeléveis, mas que devem ser pacientemente decifradas pelos historiadores e outros analistas de textos.<br /><br />Além de um lugar de produção, todo texto tem também um destino. Pode ser, por exemplo, um determinado receptor ou grupo de receptores (os leitores de um jornal ou de uma obra literária, a população que é comunicada acerca das decisões régias através de um edito). O receptor, mesmo que o autor ou produtor do texto não esteja plenamente consciente disto, ajuda também a escrever o texto. Quem escreve um texto acaba sem querer antecipando certas expectativas de quem irá recebê-lo, seja para contemplá-las ou para afrontá-las. Qualquer texto visa um receptor (ou um “lugar de recepção”), porque ele tem uma “intenção” (uma mensagem que quer ser transmitida ou uma informação a ser registrada).<br /><br />É verdade que, em alguns casos, o texto não é produzido originalmente com vistas propriamente a um receptor, mas sim para contemplar determinada finalidade. Uma canção quer chegar a um público, um Edito quer chegar a um súdito, uma carta quer atingir um interlocutor ... mas os documentos cartoriais e paroquiais, a princípio, pretendem apenas registrar certas informações que serão necessárias oportunamente, ou para as autoridades que controlam uma população, ou para os próprios indivíduos aos quais se referem estes documentos. O historiador pode lidar tanto com textos que visam ‘receptores’, como com textos que buscam cumprir determinadas ‘finalidades’.<br /><br />Grosso modo, pelo que pudemos ver até aqui, o triângulo da comunicação em que se insere todo texto tem estes três vértices: um lugar de produção, um conteúdo (intenção, mensagem), um lugar de recepção (ou de destino). O historiador deve lidar habilmente com cada um destes vértices e com a sua interação (porque cada um deles se inscreve no outro, no sentido, por exemplo, de que o produtor do texto antecipa certas expectativas do seu receptor).<br /><br />A isto poderemos acrescentar uma outra dimensão que é a da ‘intertextualidade’, a que já nos referimos anteriormente. Qualquer texto insere-se em uma rede de semiose, em uma rede de textos da qual ele extrai um pouco do seu sentido. Já fizemos notar que o próprio ‘gênero’ no qual se enquadra um texto (edito, crônica, poesia, norma jurídica) já estabelece automaticamente um primeiro nível de intertextualidade (o texto irá dialogar, quer queira o autor ou não, com as normas literárias e com o repertório de possibilidades que regem aquele gênero, mesmo que em alguns casos o autor pretenda afrontá-los). Depois aparecem as demais intertextualidades: o autor irá se referir explicita ou implicitamente a outros textos, e existirão também os textos que, mesmo sem o conhecimento do autor, estarão inscritos no seu discurso.<br /><br />A questão da intertextualidade é naturalmente bastante complexa, uma vez que ela pode aparecer tanto no texto que o historiador se põe a analisar (as intertextualidades explícitas e implícitas inerentes à construção textual do autor do documento estudado) como também na própria análise do historiador, que na sua leitura do documento estabelece intertextualidades em diversos níveis. É por isso que Eliseo Verón, em um livro intitulado "A Produção do Sentido" (1979), escreve que “não se analisa jamais um texto: analisa-se pelo menos dois, quer se trate de um segundo texto escolhido explicitamente para a comparação, quer se trate de um texto implícito, virtual, introduzido pelo analista, muitas vezes sem que ele o saiba” .<br /><br />A história da historiografia inscreve-se em um gradual aprendizado do historiador diante dos textos com os quais ele deverá lidar. Muito aconteceu desde as primeiras aproximações positivistas e historicistas, especialmente preocupadas com as críticas interna e externa do texto, mas ainda ingênuas no tratamento do discurso. A Psicanálise, a Lingüística, a Semiótica e as teorias da Comunicação revolucionaram as possibilidades de interpretar um texto, e destas revoluções o historiador de hoje se vale. <br /><br />Como já se deve ter percebido, não existe certamente uma técnica única que possa ser aplicada à análise de texto para todos os casos. O primeiro contato do historiador com a sua fonte textual consiste, de qualquer modo, em fazer-lhe algumas perguntas fundamentais (já se disse que o documento só fala quando o historiador faz as perguntas certas). Se, como dissemos antes, a boa análise deve abranger simultaneamente o contexto, o intertexto e o intratexto, o historiador pode começar por identificar a procedência da fonte, a sua inserção em uma sociedade mais ampla, as condições de sua produção (aspectos que, se tivéssemos de resumi-los em uma indagação primária, parecem perguntar ao texto: “de onde vens?”). Somente em seguida virão as perguntas que começam a perscrutar os caminhos internos do texto, ou a abrir as portas secretas de sua decifração. “Com quem falas”, “Do que falas?”, mas também “Sobre o que silencias?”.<br /><br />O conteúdo de um texto, cedo aprende o historiador, não pode se resumir à superfície de sua mensagem. Há os entreditos, os interditos, os não-ditos, o vocabulário revelador. Se texto é falso, ou se ele mente, tanto melhor, pois o historiador poderá perguntar: “por que mentes?”. Não serão raras as vezes em que o analista irá encontrar o que procura precisamente nas contradições de um texto, seja ao nível do intratexto (as contradições internas) ou ao nível do intertexto (as contradições que aparecem no confronto com outras fontes). Ao historiador, o texto costuma falar através dos seus detalhes mais insignificantes, como um criminoso que fala através das pistas que deixa escapar descuidadamente.<br />.<br /><br />[o presente texto foi extraído do livro "O Campo da História"]<br /><br />[BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição. p.134-140]<br /><br /><br />__________________________<br /><br />Referências:<br /><br />BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2011, 8a edição.<br /><br />BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1996.<br /><br />VERÓN, Eliseu. A produção do sentido. São Paulo: Verbo, 1982José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-58933250647455265002011-01-08T12:35:00.000-08:002011-01-09T18:31:59.885-08:00Fonte Histórica (2) A Expansão DocumentalO debate sobre as “fontes históricas” remete-nos a um dos dois fatores que constituem a mais irredutível singularidade da História como campo de conhecimento. De fato, se por um lado a História pôde um dia ser definida por Marc Bloch, nos anos 1940 como a “Ciência que estuda o Homem no tempo”, a obrigatoriedade do uso de “Fontes Históricas” pelo Historiador, como único meio de atingir diretamente este homem que se inscreve no Tempo, é certamente o segundo fator inseparável do conhecimento histórico. A ‘centralidade da dimensão temporal’, neste tipo de conhecimento que é a História, e a ‘utilização das Fontes’, pelo Historiador que o produz, são precisamente os dois fatores que fazem com que a História possa ser distinguida de qualquer outro campo de saber.<br /><br />Começaremos por lembrar que Seignobos, em um manual escrito no início do século XX, um dia registrou uma frase que terminou por se tornar célebre: “Sem documento não há história” (1901). Com isto buscava situar a fonte histórica como o princípio da operação historiográfica. A frase seria contraposta, algumas décadas depois, por uma outra que seria criticamente pronunciada por Lucien Febvre: “Sem problema não há história”. O historiador dos Annales, com isto, queria mostrar que a operação historiográfica principiava na verdade com a formulação de um problema. Seria um problema construído pelo Historiador o que permitiria que ele mesmo constituísse as suas fontes, agora deslocada para o segundo passo da pesquisa.<br /><br />Hoje, decorridas muitas décadas após os primeiros “combates pela história” travados pelos historiadores dos Annales contra uma historiografia que denominaram “positivista”, pode-se perceber mais claramente que os dois elementos – o “Problema” e a “Fonte” – acham-se frequentemente entrelaçados: se o “Problema” construído pelo historiador sinaliza para algumas possibilidades de “Fontes”, determinadas fontes também recolocam novos problemas para os historiadores. Podemos pensar, a título de exemplos, nas chamadas “fontes seriais”, que permitem aos próprios historiadores formularem novos tipos de problemas que só adquirem sentido no tratamento serial da documentação, ou ainda o caso das “fontes dialógicas”, aqui entendidas como aquelas que permitem ao historiador que sejam acessadas diversas vozes nas sociedades por ele examinadas. Os exemplos nos mostram que, se o “Problema” proposto pelo historiador permite que ele constitua suas fontes de determinada maneira, as próprias fontes históricas também devolvem algo ao historiador. Dito de outra forma, pode-se dizer que, na operação historiográfica, o sujeito que produz o conhecimento e os meios de que ele se utiliza interagem um sobre o outro, de modo que, no fim das contas, se o Historiador sempre escreve seu texto de um lugar no mundo social e no tempo, ao mesmo tempo ele mesmo pode se transformar a partir da sua própria experiência com as fontes.<br /><br />Vamos lembrar aqui um interessante texto escrito por Carlo Ginzburg em 1979, com o título “Provas e Possibilidades”, no qual o micro-historiador italiano chama atenção para uma questão peculiar. Embora reconhecendo que o trabalho do historiador é inicialmente direcionado por um certo “imaginário historiográfico” (tal como propôs Hayden White em Meta-História) e também por um lugar social (tal como postula Michel de Certeau em “A Operação Historiográfica”), Ginzburg esmera-se em perscrutar o fato de que o historiador também se modifica pela interatividade com relação à alteridade trazida pela documentação (GINZBURG, 1989, p.196). Vale dizer, não é apenas um determinado lugar social-institucional, e uma certa “imaginação historiográfica” – ou o seu Presente – o que dá uma direção ao trabalho do historiador. O próprio Passado, através das especificidades de sua documentação, traz ao historiador vozes com as quais ele interage, colocando-o em contato com aspectos que passam a integrar a sua própria experiência, e com elementos vários que o reconstroem como sujeito de investigação. Desta forma, a própria documentação examinada traz a sua contribuição adicional para o resultado do trabalho historiográfico não apenas como objeto que se configura em testemunho ou discurso de sua época, mas também abrindo certos caminhos de compreensão e, para além disto, enriquecendo mesmo, como experiência, o próprio historiador que se vê modificado no momento mesmo inicial da pesquisa.<br /><br />Estas questões são importantes, e ao final da palestra voltaremos a elas. As fontes históricas, além de permitirem que o historiador concretize o seu acesso a determinadas realidades ou representações que já não temos diante de nós, permitindo que se realize este “estudo do homem no Tempo” que coincide com a própria História, também contribui para que o historiador aprenda novas maneiras de enxergar a história e formas de expressão que poderá empregar em seu texto historiográfico. Neste momento, conforme discutiremos no final desta palestra, estabelece-se uma misteriosa possibilidade de contato entre as fontes que instauram a pesquisa e o texto final que o historiador oferece ao seu leitor. Lidar com variedades de fontes históricas, veremos adiante, também instrui o historiador acerca de diferentes e novas possibilidades de expressão – uma questão que cada vez mais tem sido abordada nos tempos recentes. É assim que, ao passo em que foi descobrindo novas possibilidades de fontes históricas, o historiador também viu-se diante de novas possibilidades teóricas e expressivas: são apenas alguns exemplos o “olhar longo” da História Serial, a “escrita polifônica” das fontes dialógicas, o “olhar microscópico” proporcionado por fontes intensivas como os processos-criminais, ou mesmo a “escrita cinematográfica” que pôde ser assimilada por aqueles que estudam o Cinema.<br /><br />Mas antes de chegar a estas questões mais recentes, principiemos discutindo algumas questões fundamentais para a compreensão da “revolução documental” que ainda não cessou de ocorrer na historiografia desde que a história passou a se postular como uma historiografia científica. Abordaremos, a seguir, alguns aspectos que na verdade estão interligados: a ‘expansão documental’, a multiplicação de metodologias e abordagens das fontes históricas, sobretudo a partir do século XX, e a crescente explicitação do diálogo com as fontes no texto historiográfico.<br /><br /><br /><br />1.2. Expansão Documental<br /><br /><br />Já é lugar comum dizer que o século XX conheceu uma extraordinária expansão na possibilidade de tipos de fontes históricas disponíveis ao historiador. A expansão documental começa com a gradual multiplicação de possibilidades de fontes textuais – isto é, fontes tradicionalmente registradas pela escrita – e daí termina por atingir também os tipos de suporte, abrindo para o historiador a possibilidade de também trabalhar com fontes não-textuais: as fontes orais, as fontes iconográficas, as fontes materiais, ou mesmo as fontes naturais. Com o desenvolvimento de novas tecnologias, pergunta-se se já não teremos em pouco tempo um número significativo de trabalhos também explorando as fontes virtuais.<br /><br />De certo modo, a história da historiografia tem conhecido duas expansões paralelas no universo das fontes historiográficas: de um lado, as fontes textuais, que sempre foram tão amplamente empregadas pelos historiadores, começam a se diversificar; de outro lado, pode ser percebido um contraponto importante que é o da expansão das fontes com novos tipos de suporte. Concentremo-nos por hora no esforço de mostrar a complexidade que abarca a expansão das possibilidades de fontes textuais. O ‘Quadro 1’ procura registrar visualmente esta expansão: na verdade uma expansão que termina por se voltar sobre si mesma. O esquema visual parte de algumas das fontes que, um tanto impropriamente, chamaremos de ‘fontes realistas’ (1) – que são aquelas que se apresentam aos historiadores como discursos narrativos que tentam prestar conta de acontecimentos que se deram realmente, ou que então tentam convencer os seus leitores da natureza real do objeto de suas narrativas. Dos relatos de natureza historiográfica aos relatos de viagem, passando pelas hagiografias, crônicas e biografias, neste tipo de fontes costumava se concentrar o trabalho dos historiadores até o século XIX.<br /><br />Então, podemos dizer que ocorrerá a primeira revolução documental da historiografia – ou, se quisermos, a primeira fase de uma revolução historiográfica que mais adiante teria, no século XX, o seu segundo tempo. O século XIX, efetivamente, introduz o trabalho dos historiadores – para além das fontes que já eram utilizadas anteriormente – no mundo dos arquivos que começam a ser montados por toda a Europa em um monumental esforço incentivado pelos governos nacionais. Os ‘Documentos Políticos’ (2) – notadamente da “grande história política” – os ‘documentos diplomáticos’ relacionados à intrincada dialética da Guerra e da Paz (3), a documentação governamental (4), com suas leis e atos governamentais diversos, passarão a constituir a base do trabalho do historiador, que começa a desenvolver as suas primeiras técnicas de crítica documental. Por muitos dos historiadores oitocentistas, estas fontes serão tratadas sobretudo como depósitos de informações. De todo modo, pode-se dizer que a Crítica Documental tornou-se uma contribuição inestimável desta interação entre o historiador e as fontes político-institucionais. Com elas, o historiador aprendeu o “olhar meticuloso” tão precioso para a prática historiográfica.<br /><br />Uma segunda revolução documental inicia-se nos anos 1930. Ou, se quisermos, podemos dizer que o universo das fontes históricas começa a se expandir novamente. Para além das fontes já acumuladas pela revolução documental anterior, a multiplicação de objetos históricos – agora concentrada sobretudo em aspectos sociais e econômicos – permitirá que alguns setores da historiografia comecem a centrar a sua atenção nos documentos administrativos (5), comerciais (6), eclesiásticos (7), cartoriais (8); fontes que logo seriam exploradas pelos historiadores a partir de uma nova abordagem, serial ou quantitativa. Na França, um país cuja historiografia exerceu grande influência sobre a historiografia brasileira, é conhecido o papel que a “história serial” exerceu até os anos 1970. Um inquestionável fruto colhido pela historiografia ao entrar em contato com as fontes seriais, mas também presente nas diversas modalidades historiográficas que passaram na mesma época a trabalhar com a “longa duração”, foi um novo tipo de olhar sobre a história: esse “olhar longo” que se estende sobre a “série documental” ou sobre grandes extensões de tempo ou de espaço e que, a partir daí, aprimora-se na habilidade de identificar permanências, de perceber ciclos, de avaliar pequenas variações no decurso de uma série de dados. O “olhar longo” junta-se assim ao “olhar meticuloso”, de modo que o historiador torna-se aqui um pouco mais completo.<br /><br />Novos métodos costumam sempre acompanhar cada expansão no universo de fontes historiográficas. Quando assistimos nos anos 1980 a um crescente interesse dos historiadores pelas fontes jurídicas (9) e policiais (10) – a exemplo dos processos-crime e da documentação de inquisição – logo os historiadores aprendem a tirar um máximo partido destas fontes que são ao mesmo tempo intensivas – isto é, extraordinariamente ricas de detalhes – e dialógicas, no sentido de que são espaços de manifestação para muitas vozes sociais. Surge tanto uma escrita da história polifônica, voltada para a explicitação das várias vozes sociais, como também a Micro-História – uma modalidade historiográfica que se mostra pronta a mergulhar no projeto de enxergar grandes questões sociais a partir de uma escala de observação reduzida, porém com um olhar intensivo, que aproxima o historiador do olhar do detetive ou do criminalista que investigam indícios, mas também do médico que tenta enxergar a grande doença por trás dos pequenos sintomas. Vamos denominar a este novo olhar que se oferece aos historiadores dos anos 1980 de “olhar interior”, pois se ele é um olhar capaz de captar os detalhes mais reveladores, é também um olhar capaz de apreender a complexidade interna das realidades examinadas, além de captar a polifonia interna que se oculta em todas as formações sociais. Mais uma vez o historiador desenvolve a sua completude: o “olhar meticuloso”, o “olhar longo” e o “olhar interior” agora se integram como possibilidades para a constituição de uma historiografia mais plena.<br /><br />As últimas conquistas, talvez sob a égide de uma historiografia que traz para o centro do cenário histórico o mundo da Cultura – estão nas fontes que se relacionam à vida privada (11) e a todos os tipos de literatura (12). Também não é por acaso que, em um mundo que é invadido pelo discurso, intensifique-se nesta mesma época a interdisciplinaridade com a Lingüística, a Semiótica e as Ciências da Comunicação, oportunizando aos historiadores novas metodologias de análise textual e discursiva que hoje já se tornaram patrimônio da historiografia contemporânea. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que, de alguma maneira, o historiador também conseguiu incorporar com estas novas experiências um certo “olhar estético”. A si mesmo, começou a se perceber como literato, e muitos passaram a buscar aprimorar novas formas de expressão na elaboração do seu texto historiográfico, conforme mais adiante discutiremos.<br /><br />Tal como já assinalamos, um esquema como o que estamos tentando representar a complexidade das fontes históricas não pode ser senão circular: uma figura que se desdobra sobre si mesma. As fontes narrativas realistas (1), das quais partíramos, oferecem nos anos 1980 novas incorporações através dos jornais, e o chamado retorno da história política permite que os historiadores também incorporem, às fontes políticas (2) com as quais já lidavam, a documentação de partidos políticos e os discursos proferidos nestes mesmos ambientes.<br /><br />As ampliações no universo de possibilidades das fontes textuais, já o dissemos, são acompanhadas de um movimento paralelo. Se os historiadores haviam começado a diversificar as suas fontes textuais, desde princípios do século XX, também começam a ser exploradas em um ritmo crescente as fontes com novos tipos de suporte. As imagens, por exemplo, deixariam de ser apenas objetos temáticos para os historiadores que já se interessavam pela História da Arte, e passaram a ser também fontes para historiadores interessados em chegar todo o tipo de questões sociais, econômicas e políticas através das fontes iconográficas. A História Oral, também nos anos 1980, conquista o seu lugar no campo da historiografia, e reaviva mais uma vez um diálogo com a Antropologia, com a qual a História já havia estabelecido tantas vagas de contatos interdisciplinares.<br /><br />Poderíamos também seguir adiante na enumeração de conquistas historiográficas relacionadas às fontes não-textuais: os arquivos sonoros, o Cinema, a cultura material e mesmo as fontes naturais – aqui entendida como a natureza interferida pelo homem – abrem-se como novas possibilidades. Podemos hoje nos perguntar pelas fontes virtuais. Como os historiadores passarão a trabalhar com este tipo de fontes?<br /><br /><br />Leia a continuação deste texto em: <a href="http://ning.it/hhjbtC">http://ning.it/hhjbtC</a><br /><br />[BARROS, José D'Assunção. “Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos” in Revista Albuquerque. Vol.3, n°1, 2010]<br /><br />________________________<br /><br />Referências:<br /><br /><br />BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 [original publicado: 1949, póstumo] [original de produção do texto: 1941-1942]<br /><br />GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero: o Batismo - o Ciclo de Arezzo - a Flagelação. Tradução de Luiz Carlos Cappellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989..José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-59733587129995184992011-01-08T12:34:00.000-08:002011-01-08T13:09:38.584-08:00Fonte Histórica (1) O que é fonte histórica?“Fonte Histórica” é tudo aquilo que, produzido pelo homem ou trazendo vestígios de sua interferência, pode nos proporcionar um acesso à compreensão do passado humano. Neste sentido, são fontes históricas tanto os já tradicionais documentos textuais (crônicas, memórias, registros cartoriais, processos criminais, cartas legislativas, obras de literatura, correspondências públicas e privadas e tantos mais) como também quaisquer outros que possam nos fornecer um testemunho ou um discurso proveniente do passado humano, da realidade um dia vivida e que se apresenta como relevante para o Presente do historiador.<br /><br />Incluem-se como possibilidades documentais desde os vestígios arqueológicos e outras fontes de cultura material (a arquitetura de um prédio, uma igreja, as ruas de uma cidade, monumentos, cerâmicas, utensílios da vida cotidiana) até representações pictóricas e fontes da cultura oral (testemunhos colhidos ou provocados pelo historiador). As investigações sobre o genoma humano fizeram do corpo e da própria genética uma fonte histórica igualmente útil e confiável, que inclusive permitiu que os historiadores passassem a ter acesso aos primórdios da aventura humana sobre a Terra, forçando a que se problematize o antigo conceito de “pré-história” que antes sinalizava uma região da realidade um dia vivida que estava até então proibida aos historiadores.<br /><br />De igual maneira, a partir do século XX, quando a geografia passou a atuar interdisciplinarmente com a história, mesmo uma paisagem natural passou a ser encarada como uma possibilidade documental. O mesmo se pode dizer das relações entre a história e a lingüística, que trouxeram os próprios fatos da língua para o campo das evidências históricas, e também das perspectivas que se produziram na confluência entre História e Antropologia, que permitem que se abordem como fontes históricas as evidências e heranças imateriais, já sem nenhum suporte físico e concreto, como as festas dramáticas populares e os ritos religiosos que se deslocam e perpetuam-se na realidade social, os sistemas integrados e reconhecíveis de práticas e representações, os gestos e modos de sociabilidade, os bens relacionáveis ao chamado ‘patrimônio imaterial’ (modos de fazer algo, receitas alimentares, provérbios e ditos populares, anedotários, apenas para citar alguns exemplos).<br /><br />É certo que houve um longo desenvolvimento historiográfico até que chegasse o momento em que, para além dos documentos e fontes concretizadas em papel ou qualquer outro material, fossem também admitidas as ‘fontes imateriais’ como campos de evidências das quais poderia o historiador se valer. De todo modo, pode-se dizer que nos dias de hoje não há praticamente limites para um historiador quanto à possibilidade de transformar qualquer coisa em fonte histórica. Um repertório de gestos, por exemplo, pode ser revelador de permanências do passado. Lembremos o hábito de cumprimentar tirando o chapéu, que provém do repertório de atitudes medievais: quando um cavaleiro cumprimentava o outro, tirava o elmo em sinal de que suas intenções eram pacíficas (sem o elmo, peça bélica defensiva, manifestava algo como uma proposta de desarmamento). Foram-se as batalhas e os elmos, e veio a sociedade oitocentista dos chapéus burgueses. O gesto, contudo, manteve-se incrustado no repertório de atitudes, e mesmo com os chapéus em desuso ainda permanece como um movimento que toca a testa como que para tirar o “elmo imaginário”. É assim que, em certos hábitos enraizados, expressos na vida cotidiana e na prática comportamental – também aí poderemos ir buscar uma fonte, uma evidência ou um testemunho do passado.<br /><br />A ampliação documental foi uma conquista gradual dos historiadores; verificou-se à medida que a própria Historiografia expandia seus limites no decurso do século XX. O historiador adotava novas perspectivas, passava a dispor de novos métodos e a contar com o intercurso de outras disciplinas (Geografia, Lingüística, Psicologia – apenas para mencionar três dos campos relacionados aos exemplos antes expostos: a paisagem, a palavra e o gesto). Tudo isto e mais o interesse por novos objetos, até então desprezados pela historiografia tradicional, fez com que a historiografia contemporânea caminhasse para necessitar cada vez mais de outras fontes ou documentos que não só as crônicas e registros arquivísticos. Assim, se os Arquivos são fundamentais para o trabalho dos historiadores, eles estão longe de serem suficientes para fornecerem tudo o que os historiadores necessitam para o seu trabalho. Na verdade, a questão de pesquisar ou não em fontes de arquivos tem muito mais a ver com o objeto ou com os problemas históricos que estão sendo examinados do que qualquer outra coisa.<br /><br />Tem a ver com esta questão, aliás, outra palavra que muito freqüentemente é empregada como sinônimo de fonte histórica: ‘documento histórico’. Na verdade, há algum tempo atrás esta palavra era até mais comum no linguajar do historiador do que ‘fonte histórica’; e, antes dela, até a historiografia do século XVIII, predominava uma outra palavra: "monumento". A expressão ‘documento histórico’, que se tornou muito típica no século XIX, mas que continuou a ser usada com sentidos ampliados no século XX, estava primordialmente muito relacionada tanto com os arquivos que começaram a ser organizados sistematicamente na época, como também com a maneira como então se concebia a História. Esperava-se que o historiador documentasse, no sentido jurídico, todas as afirmações que fizesse no decorrer de sua narrativa histórica. Daí a palavra “documento”, que, além de possuir uma origem jurídica, estava muito associada à idéia de prova, de “comprovação”.<br /><br />Hoje em dia, empregam-se indistintamente as expressões “fonte histórica” ou “documento histórico”. Mas nota-se uma certa tendência à preferência cada vez maior pela expressão “fonte histórica”, talvez porque a expressão “documento histórico” tenha ficado um pouco associada à historiografia positivista, e um pouco também porque o historiador não espera mais dos materiais e evidências que lhes chegam do passado apenas ou necessariamente uma “prova”, encarando também as fontes como discursos a serem analisados ou redes de práticas e representações a serem compreendidas. Por isto, tende-se freqüentemente à utilização da palavra “fonte” na atual prática historiográfica. Em contrapartida, quando um historiador utiliza nos dias de hoje a palavra ‘documento histórico’, ele pode estar se referindo a qualquer tipo de fonte histórica, e não apenas àqueles tipos mais específicos de documentos textuais que os positivistas priorizavam.José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com36tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-7350194871334579672011-01-08T10:41:00.000-08:002011-01-08T11:17:41.406-08:00História-ProblemaNo post anterior deste blog, destacamos a importância do "problema" para a constituição de um bom recorte monográfico de pesquisa (por "recorte monográfico" entenda-se o modelo de texto historiográfico representado pelas monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado). Não basta, como vimos, termos um tempo e um espaço bem delimitados, mas é importante também termos um "problema" dewfinido. É sobre este tripé - tempo, espaço e problema - que repousa uma temática adequada de pesquisa, ao menos quando temos em consideração o modelo monográfico.<br /><br />Na verdade, o "problema" assumiu uma importância fundamental na historiografia do último século, instituindo um novo padrão historiográfico que é aquele que os historiadores profissionais (historiadores de formação acadêmica) seguem até hoje, no século XXI. Hoje em dia, um historiador, salvo textos de divulgação mais ampla, dificilmente irá se propor a simplesmente narrar fatos acontecidos, ou descrever uma sociedade. Escrever uma "história factual", ou seja, uma história que se dedique simplemente a contar os fatos, seria uma proposta questionável para um historiador contemporâneo. Exige-se dos historiadores não apenas que contem os fatos, mas também que os interpretem; e mais: que formulem problemas sobre estes. Os "problemas", para um historiador dos dias de hoje, devem atender a demandas de nosso próprio tempo; dessamaneira, o presente de cada historiador termina por vitalizar um Passado que não é mais compreendido como algo morto, acabado.<br /><br />Nas primeiras décadas do século XX, a questão de uma história necessariamente problematizada estava sendo colocada como uma questão historiográfica de primeira ordem. Rigorosamente falando, os grandes historiadores, mesmo nos séculos XVIII e XIX, sempre fizeram uma história problematizada; mas havia também toda uma produção historiográfica factual, ou mesmo antiquária (colecionadora de fatos do passado), que não era ainda depreciada pelos historiadores e filósofos da História. Um dos primeiros filósofos a estigmatizar a produção historiográfica dos "colecionadores de fatos" foi Fredrich Nietzsche, no texto "Sobre os Usos e Desvantagens da História para a Vida" (Segunda Consideração Extemporânes, 1873).<br /><br />No século XX, a demanda por escrever necessariamente uma história "problematizada" tornou-se francamente dominante, seja sob o impulso de uma historiografia ligada ao materialismo histórico - que rigorosamente falando instituiu uma problematização econômica e social contra o pano de fundo de uma historiografia meramente factual - seja sob os clamores de uma nova geração de historiadores ligados a vertentes diversas. Um destes movimentos de novos historiadores - que ficou conhecido como "Escola dos Annales" - notabilizou-se por uma acirrada crítica contra historiadores que insistiam em situar factualidade no centro da operação historiográfica (<a href="http://ning.it/ezsx8d">http://ning.it/ezsx8d</a>). O centro do palco, para estes novos historiadores, deveria ser ocupado por "problemas". A contextualização, o encadeamento de fatos, a crítica documental, continuavam procedimentos fundamentais para a operação historiográfica - mas estas instâncias não deveriam se apresentar sem uma "problematização" comandando o espetáculo historiográfico. Os primeiros historiadores da Escola dos Annales criaram uma expressão que bem expressa o espírito do novo tempo. Eles clamavam por uma "História Problema".<br /><br />Lucien Febvre, parodiando uma antiga frase que postulava que "sem documento não há História", formulou o desafiador dito de que "sem problema não há história". Há mesmo um certo exagero na crítica dos líderes do novo movimento dos Annales - Marc Bloch, Lucien Febvre e, depois, Fernando Braudel - contra a historiografia francesa anterior, liderada por Gabriel Monod,Charles Langlois, e Seignobos. Estes historiadores - ligados a chmada "Escola Metódica" -não eram tão factualistas como os pintaram a nova geração de historiadores dos Annales. Além disto, não eram os Annales os únicos a defenderem as novas predisposições historiográficas, e já havia em outros países movimentos similares propondo renovações historiográficas (<a href="http://ning.it/dNN3fp">http://ning.it/dNN3fp</a>). De todo modo, a estigmatização da historiografia factual e a demanda por uma "História-Problema" passou a integrar a identidade da nova historiografia. Até hoje somos tributários deste novo padrão historiográfico.<br /><br />A demanda por uma "História-Problema" também veio ao encontro do projeto de trazer para a História um novo padrão de cientificidade. Sobretudo, quando pensamos no modelo hoje predominante na historiografia acadêmica, verificamos como a noção de uma "História-Problema" estabeleceu-se no mundo dos historiadores, passando a fazer parte da sua matriz disciplinar. O padrão da "História-Problema" reforça, enfim, a necessidade de problemas bem definidos para o estabelecimento de um recorte de pesquisa nos modelos monográficos preconizados pela historiografia acadêmica.José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-5037575262466607872011-01-07T22:20:00.001-08:002011-01-08T10:40:01.745-08:00Espaço, Tempo e Problema: completando a tríade do recorte de pesquisaNo texto anterior, vimos que recortar adequadamente o Tempo e o Espaço constitui uma operação fundamental para o trabalho do historiador que estabelece oseu âmbito de pesquisa. Gostaríamos de completar essas duas instâncias com uma outra, que é o "problema". Para entender esse terceiro aspecto, e sua importância, vamos iniciar o entendimento sobre o que é um "tema" de pesquisa.<br /><br />No seu sentido mais lato, “tema” é um assunto qualquer que se pretende desenvolver. Quando se propõe que alguém escreva um texto escolar desenvolvendo o tema da “violência urbana”, espera-se que sejam abordados ou desdobrados alguns aspectos pertinentes a este tema. Depois de apresentar ao leitor o tema que pretende desenvolver, o autor pode começar nos sucessivos parágrafos a discutir aspectos específicos e diversificados que se desdobram deste tema, como “as causas sociais da violência urbana”, “as formas de prevenção ou de combate à violência urbana”, “a relação entre violência urbana e criminalidade”, e tantos outros.<br /><br />Conforme veremos, “a violência urbana” pode ser um excelente tema para uma redação escolar, para um artigo de jornal, ou mesmo para um livro de divulgação junto ao grande público, mas não é um bom tema para uma dissertação de mestrado ou para uma tese de doutorado. Espera-se, de um trabalho acadêmico de tipo monográfico, ou em modelo de tese, que o tema tenha mais especificidade. Pode-se por exemplo tomar como tema monográfico “A violência urbana no Rio de Janeiro dos anos 90”, ou, mais especificamente ainda, “A interconexão entre a violência urbana e o tráfico de drogas no Rio de Janeiro dos anos 90”. Ou, quem sabe, “Os discursos sobre a violência urbana nos jornais populares do Rio de Janeiro dos anos 90”. Pode-se dizer que, pelo menos no sentido acadêmico, “violência urbana” é apenas um ‘assunto’ um tanto vago, mas os temas acima propostos sim, seriam temas monográficos dotados de maior especificidade.<br /><br />Uma “História da América”, por exemplo, está muito longe de ser um tema. É quando muito um ‘campo de estudos’ ou de interesses. A “Conquista da América” é mais específico, mas tampouco é ainda um tema. Na verdade é um ‘assunto’ que pode dar posteriormente origem a um tema mais delimitado, mas para isto terá de sofrer novos recortes. Pode-se estudar por exemplo “a alteridade entre espanhóis e nativos meso-americanos durante a Conquista da América, nas primeiras décadas do século XVI”. Este foi o tema escolhido por Todorov em uma de suas mais célebres obras. Nele já aparecem recortes ou dimensões mais específicos: (1) um espaço mais delineado que é a região central do continente americano; (2) um recorte de tempo que se refere às primeiras décadas do século XVI; (3) um problema que é o da “alteridade” (ou do ‘choque cultural’ entre aquelas duas civilizações distintas).<br /><br />Em História, é fundamental que o tema de pesquisa apresente um recorte espacial e temporal muito preciso. Isto corresponde a focar um assunto ainda geral em um “campo de observação” mais circunscrito. Assim, não se estuda em uma tese de doutorado “o Islamismo”, embora este seja um excelente tema para um livro de divulgação visando o grande público. Pode-se começar por recortar este assunto extremamente vasto propondo-se uma pesquisa sobre o “Islamismo fundamentalista no Afeganistão do final do século XX”. Neste caso, já temos um recorte espacial (o Afeganistão) e um recorte temporal (final do século XX). Poder-se-ia recortar mais ainda o tema, impondo-lhe um campo problemático inicial como “as restrições à educação feminina no Islamismo fundamentalista do Afeganistão do final do século XX”. O ‘problema’* é este ‘recorte final’ – esta questão mais específica que ilumina um tema delimitando-o de maneira singular, e que traz em si uma indagação fundamental a ser percorrida pelo historiador.<br /><br />Conforme já ressaltamos anteriormente, a historiografia de hoje exige temas problematizados, sobretudo nos meios acadêmicos. Seriam bons temas para a “História-Problema” de a partir do século XX recortes como ... “a alteridade entre espanhóis e nativos meso-americanos nas primeiras décadas da Conquista da América”, “as restrições à educação feminina no Islamismo Afegão de fins do século XX”, “a dessacralização do poder público durante a Revolução Francesa” (e não simplesmente “A Conquista da América”, “O Islamismo Afegão” ou “A Revolução Francesa”).<br /><br />Ainda mais especificamente, pode-se dizer que um “problema de pesquisa” corresponde a uma questão ou a uma dificuldade que está potencialmente inscrita dentro de um tema já delimitado (resolver esta questão ou esta dificuldade é precisamente a finalidade maior da pesquisa). O “problema” tem geralmente um sentido interrogativo. Retomando-se o tema da “Alteridade na Conquista da América”, poderíamos dele extrair a seguinte indagação: “O Choque Cultural foi vivenciado de formas distintas por conquistadores espanhóis e por conquistados meso-americanos? Ou, ainda, “qual a contribuição do Choque Cultural para a implementação de uma conquista espanhola da Meso-América tão rápida e com um número tão reduzido de homens?”.<br />Dentro do tema do “Islamismo Afegão”, poderíamos por exemplo destacar o seguinte problema em forma de indagação: “quais as funções sócio-políticas que motivaram a restrição à educação feminina no Islamismo Afegão do final do século XX”? Ou, ainda, “que estratégias de resistência foram desenvolvidas pelas mulheres afegãs diante das restrições à educação impostas pelo Islamismo talibã no final do século XX”?<br /><br />Note-se ainda que um problema não precisa estar necessariamente escrito sob a forma interrogativa. O seu sentido é que precisa ser interrogativo. Assim, se declaro que o meu problema corresponde às “funções sócio-políticas que teriam motivado a restrição à educação feminina no Islamismo Afegão do final do século XX”, já está embutida aí uma indagação, mesmo que eu a apresente camuflada sob uma forma redacional declarativa.<br /><br />A incorporação de uma problemática é fundamental para a História hoje que se escreve nos meios acadêmicos e no âmbito da prática historiográfica profissional. Qualquer gênero historiográfico – da história das civilizações à biografia – pode ser percorrido a partir de um problema.<br /><br />O tema por outro lado, não precisa ser atravessado por um problema único. Ele pode ser perpassado por um “campo de problemas” ou por uma problemática que se desdobra em duas ou três indagações mais específicas. Se proponho, sem uma maior especificação, uma tese sobre “a repressão à educação feminina no Islamismo Afegão do final do século XX’, abro um claro espaço para alguns problemas interligados. Nenhuma repressão é gratuita. Freqüentemente ela tem bases políticas, econômicas, imaginárias, religiosas ou consuetudinárias. Assim, uma primeira questão, ou um primeiro problema que se cola a este tema, refere-se precisamente às motivações sociais que produziram o fenômeno da repressão à educação feminina no Afeganistão. Por outro lado, nenhuma repressão existe sem gerar alguma forma de resistência. Estudar a repressão à educação feminina é indagar também pelas formas de resistência que as mulheres afegãs desenvolveram em relação a esta prática no período considerado. Tem-se aí um segundo problema, que pode ser examinado em contraponto ao primeiro. Outro problema implícito poderia se referir ao caráter processual deste fenômeno. Porque ele eclode no final do século XX? Qual a história deste padrão repressivo? O tema proposto, como se vê, abre-se não só a um único problema, mas a um campo de problemas que possivelmente apresentam uma interligação a ser decifrada pelo próprio pesquisador.<br /><br />Sintetizando o que vimos até aqui, pode-se dizer que um tema bem delimitado de pesquisa histórica deve trazer muito claramente a definição de três dimensões fundamentais: o recorte espacial, o recorte temporal, e o problema (Quadro 1). Estas três dimensões devem aparecer adequadamente explicitadas no capítulo “Delimitação Temática” do Projeto de Pesquisa (ou, se este capítulo não está previsto, na própria “Introdução” do Projeto). Além de serem dimensões necessárias para delimitar mais adequadamente o tema, produzindo um verdadeiro “recorte temático”, são estas dimensões que tornarão a pesquisa efetivamente viável.<br /><br />Não posso estudar todos os países muçulmanos do final do século XX (ausência de recorte espacial mais circunscrito), nem o Afeganistão em todas as épocas históricas (ausência de recorte temporal), nem todos os problemas presentes no Islamismo Afegão do final do século XX (ausência de um problema singularizado). Cada um destes três recortes ou dimensões de recortes (espaço, tempo e problema) significa dar um passo adiante na conquista da viabilidade para a realização da pesquisa histórica proposta. Significa também um passo adiante no processo de vencer a dispersão temática e encontrar uma concentração temática bem definida. Sobre este tripé repousa um tema bem delimitado, pelo menos no que se refere aos domínios da Ciência Histórica e mais especificamente dos textos monográficos de História.<br /><br /><br />[o presente texto foi adaptado do capítulo "Delimitação Temática" do livro "OProjeto de Pesquisa em História" (2005).<br /><br />[BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição]José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-81590529881509711202011-01-07T22:12:00.000-08:002011-01-07T22:17:07.965-08:00Espaço e Tempo na delimitação de um recorte de PesquisaUma delimitação adequada do período histórico que será examinado é, naturalmente, questão de primeira ordem para qualquer historiador. A escolha de um recorte qualquer de tempo historiográfico não deve, por outro lado, ser gratuita. É inútil escolher, por exemplo, “os dez últimos anos do Brasil Império”, ou “os cem primeiros anos do Egito Antigo”. A escolha de um recorte temporal historiográfico não deve corresponder a um número propositadamente redondo (dez, cem, ou mil), mas sim a um problema a ser examinado ou a uma temática que será estudada.<br /><br />É o problema que define o recorte, e não qualquer coisa como uma dezena de anos escolhida a partir de critérios comemorativos. Tampouco tem sentido deixar que uma tese em História mostre-se aprisionada pelos recortes meramente governamentais. Pode ser que um recorte relativo ao “Brasil dos anos JK” não corresponda aos limites exatos do problema que se pretende examinar. O mesmo ocorre com a questão do recorte espacial. Pode ser não tenha sentido para um determinado problema histórico escolhido atrelar o seu espaço a uma determinada unidade estatal administrativa (um país, um estado, uma cidade). Uma proposição temática, conforme veremos, vaza freqüentemente as molduras do tempo estatal-institucional ou dos recortes administrativos. Um tema pode muito bem atravessar dois governos politicamente diferenciados, situar-se atravessado entre duas regiões administrativas, insistir em escorregar para fora da quadratura institucional em que o historiador desejaria vê-lo encerrado.<br /><br />Trata-se no entanto de uma tendência contra a qual é preciso pôr-se alerta. Por vezes, a mentalidade historiadora é levada automaticamente a fazer suas escolhas dentro dos limites governamentais-administrativos, quase que por um vício corporativo. Cedo o historiador de formação acadêmica vê-se habituado a recortar o seu objeto em consonância com imagens congeladas como a do ‘espaço nacional’ ou do ‘tempo dinástico’: o “Portugal durante o reinado de Dom Dinis”, a “França de Luís XIV”, o “Egito de Ramsés II” – pede-se ao pesquisador um problema que se encaixe dentro de limites como estes. Esta imagem de espaço-tempo duplamente limitada pelos parâmetros nacionais e pela duração de governos – talvez uma herança ou um resíduo de herança da velha História Política que dominava explicitamente o século XIX e que ainda insiste em dominar implicitamente boa parte da produção historiográfica do século XX – estende-se de resto para a História que almeja também o circuito extra-acadêmico.<br /><br />É sempre possível, tal como se disse, que o problema a ser investigado requeira um recorte que comece na metade de um governo e se estenda para a primeira metade do governo seguinte, ou que faça mais sentido abarcando dois países do que um único, ou ainda duas regiões pertencentes a dois países distintos. A delimitação de uma região a ser estudada pelo historiador não coincide necessariamente com um recorte administrativo ou estatal: pode ser definida por implicações culturais, antropológicas, econômicas, ou outras. Um grupo humano a ser examinado não estará necessariamente enquadrado dentro dos parâmetros de um Estado-Nação. Um padrão de mentalidade que se modifica pode corresponder a um enquadramento que abranja duas pequenas regiões pertencentes a duas realidades estatais distintas, ou corresponder a uma vasta realidade populacional que atravessa países e etnias distintas, que se interpõe entre duas faixas civilizacionais, e assim por diante.<br /><br />Fica portanto este alerta. Não adianta partir do pressuposto de que os melhores recortes coincidem necessariamente com um governo, um país, uma cidade – quando muitas vezes o objeto construído desejaria romper de diversas maneiras estas muralhas artificiais que insistem em contê-lo, em aparar suas arestas e ângulos agudos, ou em mantê-lo sólido quando ele se quer fluido.<br /><br />Os exemplos relativos a decisões sobre o recorte de tempo poderiam se estender ao infinito, uma vez que um mesmo tema pode se abrir a inúmeras problematizações possíveis, sendo que cada uma destas problematizações irá conduzir a um recorte ou outro que lhe seja mais adequado. Posto isto, pensar os limites de um recorte em termos de viabilidade para a pesquisa e de adequação ao problema é sempre a postura mais equilibrada.<br /><br /><br />A mesma necessidade de problematização historiográfica poderia ser abordada com relação ao ‘espaço’ construído pelo historiador. Deve ser um espaço problematizado, e não um espaço nacional ou comemorativo. Para dar um exemplo clássico, convém lembrar a obra prima de Fernando Braudel – O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II – que de resto é também uma obra revolucionária no que concerne ao tratamento do tempo, já que introduz pela primeira vez a questão da articulação de durações distintas no tempo histórico trabalhado pelo pesquisador . A demarcação do objeto de pesquisa nesta obra extraordinária nada deve a critérios nacionais, mas sim à construção historiográfica de uma área “econômico-social-demográfica-cultural”, que Braudel chamou de “mundo mediterrâneo”.<br /><br />O objetivo de Fernando Braudel no primeiro volume desta obra foi construir historiograficamente o mundo mediterrâneo do século XVI como uma unidade geo-histórica, embora percorrida por dualidades diversas que se referem às oposições religiosas (cristãos / muçulmanos), aos contrastes geográficos (deserto / mar; montanha / planície), sem falar na multiplicidade de realidades nacionais que se estabelecem sobre este espaço. A este recorte espacial ampliado aplica-se neste primeiro volume o “tempo longo”, duração onde se tornam visíveis as permanências, os aspectos estruturais, as mudanças mais lentas que à distância oferecem a impressão de uma história quase imóvel relativamente às interações entre o homem e a natureza. Os três volumes de O Mediterrâneo constituem uma verdadeira revolução historiográfica no tratamento simultâneo do tempo e do espaço, e oferecem excelente exemplo das novas possibilidades de recortar o tempo histórico trazidas pela historiografia do século XX.<br /><br />É verdade que, em se tratando das pesquisas de Mestrado e Doutorado nos dias de hoje – e mais especificamente ainda em nosso país – não é possível optar por um recorte e por um projeto de pesquisa tão ambicioso como aqueles realizados por Braudel em suas três obras monumentais, todas elas divididas em três volumes (“O Mediterrâneo ...”; “A Civilização Material do Capitalismo” ; “A Identidade da França” ). Estas obras consumiram muitos e muitos anos de trabalho. “O Mediterrâneo”, por exemplo, requereu duas décadas de envolvimento – já que Braudel opta pelo tema em 1923, elabora as suas grandes linhas até 1939, e aprofunda-as durante o período de seu aprisionamento em um campo de concentração nazista. “A Civilização Material” consome um período de envolvimento que vai de 1952 (data do convite de Lucien Febvre para que Braudel escrevesse um volume sobre a dimensão econômico-material da Europa pré-industrial) até 1979 (data da publicação da trilogia).<br /><br />Pode-se citar um exemplo mais extremo de tese monumental com a Tese de Pierre Chaunu sobre “Sevilha e o Atlântico”, que foi constituída em dez volumes e dos quais os volumes relativos à parte interpretativa possuem mais de três mil páginas. É talvez, como bem assinala Peter Burke, a tese mais longa já escrita . Ampla no recorte temporal (um século e meio), vasta no espaço abordado (o Atlântico), extensiva e intensiva na exploração da série documental (toda a documentação produzida pela ‘Casa de Contratação de Sevilha’ entre 1504 e 1650) ... esta tese mostra-se por fim pródiga na apresentação final de seus resultados (7 volumes descritivos e três interpretativos). O trabalho de Pierre Chaunu ficará marcado definitivamente como um clássico da historiografia monumental que se tornou possível em meados do século XX . Exemplos como este, contudo, estão obviamente distanciados de nossa realidade mais direta.<br /><br />Uma tese acadêmica, no Brasil, deve ser escrita em torno de dois anos e meio para o caso das pesquisas de Mestrado, e em torno de quatro anos para o caso das pesquisas de Doutorado. Além disto, o pesquisador nem sempre conta com alguma ajuda de custo, e quase sempre precisa exercer diversas atividades profissionais regulares durante a elaboração de seu trabalho. Seu tempo é literalmente dividido, e o pesquisador tem de se render resignadamente a esta constatação. Impõe-se aqui, enfaticamente, o critério da viabilidade, que deve interagir dialeticamente com os interesses do pesquisador e da Instituição. Os projetos mais ambiciosos devem ceder lugar às propostas mais exeqüíveis, e é preciso neste momento lidar com a perda: abandonar (ou adiar) a utopia do conhecimento que desejaríamos produzir em favor da concretude do conhecimento que pode ser efetivamente produzido. Os recortes, agora menos por razões científicas do que por razões práticas, novamente se impõem ...<br /><br />[o Texto aqui postado foi adaptado do livro "O Projeto de Pesquisa em História"]<br /><br />[BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição]José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-14340214525809465382011-01-07T20:37:00.000-08:002011-01-26T19:55:51.153-08:00Espaço (2): construção socialNo último texto deste blog, discutimos aspectos relacionados ao fato de que o Espaço é uma construção do historiador, quando ele desenvolve sua pesquisa, e quando apresenta seus resultados. O aspecto de construção da categoria "espaço" em um trabalho historiográfico aparece de diversas maneiras. Vimos por exemplo que certas categorias relacionáveis à idéia de espaço, como a "região", são construções que o historiador estabelece diante do seu objeto de pesquisa e da sua problemática. Não existe uma "região" dada desde sempre. Dependendo do objeto de estudo construído pelo historiador, poderá ser definida de uma maneira ou de outra a "região" que definirá a sua unidade de trabalho ou o seu âmbito de estudos.<br />
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Outro aspecto interessante desta construção historiográfica do espaço, conforme vimos, relaciona-se ao momento em que o historiador estabelece o seu recorte de pesquisa: um recorte definido por um período de tempo, um problema, e um espaço (um lugar). Esse lugar, também vimos, não precisa ser necessariamente um lugar geográfico, como uma determinada espacialidade definida no interior do espaço físico, nem tampouco um lugar político-administrativo (um país, um estado, uma cidade). O lugar - "espaço" tomado em uma acepção mais ampla - pode ser também um lugar social ou institucional: o ambiente da Corte, as forças armadas de um país. Podemos mesmo pensar em espaços virtuais (o ciberespaço, o recorte social gerado por redes sociais ou chats). Mas é claro que, com alguma frequencia, os historiadores trabalham também com o espaço físico, embora esse espaço, conforme comentado antes, não coincida necessariamente com o recorte político-administrativo ou com regiões definidas pela Geografia Física.<br />
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Gostaríamos, neste momento, de lembrar um outro aspecto. Quando o historiador vai às suas fontes, e se põe a examinar sociedades várias ou processos históricos específicos, ou quando ele analisa classes ou grupos sociais, ou mesmo o pensamento de indivíduos, ele também se depára com construções do espaço. O Espaço é uma construção social, conforme discorreremos.<br />
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Daremos o exemplo dos espaços civilizacionais, apenas para ilustrar o problema. Para uma civilização, ou para aqueles que se sentem incluídos dentro de uma civilização, o espaço pode receber um recorte imaginário ou político, sujeito a mudanças de acordo com a sua história. Para os dias de hoje, por exemplo, embora seja sempre um conceito difícil de trabalhar, fala-se em algumas civilizações presentes no planeta, caracterizadas por distinções relevantes relacionadas aos seus aspectos culturais, religiosos, imaginários, identitários, e também envolvendo determinadas correlações políticas. Por exemplo, podemos pensar na chamada Civilização Ocidental como distinta de uma Civilização Islâmica; podemos pensar na China (na civilização chinesa) como um mundo a parte. Ou alguém pode propor um recorte civilizacional envolvendo a China, o Japão, e outros países orientais.<br />
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Claro que há sempre oscilações envolvidas quando consideramos essas unidades civilizacionais. Pensa-se geralmente em uma Civilização Ocidental para uma certa unidade identitária que pode ser estabelecida entre diversos países europeus e os países das Américas, que foram colonizados e ocupados populacionalmente, no início da modernidade, pelos europeus (portugueses, espanhóis, franceses, ingleses). Mas mesmo assim podemos lembrar que Samuel Huntington, em seu livro "O Choque das Civilizações" (1996), prefere pensar uma civilização à parte para a América Latina, e deixar o recorte de "civilização ocidental" apenas para a Europa e América do Norte (excetuado o México). Custava-lhe admitir que os mexicanos, brasileiros ou paraguaios fizessem parte da mesma civilização que a da Europa (excetuando a turquia européia) e a América do Norte. Aliás, ele incluiu também na "civilização ocidental" a Austrália, por sua ligação com o Reino Unido.<br />
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De todo modo, a noção difícil de Civilização Ocidental é muito trabalhada pelos historiadores, mas normalmente unindo Europa e Américas sem as distinções feitas por Huntington. Vamos pensar, apenas para trazer o exemplo dos espaços civilizacionais, na idéia de uma "Civilização Ocidental". De fato, há algo em comum entre um inglês, um francês, um brasileiro (é claro que os indígenas constituem uma situação à parte, mas deixemos por ora esta questão de lado). Eles falam línguas distintas, mas há uma certa origem cultural em comum, que remonta às instituições de outra civilização, histórica, a Civilização Greco-Romana, e há também um predomínio religioso, que é o das religiões que, de modo mais amplo, procuraremos enquadrar na instância do Cristianismo. Foi também essa civilização que desenvolveu historicamente o Capitalismo, e isto trouxe um certo padrão cultural, imaginário, algumas referências políticas. O inglês, o francês e o brasileiro, por mais distintos que sejam - e são realmente muitodistintos - adquirem proximidades quando os comparamos com a Civilização Islâmica, por exemplo.<br />
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Este assunto é complexo, cheio de ambiguidades mal resolvidas, mas estamos o tomando apenas para pensar mais propriamente na questão do Espaço. Uma Civilização estabelece-se também sobre um espaço, que obviamente vai mudando historicamente. Hoje, é interessante verificar que o pequeno Mar Mediterrâneo (quando o comparamos com o Oceano Atlântico ou com o Oceano Pacífico), coloca-se como uma fronteira entre parte da Civilização ocidental (os países do sul da Europa) e as sociedades africanas, que para um europeu já configuram um outro mundo.<br />
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Queremos lembrar agora o mundo do Império Romano, a partir de Augusto e até os tempos de sua dissolução. O norte da África, para um romano, não era um outro mundo. Os países do Norte da África eram províncias do Império Romano. Os romanos chamavam ao Mar Mediterrâneo de "Mare Nostrum" (Nosso Mar). Para eles, as fronteiras espaciais de sua civilização ficavam um pouco mais abaixo, com o limite natural do deserto do Saara, por exemplo. A Oeste, havia o limite cósmico do Oceano Atlântico. Ninguém pensava que houvesse algo mais para além, e talvez o Atlântico parecesse aos romanos como o espaço que se estende para além da orbis terrestre, no mundo de hoje. A Leste, os romanos viam a fronteira do rio Tigre como o fim do seu espaço civilizacional, e os Rios Danúbio e Reno delimitavam muito claramente o seu mundo de um outro mundo, em relação a cujos habitantes eles julgavam correto se referirem como "bárbaros".<br />
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É muito interessante refletir sobre isso para compreender a idéia de que o Espaço é uma construção social, política, cultural - histórica. Hoje, a Mesopotâmia é um outro mundo em relação ao espaço civilizacional do ocidente. Os rios Reno e Danúbio estãoperfeitamente inseridos dentro do espaço da civilização ocidental, conjuntamente com todos os países do Norte da Europa. A África do Norte, como já dissemos, é outro mundo para o imaginário de um homem ocidental. Aliás, a idéia de "África" surgiu como uma construção nova, quando se pensou a possibilidade de uma unidade da Europa. Os eruditos que acompanhavam Carlos Magno, na Alta Idade Média, já mencionavam a idéia de uma "Europa". Essa idéia depois se fortaleceu: a de uma Europa que se opõe a África, ao Sul, e a Ásia, a Oeste.<br />
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Esses continentes, que hoje nos parecem realidades espaciais tão naturais, são na verdade construções. Em um livro intitulado "A Construção Social da Cor" (Petróplos: Vozes, 2009), eu discuto como a "África" foi uma construção da "Europa". Os comerciantes e colonizadores europeus começaram a pensar na África como uma unidade, mas é óbvio que a África apresenta espaços internos e culturais muito diferenciados. Um sudanês da floresta dificilmente olharia para um berbere do Saara como um semelhante (ele não se via, e ao berbere, como um africano), e, ao mesmo tempo, dificilmente ele poderia fechar esses espaços, o da Floresta e o do Saara, como uma unidade. Mas interessava à empresa do tráfico atlântico de escravos construir essa espacialidade, que era a África, e associá-la a uma outra idéia, que era a de que desse continente viriam os escravos negros. A idéia de "negro", inclusive, foi também uma construção, pois certamente que, à época da montagem do tráfico, e mesmo hoje, dificilmente se veriam como semelhantes um nuer, um peul, um zulu, e qualquer outro indivíduo pertencente às inúmeras outras identidades tribais africanas.<br />
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Esse complexo problema pode ser examinado nos textos do livro "A Construção Social da Cor" (<a href="http://ning.it/dHMnNA">http://ning.it/dHMnNA</a>). Mas, por ora, quero apenas mostrar que essa percepção das espacialidades, que organiza os continentes de uma determinada maneira, apoia-se em uma construção social. Não se trata de uma realidade física estabelecida, dada de antemão. Há uma história na construção dos espaços. Da mesma forma, há uma construção maneira como os limites e fronteiras são percebidos ou definidos pelas civilizações, ou como aqueles que se identificam com elas. Também há mudanças constantes, seja no quadro civilizacional, seja no mundo político. Entre o período do pós-Guerra e a Queda do Muro de Berlim, em 1989, não apenas esse famoso muro que não mais existe era visto como fronteira de pedra separando duas realidades. A Rússia, que hoje é facilmente incorporada ao mundo ocidental, foi pintada pela construção do já referido Samuel Huntington - intelectual a serviço da CIA - como fazendo parte de uma "civilização cristã oriental". Vemos aí como vão se dando as coisas. Para ele, tratava-se de partir o mundo religioso cristão em dois, para atender às reminiscências de uma espacialidade política gerada pelo mundo bipolarizado da Guerra Fria. Huntington escreve oprimeiro ensaio sobre o choque das civilizações em 1993, quatro anos depois da queda do Muro, e sustentava a idéia de que as grandes identidades culturais e religiosas seriam as principais fontes de conflito no mundo posterior à Guerra Fria. Neste artigo de 1993, intitulado "Foreign Affairs", vemos as seguintes palavras:<br />
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“Minha hipótese é que a fonte fundamental de conflitos neste mundo novo não será principalmente ideológica ou econômica. As grandes divisões entre a humanidade e a fonte dominante de conflitos será cultural. Os Estados-nações continuarão a ser os atores mais poderosos no cenário mundial, mas os principais conflitos da política global ocorrerão entre países e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As falhas geológicas entre civilizações serão as frentes de combate do futuro” (HUNTINGTON, 1993).<br />
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São muito discutidas e criticadas teses de Huntington sobre o "Choque das Civilizações". Só as trouxemos aqui como um exemplo de construção do espaço. Nesse caso, retornamos à idéia de que o espaço pode ser reconstruído pelo historiador ou pelo cientista social. De outra parte, pensar em civilizações também remete a idéia de construções coletivas do espaço. Os espaços de familiaridade e de alteridade são construídos pelas diversas sociedades, e também estão obviamente sujeitos à mudanças históricas. Os limites da civilização romana foram mudando até chegar ao quadro máximo de expansão, durante a Pax Romana.<br />
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Um historiador deve pensar o espaço com a consciência de que esta categoria envolve dois níveis e tipos de construção. A construção que vem do próprio historiador, que examina um determinado problema histórico de certa maneira, e as diversas construções espaciais com as quais ele pode se deparar ao nível das fontes históricas e das sociedades e processos por ele examinados (seu objeto de estudo).<br />
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Referências:<br />
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BARROS, José D'Assunção. A Construção Social da Cor. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.<br />
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HUNTINGTON, Samuel. O Choque das Civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva,1997 [original: 1996]José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7343343578353306486.post-41031528027198446472011-01-06T18:46:00.000-08:002011-01-19T15:03:48.384-08:00Espaço (1): construção do historiadorSe Tempo é a categoria irredutível da História, sem a qual não se pode pensar o conhecimento historiográfico conforme uma especificidade que o distingua de outros saberes produzidos pelo homem, não podemos esquecer de outras categorias igualmente importantes para o trabalho historiográfico. Uma destas categorias é o Espaço.<br /><br />Frequentemente, associamos o conceito de "Espaço" como o elemento irredutível da Geografia, e esquecemos o quanto a História também precisa deste conceito para a sua operacionalização. "Eapaço", ou também "lugar", é uma instância decisiva para a realização de um bom trabalho historiográfico, de modo que precisamos pensar seriamente neste conceito para que a História não resulte em mera abstração.<br /><br />Rigorosamente falando, a História é o estudo do Homem no Tempo e no Espaço. As ações e transformações que afetam aquela vida humana que pode ser historicamente considerada dão-se em um espaço que muitas vezes é um espaço geográfico ou político, e que, sobretudo, sempre e necessariamente constituir-se-á em espaço social. Mas com as expansões dos domínios históricos que começaram a se verificar no último século, este Espaço também pode ser perfeitamente um “espaço imaginário” (o espaço da imaginação, da iconografia, da literatura), e adivinha-se que em um momento que não deve estar muito distante os historiadores estarão também estudando o “espaço virtual”, produzido através da comunicação virtual ou da tecnologia artificial. Pode se dar que, em um futuro próximo, ouçamos falar em uma modalidade de História Virtual na qual poderão ser examinadas as relações que se estabelecem nos espaços sociais artificialmente criados nos chats da Internet, na espacialidade imaginária das webpages ou das simulações informáticas, ou mesmo no espaço de comunicação quase instantânea dos correios eletrônicos – estas futuras fontes históricas com as quais também terão de lidar os historiadores do futuro. Espaço, nestas acepções e desdobramentos mais amplos, quase se avizinha de outra noção importante, que é a de "lugar". Mas, por hora, para as reflexões mais imediatas que desenvolveremos a seguir, consideraremos apenas o Espaço nos seus sentidos tradicionais: como lugar que se estabelece na materialidade física, como campo que é gerado através das relações sociais, ou como realidade que se vê estabelecida imaginariamente em resposta aos dois fatores anteriores.<br /><br />Tão logo se deu conta da importância de entender o seu ofício como a Ciência que estuda o homem no tempo e no espaço – e essa percepção também se dá de maneira cada vez mais clara e articulada em meio às revoluções historiográficas do século XX – os historiadores perceberam a necessidade de intensificar sua interdisciplinaridade com outros campos do conhecimento. Emergiu daí uma importantíssima interdisciplinaridade com a Geografia, ciência que já tradicionalmente estuda o espaço físico – e, se considerarmos outras formas de espaço como o ‘espaço imaginário’ e o ‘espaço literário’, poderíamos mencionar ainda a interdisciplinaridade com a Psicanálise, com a Crítica Literária, com a Semiótica e com tantas outras disciplinas que ofereceram novas possibilidades de métodos e técnicas aos historiadores. Na verdade, a noção de espacialidade foi se alargando com o desenvolvimento da historiografia do século XX: do espaço físico ao espaço social, político e imaginário, e daí até a noção do espaço como “campo de forças” que pode inclusive reger a compreensão das práticas discursivas. Neste momento, contudo, iremos nos concentrar nas noções de espaço que surgem a partir da interdisciplinaridade com a Geografia.<br /><br />A interdisciplinaridade entre a História e a Geografia é estabelecida, entre outros aspectos, através de conceitos como “espaço”, “território”, “região”, e é sobre eles que passaremos a refletir nas próximas linhas. Em uma de suas instâncias mais primárias, o espaço pode ser abordado como uma área indeterminada que existe previamente na materialidade física (e, neste caso, ainda não estaremos considerando as noções de ‘espaço social’, de ‘espaço imaginário’ e de ‘espaço literário’ que já foram mencionadas). Foi a partir desta noção fundadora que, na Geografia tradicional, começaram a emergir outras categorias como a de “paisagem”, de “território” e de “Região” – noções de que logo os historiadores começariam a se apropriar para seus próprios fins.<br /><br />Grosso modo, uma região é uma unidade definível no espaço, que se caracteriza por uma relativa homogeneidade interna com relação a certos critérios. Os elementos internos que dão uma identidade à região (e que só se tornam perceptíveis quando estabelecemos critérios que favoreçam a sua percepção) não são necessariamente estáticos. Daí que a região também pode ter sua identidade delimitada e definida com base no fato de que nela poder ser percebido um certo padrão de interrelações entre elementos dentro dos seus limites. Vale dizer, a região também pode ser compreendida como um sistema de movimento interno. Por outro lado, além de ser uma porção do espaço organizada de acordo com um determinado sistema ou identificada através de um padrão, a região quase sempre se insere ou pode se ver inserida em um conjunto mais vasto.<br /><br />Esta noção mais ampla de região – como unidade que apresenta uma lógica interna ou um padrão que a singulariza, e que ao mesmo tempo pode ser vista como unidade a ser inserida ou confrontada em contextos mais amplos – abrange na verdade muitas e muitas possibilidades. Conforme os critérios que estejam sustentando nosso esforço de aproximação da realidade, vão surgindo concomitantemente as várias alternativas de dividir o espaço antes indeterminado em regiões mais definidas. Posso estabelecer critérios econômicos – relativos à produção, circulação ou consumo – para definir uma região ou dividir uma espacialidade mais vasta em diversas regiões. Posso preferir critérios culturais – considerar uma região lingüística, ou um território sobre o qual são perceptíveis certas práticas culturais que o singularizam, certos modos de vida e padrões de comportamento nas pessoas que o habitam. Posso me orientar por critérios geológicos – e estabelecer em um espaço mais vasto as divisões que se referem aos tipos de minerais e solos que predominam em uma área ou outra – ou posso ainda considerar zonas climáticas. A Geografia, como é de se esperar, privilegia certos critérios: muito habitualmente lança luz sobre certos aspectos que se relacionam com a materialidade física, e pode ou não relacionar estes aspectos a outros de ordem cultural (como é o caso, de modo geral, da Geografia Humana).<br /><br />Uma noção importante a ser considerada aqui, antes de examinarmos como a História pode se beneficiar da abordagem geográfica, é a de “paisagem”. Para a Geografia, uma paisagem é uma associação típica de características geográficas concretas que se dão numa região – ou numa extensão específica do espaço físico – e constitui um determinado um padrão visual que se forma a partir destas características que a singularizam (pensemos na paisagem de um Deserto, de uma Floresta, ou de uma Cidade). Podemos falar de uma “paisagem natural”, mas também de uma “paisagem cultural” – esta última dando a perceber as interferências do homem que acabam por imprimir-se na fisionomia de um determinado espaço conferindo-lhe uma nova singularidade.<br /><br />Uma paisagem geográfica, desta maneira, surge em decorrência da repetição – em uma determinada superfície ou espaço – de certos elementos produzidos por combinações de formas e que, conforme já foi dito, tanto podem ser físico-naturais como humanos. A paisagem pode coincidir com uma “região natural” – conceito que definiremos a seguir – ou pode ser derivada de um padrão cuja singularidade associa-se a um tipo de ocupação agrícola ou organização humana do espaço. Para estes últimos casos, um campo de trigo ou uma cidade de alta densidade demográfica podem ser apontados como exemplos de paisagens que têm elaboradas culturalmente as suas materialidades físicas; e a multidiversificada vegetação que recobre uma floresta virgem, ou a vasta extensão de areia que constitui um deserto inóspito, podem ser indicados como exemplos de paisagens que coincidem com “regiões naturais”.<br /><br />A paisagem, este padrão de visualidade que se mostra ao homem no seu estado de percepção mais espontânea, foi por motivos óbvios o primeiro grande aspecto a ser considerado pelo conhecimento geográfico no seu esforço de compreensão do mundo. Aliada ou não à percepção mais imediata de uma determinada paisagem, a noção de “região natural” cedo se constituiu em outra das mais primordiais noções geográficas, e baseia-se francamente no papel desempenhado por certos elementos físicos na organização do espaço. Pode-se considerar, neste caso, uma bacia hidrográfica, um conjunto afetado por um tipo de clima, ou uma montanha – e a partir deste ou daquele fato natural que assume uma centralidade na percepção ou análise é estabelecida em seguida uma rede de relações ou desdobramentos que terminam por definir o espaço. Exemplos clássicos de “regiões naturais” são as vastas e impenetráveis florestas que ainda resistem em muitas partes do globo às ações depredatórias do homem, ou a inóspita caatinga da qual a vida humana ocupa apenas os interstícios.<br /><br />Estes e alguns outros são os espaços gerados pela materialidade física do mundo e pela Natureza, com nenhuma ou pouca participação do homem. A Montanha ou os rios impõem os seus limites e caminhos, uma zona climática dita suas regras. Por outro lado, ocorre também que a Política – aqui referida à vasta complexidade de estruturas de poder que estabelecem limites e centros de organização que terminam por reordenar o espaço e a materialidade de múltiplas maneiras – também produz a sua própria espacialidade. Na superfície do globo terrestre, formam-se nações, e dentro delas estados, províncias, unidades administrativas, comarcas, cidades. Todas estas divisões foram criadas pelo homem, e acabam por se superpor de um modo ou de outro às divisões impostas naturalmente, ou também por interagir com as paisagens que podem ser percebidas de diversas maneiras. Desta maneira, os aspectos físicos e os aspectos políticos - geralmente combinados de alguma forma – terminam por serem aqueles que vêm à tona mais espontaneamente quando se pensa em considerar a espacialidade. Mas, como sempre frisamos, estes aspectos podem não ser os mais importantes em função de uma determinada análise da realidade a ser empreendida, seja esta uma análise histórica, geográfica, sociológica, ou antropológica. Voltaremos a esta questão oportunamente.<br /><br />Quando os historiadores – particularmente diante de certos objetos históricos a serem examinados – deram-se conta da necessidade de colocar em um mesmo nível as noções de tempo e espaço, logo começaram a dialogar com conceitos mais tradicionais da Geografia como aqueles que atrás explicitamos. O relacionamento entre História e Geografia, a partir deste momento, começou a gerar uma história escrita em cores mais vivas: nascia, ou se consolidava, uma forte relação interdisciplinar, que hoje podemos examinar com um olhar retrospectivo.<br /><br />.<br />Leia aconinuação deste artigo em: <a href="http://ning.it/gP464e">http://ning.it/gP464e</a><br />.<br />BARROS, José D'Assunção. "Espaço, Tempo e História - interações necessárias". Vária História, BH, vol.22, n°36, p.460-476, jul/dez.2006. http://ning.it/gP464e]José D'Assunção Barroshttp://www.blogger.com/profile/14616369888767129715noreply@blogger.com0